João Paulo Borges Coelho
(Universidade Eduardo Mondlane)
Resumo
Recentemente tem-se assistido em organismos académicos reputados ao rápido
crescimento de uma nova literatura sobre as guerras civis, baseada em metodologias
quantitativas e privilegiando a explicação económica. Incidindo sobretudo na análise
comparativa, esta literatura visa descobrir tendências que permitam configurar uma
teoria geral do fenómeno, tendo por finalidade não só compreendê-lo mas também
informar as decisões políticas dos organismos que com ele são supostos lidar. O
presente texto procura trazer subsídios para a discussão do caso moçambicano à luz
desta nova literatura quantitativa, tentando apurar em que medida ela é útil para o
circunscrever e compreender.
Palavras-chave: Guerra Civil; Literatura Quantitativa; Moçambique.
1. Introdução
Nas duas últimas décadas do século passado multiplicaram-se os conflitos civis e
também, de alguma maneira em consequência disso, os projectos académicos visando
compreendê-los, em parte movidos pela necessidade de fazer avançar o conhecimento,
em parte em resposta às necessidades políticas e humanitárias de os prever e prevenir, e
de aperfeiçoar os mecanismos para os resolver e lhes atenuar os efeitos.1
Uma grande parte desses projectos afasta-se das tradicionais perspectivas
qualitativas do estudo de processos particulares, considerando que estas dificultam a
generalização e imprimem um carácter tendencioso à comparação (Gates 2002: 9-10);
alternativamente, procura novas metodologias baseadas numa recolha de ‘dados’
1
À escala global, a ocorrência de guerras civis foi crescendo acentuadamente na década de 1990,
atingindo um pico em 1994-5, e desde então tem vindo a descer consistentemente (Sambanis 2002: 216;
Fearon 2002; Gleditsch 2002). Alguns encontram as causas desta tendência no ciclo longo de uma
transição geral dos impérios para os Estados-nação (Wimmer & Min 2006). A região mais afectada pelo
fenómeno é a África sub-sahariana, e as razões dessa prevalência são discutidas, entre outros, por Collier
& Hoeffler (2002), Elbadawi & Sambanis (2000b) e Fearon & Laitin (2003). Todos os websites foram
consultados em Junho de 2009.
1
suficientemente ampla para permitir, através do seu tratamento estatístico, estabelecer
relações probabilísticas gerais que configurem princípios teóricos. Trata-se de uma
perspectiva que ‘se abstrai de qualquer conflito particular e submete o investigador à
disciplina do método estatístico’.2
Naquele que é um dos textos programáticos desta
nova perspectiva quantitativa, afirma-se:
‘Os padrões estatísticos são úteis na medida em que permitem sugerir políticas que
funcionem tipicamente em situações particulares. Além disso, eles defendem-nos da
tentação de generalizaçãoilegitima a partir de conflitos particulares, e da tendência de
escolher da multiplicidade de causas possíveis aquela que mais se coaduna com as crenças
do investigador’ (Collier et al 2003: 54).
Ligada a esta perspectiva está a criação de grandes bases de dados sobre os
conflitos, no pressuposto de que a teoria geral desenvolvida a partir da sua interpretação
permite analisar casos concretos e prever casos futuros, assim como informar as
decisões políticas.
O processo não é novo. Tem a sua origem na base de dados denominada ‘Correlates
of War’ (COW), criada por David Singer na Universidade de Michigan em 1963 com o
objectivo de acumulação sistemática de conhecimento científico sobre a guerra em todo
o mundo (www.correlatesofwar.org; Suzuki, Krause & Singer 2002). Na esteira do
COW, desenvolveram-se várias linhas de investigação, grande parte delas a partir dessa
base de dados, algumas com novas bases de dados entretanto constituídas.3
Evidentemente, esta ‘metodologia quantitativa’, de que aqui se dá conta de forma
simplificada, tem produzido resultados muito diversos, pelo menos tanto quanto o são
as perspectivas com que se operam os dados para a partir deles se construir ‘teoria’.
Enquanto que umas correntes se manifestam mais próximas da chamada Ciência
Política e prestam particular atenção ao ‘factor étnico’ ou ao impacto da globalização
nos conflitos, a maioria vê na economia, e mesmo na econometria, a resposta para as
indagações mais importantes. A particular saliência desta última deve-se em grande
2
Collier, Hoeffler & Rohner (2008: 3). São minhas todas as traduções do inglês. 3
De acordo com Sambanis (2004: 815), ‘a maioria dos projectos não realiza pesquisa histórica
original, baseando-se em grande medida no COW’. Entre as bases de dados mais importantes salientamse
a das ‘Minorias em Risco’ de Ted Gurr, a do ‘State Failure Project’ da Universidade George Mason, o
‘Uppsala Conflict Data Programme (UCDP) associado ao ‘Armed Conflict Dataset’ do International
Peace Institute de Oslo (PRIO) (Gleditsch et al 2002; Gates 2002), a ‘Ethnic Power Relations (EPR) da
Universidade de Califórnia (Wimmer, Cederman & Min 2009; Cederman, Girardin & Wimmer 2006), e a
‘Cross-National Data Set on Ethnic Groups’ de James Fearon (Fearon 2003). Muitas mais estão
certamente em construção. Para uma visão geral da literatura quantitativa, ver Sambanis (2002),
Humphreys (2002).
2
medida ao impacto do projecto ‘Economics of Civil War, Crime and Violence’, criado
por Paul Collier sob os auspícios do Banco Mundial, e que estabeleceu uma correlação,
largamente aceite no meio, entre desigualdade económica e pobreza com a guerra civil
(Collier, Hoeffler & Söderbom 2001).
Apesar de haver uma extensa e variada literatura académica sobre o conflito armado
moçambicano, o seu confronto com esta Literatura Quantitativa (LQ) é ainda muito
escasso.4
Assim, pretende-se deixar aqui um conjunto de notas de reflexão, não
propriamente sobre a totalidade de um corpo tão complexo e diverso quanto o é a LQ,
mas apenas sobre a medida em que ela abre perspectivas novas ao estudo da guerra em
Moçambique. Estas notas serão organizadas em harmonia com dois dos três grandes
núcleos de questões que têm dominado a LQ, nomeadamente o início do conflito
(causas, natureza) e o seu desenvolvimento (transformações, condições que o
alimentaram).5
2. Origem e Natureza
Porque se desencadeia uma guerra civil? Provavelmente, as razões são tantas quanto as
guerras civis, e daí a grande diversidade de explicações, que por sua vez também fica
muito a dever à dificuldade que a LQ enfrenta na definição de um conceito operativo de
guerra civil.6
Todavia, em grande medida devido à influência de Paul Collier e à sua
perspectiva baseada na teoria do ‘rational choice’, foi-se criando na LQ um razoável
consenso em torno das causas internas como aquelas cujo desvendamento permitiria
explicar as origens do conflito, e da economia como a razão mais profunda dessa
explicação. A guerra civil resultaria da decisão de uma determinada parte da sociedade
em rebelar-se contra o Estado do país, numa lógica dicotómica de procura de algum
ganho material ou político, ou de manifestação de um ressentimento (a célebre
formulação colleriana do ‘greed or grievance’ – ganância ou ressentimento), sendo
4
Ver, por exemplo, Weinstein & Francisco (2005). Sambanis (2003: 106-108) discute a aplicação do
modelo Collier-Hoeffler (CH) a Moçambique, mas fá-lo com base numa única fonte, precisamente uma
versão anterior do trabalho de Weinstein & Francisco. Para uma visão crítica do modelo CH com
referência a Moçambique, ver Cramer (2000) e Bertelsen (2005). 5
De fora fica um terceiro núcleo de questões, relativo à problemática algo diferente do desfecho do
conflito (soluções encontradas, impactos pós-conflito, etc.). 6
A definição mais corrente refere um conflito militar no interior de um território nacional entre o
Estado e um ou mais grupos, do qual resulta pelo menos um total de 1000 mortos directos (segundo o
critério do COW) ou 25 mortos directos mensais (segundo o critério UCDP/PRIO). Ver, entre extensa
literatura sobre esta questão, Collier & Hoeffler (2006), Blattman & Miguel (2009).
3
claramente motivada mais pelo primeiro do que pelo segundo, e ficando assim garantida
uma racionalidade económica da explicação (Collier & Hoeffler 2000).
Esta localização interna das razões do conflito coloca desde logo problemas
relativamente à narrativa elementar da guerra civil moçambicana tal como ela é
geralmente construída a partir da profusa documentação existente. Segundo esta, a
independência de Moçambique inscreve-se numa profunda alteração na geo-política na
África Austral em meados da década de 1970, marcada pelo desaparecimento do
colonialismo na região, deixando apenas os casos atípicos da África do Sul do
‘apartheid’ e da Rodésia. Para este último país, o Moçambique independente governado
por um regime saído directamente do movimento de libertação representava dois
perigos fundamentais: por um lado alargava a fronteira rodesiana exposta à infiltração
da guerrilha nacionalista, e por outro o vital acesso ao mar através do porto e do
Corredor da Beira ficava seriamente ameaçado.7
Assim, o novo contexto exigia da
Rodésia respostas imediatas, tornadas mais urgentes pelo apoio aberto das novas
autoridades moçambicanas à guerrilha zimbabweana da ZANLA, e pela adopção, em
Março de 1976, das sanções mandatórias das Nações Unidas contra a Rodésia, o que na
prática significava um corte radical de relações com aquele país. Rapidamente se
desencadeia uma guerra clássica entre os dois Estados.8
É neste contexto que surge o
MNR (Mozambique National Resistance), criado pelo Central Intelligence Office (CIO)
rodesiano como força auxiliar das suas tropas.9
Nesta fase, o MNR tem o papel de
combater as forças zimbabweanas baseadas em Moçambique e desestabilizar a faixa
central adjacente ao Corredor da Beira.
Esta origem externa do movimento rebelde convive mal com a perspectiva
dominante da LQ sobre as causas da guerra civil que, como foi dito, é eminentemente
7
As vias de exportação-importação da Rodésia alternativas a Moçambique, pela África do Sul,
significavam em média uma distância quatro vezes maior com o dobro dos custos (Mlambo s/d). 8
Um relatório das Nações Unidas diz que os ataques rodesianos, no início dirigidos contra campos
zimbabweanos no interior de Moçambique, rapidamente evoluiram para operações em larga escala
visando não só população civil mas também infraestruturas económicas e sociais. ‘A partir de Maio de
1977 as forças rodesianas passaram a utilizar caças-bombardeiros Mirage e bombas de fragmentação de
100 quilos.’ (ver Borges Coelho 1993: 370-371). 9
O facto do MNR ter nascido com uma sigla inglesa não é, neste contexto, despiciendo. Sobre a
criação do MNR/Renamo e sua actuação nesta fase, ver por exemplo Johnson & Martin (1986), Minter
(1994), Vines (1996). O papel da Rodésia na criação do movimento é eloquentemente referido por Ken
Flower, o seu criador: ‘(...) o CIO procedeu ao recrutamento de moçambicanos que foram encorajados a
levar a cabo as suas próprias acções sem terem de depender do apoio da Rodésia. A surpreendente
facilidade com que o Movimento de Resistência Moçambicana se desenvolveu indicava que estávamos na
linha certa, particularmente porque o mantivémos pequeno e manuseável clandestinamente durante os
primeiros anos, e que ao mesmo tempo servia de olhos-e-ouvidos das nossas Informações em
Moçambique’ (Flower 1987: 302).
4
interna. Se é certo que a presença de forças externas é reconhecida como variável que
pode interferir de várias maneiras (financiando o conflito, treinando forças rebeldes,
comprando produtos provenientes do saque, etc.), ela nunca é considerada como
elemento estrutural dado que tal poria directamente em causa o princípio da ‘rational
choice’ e complicaria demasiado a distinção entre conflito entre Estados e guerra civil.
Em consequência, na LQ o quadro nacional é quase sempre o quadro mais amplo, e
tudo o que o ultrapassa é ‘diminuído’ de modo a caber nele como mais um mero factor,
secundário, e por isso tratado de um modo rudimentar.10
Evidentemente, por mais conforme que a interpretação da origem rodesiana desta
fase do conflito esteja com a evidência histórica, a ser tomada no sentido exclusivo ela
deixaria de fora questões importantes. Por mais intensa e militarmente eficaz que tenha
sido a ofensiva rodesiana, por si só ela nunca explicaria a adesão rápida de um
importante número de moçambicanos ao contingente rebelde. É por isso necessário ter
em conta outros factores.
Segundo Gates (2002), a LQ considera como principais variáveis independentes
associadas ao risco de ocorrência de guerras civis, a pobreza (falta de oportunidades
económicas e baixo nível de desenvolvimento económico), a distância temporal em
relação a um conflito anterior, a dominância étnica e, ainda, a instabilidade política.
Relativamente à primeira variável, o modelo Collier-Hoeffler (CH) considera para
Moçambique um PIB ‘ligeiramente abaixo da média de outros países em guerra’, num
contexto agravado pela estratégia económica da Frelimo, nomeadamente a
colectivização da agricultura e nacionalização da comercialização, as perdas derivadas
das sanções contra a Rodésia e os limites à migração de mineiros moçambicanos para a
África do Sul. Todavia, uma análise cronológica mais rigorosa mostra que, se é certo
que o êxodo da população portuguesa é acentuado desde o início, e tem um impacto
directo e profundo na economia, por outro lado as medidas económicas tomadas pelo
novo governo não podem ser relacionadas desta maneira com o início da insurgência na
medida em que só começam a sentir-se na sequência do III Congresso da Frelimo, em
Fevereiro de 1977, altura em que o MNR já estava criado.11 O mesmo argumento vale
para o decréscimo do trabalho migratório, uma vez que em 1975 o número de mineiros
10 Por exemplo, Sambanis (2003: 45-46, nota 91), confrontado com a evidência do apoio prestado
pela Rodésia ao MNR apressa-se a dizer que ele não resultaria se não fossem as políticas agrícolas
falhadas da Frelimo, a intensa repressão política e a ‘dominância dos sulistas’. 11 Por exemplo, em 1977 havia apenas 30 aldeias comunais concluídas e 105 em formação (Borges
Coelho 1993: 334). De facto, só a partir de 1977 este programa se torna significativo, na sequência das
cheias de 1977 dos rios Zambeze e Limpopo, e das políticas sistemáticas de reordenamento.
5
moçambicanos, ao contrário do que é concluído, subiu para mais de 115.000, ao mesmo
tempo que o preço do ouro triplicava e Moçambique auferia do rendimento sem
precedentes de 50 milhões de libras, facto que ajudou a amortecer os abalos da
transição. Só a partir de 1976 é que a África do Sul envereda por uma política de
redução progressiva de mão-de-obra (Hanlon 1984: 51). Além disso, o alegado
ressentimento social provocado pelo declínio da economia tem de ser analisado no
contexto de percepções contrárias, de entusiasmo popular face à independência, e de um
elevado capital de popularidade granjeado pelas anunciadas medidas igualitárias do
movimento de libertação. Sambanis (2003: 106) ele próprio acaba por ser forçado a
considerar que a relação entre a pobreza e o início do conflito é mais complicada do que
a aventada pelo modelo CH, concluindo, no ‘refinamento’ por ele proposto, que os
recrutas iniciais da Renamo não seriam desempregados mas vítimas da repressão da
Frelimo.
A afirmação de Sambanis deve ser analisada no contexto da segunda variável
independente do modelo CH, que considera que quanto há menos tempo tiver ocorrido
um conflito anterior maior é o risco de surgimento ou de recorrência de uma guerra
civil. Ou seja, trata daquilo que podemos considerar como a única porta que é aberta à
possibilidade de interferência da história.12 Mais concretamente, no caso moçambicano,
estabelece-se uma relação entre a guerra colonial (que terminou em 1974) e a nova
guerra iniciada um ou dois anos depois. O risco de ocorrência do conflito mostrava-se,
no modelo CH, particularmente elevado. Relativamente a Moçambique, o contingente
do MNR teria sido alimentado por dissidentes da Frelimo descontentes com o domínio
do aparelho por parte de ‘gente do Sul’ e por vítimas da repressão desencadeada após a
independência, que se refugiaram na Rodésia.
Trata-se de uma questão muito sensível, a merecer sem dúvida muito mais
pesquisa.13 Em presença estão aqui pelo menos três grupos possíveis de actores,
nomeadamente os dissidentes históricos da Frelimo, os ‘dissidentes’ produzidos após a
independência e os moçambicanos comprometidos com o regime colonial. Quanto aos
primeiros, é menos que provável a sua capacidade de constituição de um movimento
armado oposto ao novo regime, sobretudo se se tiver em conta que as tentativas de
12 Tal como nota Bertelsen (2005: 7), para Collier, embora a herança colonial possa presumivelmente
influir de certa maneira no risco de conflito, tal influência é muito menos importante do que o factor
económico. Desta forma ele combate a ‘poluição’ do contexto (Collier et al. 2003: 66). 13 Reconhecidamente, as dificuldades da pesquisa neste domínio derivam em parte da predominância
esmagadora de uma narrativa oficial destituída de problematização.
6
constituição de movimentos políticos alternativos acabavam nesta altura de ser
neutralizadas com a prisão e confinamento em campos de internamento dos seus
principais dirigentes.14 Quanto aos segundos, há evidência da adesão de elementos à
rebelião sobretudo depois que esta foi desencadeada, nomeadamente na sequência de
assaltos e fugas de campos de internamento da Frelimo.15 Todavia, não é crível que esta
componente tivesse peso e organização suficientes para ela própria constituir o núcleo
da revolta. Sambanis, corrigindo a intepretação do modelo CH, altera ligeiramente o
argumento afirmando que muitos dos recrutas iniciais provinham da diáspora
moçambicana na Rodésia, concluindo que ‘a diáspora pode agravar o risco de guerra
também ao formar a base dos primeiros recrutas de uma organização rebelde.’
(Sambanis 2003: 106). Mas, apesar de haver na Rodésia uma comunidade moçambicana
tradicionalmente importante, e de ali ter nascido uma das organizações nacionalistas
mais fortes a integrar inicialmente a Frelimo, é pouco plausível que no seio da diáspora
rodesiana, e no quadro do regime vigente, houvesse capacidade, e tão imediata, de
organizar uma acção armada.
Assim, a ligação estrutural ao conflito anterior deve ser procurada sobretudo no
contexto que a última fase da guerra colonial criou no centro do país, contexto esse
caracterizado pela política colonial de africanização da guerra, pelas complexas relações
de Moçambique com a Rodésia e o Malawi, e por profundas experiências de engenharia
social, reordenamento populacional e criação de tropas étnicas. De facto, por alturas de
1972 a guerrilha nacionalista moçambicana, tendo atravessado o rio Zambeze em Tete,
entrava em Manica e Sofala, no centro do país, passando a ameaçar directamente o
Corredor da Beira. Desde esta altura até à independência, o centro tornou-se assim no
campo de batalha mais sensível de uma guerra colonial em que, do lado português havia
mais de 40.000 africanos representando mais de 50% do contingente colonial (Wheeler
1976; Cann 1998; Borges Coelho 2003a). A principal resposta militar portuguesa
consistiu na criação de Grupos Especiais formados nos arredores da Beira, altamente
bem treinadas e móveis, formados quase exclusivamente por africanos oriundos das
regiões onde actuavam. Em 1974, por alturas do golpe de Estado em Portugal que
abriria caminho para a independência, havia já 83 companhias de Grupos Especiais e 12
14 Três meses antes da independência, dissidentes importantes como Lázaro Nkavandame, Uria
Simango, Joana Simeão e Paulo Gumane encontravam-se já sob detenção em Nachingwea, na Tanzania,
entre centenas de outros. Ver Hoile (1994: 26 e passim). 15 Entre eles, adeptos de seitas religiosas internados, elementos integrantes do levantamento militar
de Dezembro de 1975 e, em geral, vítimas da vaga purificadora no seio das forças de defesa e segurança.
André Matsangaísa, o primeiro líder do MNR, fugiu ele próprio de um campo de reeducação.
7
de Grupos Especiais Pára-Quedistas, totalizando milhares de homens, a operar em toda
esta região, sobretudo na rota de infiltração entre o sul da província de Tete e o norte de
Manica e Sofala, que viria a ser a zona de actuação inicial do MNR.16 As dificuldades
de integração destas forças na nova ordem criada após a independência abriu sem
dúvida as portas ao recrutamento de parte delas no processo de criação do MNR.
Relacionada com a questão anterior está a variável do modelo CH relativa à
dominância étnica, que manifesta grandes dificuldades de operacionalização. Trata-se
de uma matéria muito polémica no interior da própria LQ e que respeita ao potencial de
revolta dos grupos étnicos significativos sem acesso ao poder. 17 O modelo CH acha
uma correlação positiva entre esta variável e o início da guerra com base no facto do
grupo setentrional macua-lomwe ser numericamente superior mas não ter acesso ao
poder visto a liderança da Frelimo ser dominada por ‘gente do sul’. Isso ‘teria causado
dissidências regionais no movimento de libertação que levaram ao eclodir da guerra
civil’.18 Ou seja, surpreendido pela ausência de uma revolta armada com base na etnia
macua-lomwe, que comprovaria a eficácia da variável, o modelo procura uma via
indirecta que ligue esta, através da históra do movimento de libertação, ao desencadear
do conflito. Muito mais promissor seria explorar esta área com base no conceito – mais
vago mas ao mesmo tempo mais abrangente – de identidade, para dar conta das tensões
regionais que sem dúvida se foram historicamente constituindo, integrando elementos
étnico-linguísticos mas também de diferentes velocidades de desenvolvimento e
diferentes distâncias relativamente ao poder, articuladas no novo contexto de construção
16 Para esta questão ver, entre extensa literatura, Borges Coelho (1993), Souto (2003), Bernardo
(2003) Cann (1998), Rodrigues (1995), Freire Antunes (1995 e 1996), Santos (2008). 17 A relação entre etnicidade e violência, muito em voga como explicação em certas correntes,
constitui um dos pontos mais confusos, polémicos e conceptualmente frágeis da LQ. A teoria baseia-se
nos conceitos de ‘dominância étnica’ (relação de poder e tamanho da etnia) e ‘fracionamento étnico’
(heterogeneidade). A principal fonte de dados para as bases, neste campo específico, tem sido o velho
Atlas Mundial dos Povos (Atlas Narodov Mira) soviético, de 1964, e em alguns casos o State Failure
Project. A confusão instalada neste domínio, aqui apenas aflorado, surge bem expressa na dura crítica que
transparece das palavras de Laitin & Posner 2001: 13-15: ‘Os utilizadores do índice ELF [Fracionamento
Etno-Linguístico, com dados de 129 países] assumem que o índice de fracionamento étnico de um
determinado país é fixo, tal como a sua topografia ou a distância que o separa do equador. Na medida em
que as fronteiras do país não mudarem, assume-se que os valores do seu ELF permanecem constantes
(...). O valor de uma medida ELF ignora a realidade social de que existem múltiplas dimensões de
identidade étnica em todos os países, e que a vida política se caracteriza por diferentes níveis de
fracionamento em diferentes dimensões (...)’, etc. Os autores concluem que esta suposta medição é como
tomar um único valor, por exemplo a taxa de inflação de um país em 1945, e dele deduzir o nível de
prosperidade desse mesmo país em 1990. Para uma análise do factor étnico na LQ, ver Woodward (s/d). 18 Esta aplicação rudimentar da variável no modelo CH é criticada por Sambanis (2003: 40-42, 107),
nomeadamente por ser superficial e incidir exclusivamente sobre o maior grupo, por nem sempre ser bem
medida, por omitir outros componentes de filiação étnica (como por exemplo a raça ou religião) que
podem ser usados para apoiar a acção etnopolítica, por nada nos dizer sobre a transversalidade das
clivagens étnicas, religiosas raciais e identitárias em geral, etc.
8
da identidade nacional (Borges Coelho 2004); e responder à questão central sobre as
razões do conflito moçambicano não ter tido por base a etnicidade.
A última variável da LQ, de algum modo associada à primeira, diz respeito à
instabilidade política como causa do eclodir de guerras civis. Esta variável não consta
explicitamente no modelo CH, mas pode ser associada a uma outra, secundária,
denominada ‘democracia’. Basicamente, esta é formulada da seguinte maneira:
imediatamente a seguir à independência, Moçambique era caracterizado por um regime
não-democrático e o MNR teve origem nos grupos reprimidos por esse regime, embora
fosse mais motivado pela procura de benefícios materiais do que por ressentimentos.
Sambanis considera esta leitura inconsistente, afirmando que embora a repressão
governamental tenha provocado ressentimentos, tal poderá não constituir uma
motivação directa para a violência, permanecendo eventualmente esta na perspectiva de
melhorar as condições materiais de vida. Além disso, propõe uma nova variável, não
inscrita no modelo CH mas ‘de possível interesse para o início da guerra civil’, que
denomina ‘incapacidade do Estado para controlar todo o território’. Segundo esta,
enquanto movimento de libertação a Frelimo mal havia penetrado no território antes de
tomar o poder, o que significa que quando se tornou governo teve de preencher o vazio
deixado pelos portugueses sem todavia estar capacitada para gerir o território. Esta
incapacidade teria sido presumivelmente ampliada pela repressão exercida sobre todos
quantos tinham ligações ao regime colonial, incluindo os membros das forças de
segurança coloniais ‘que se fossem aliciados poderiam ter ajudado [a combater o MNR]
(e de facto muito provavelmente não teria havido guerra civil)’ (Sambanis 2003: 108).
Esta é sem dúvida uma das questões mais complexas de analisar. Sem dúvida que se
têm de ter em conta as dificuldades de gestão do país (incluindo o território) num
contexto de hostilidade regional, de retirada abrupta dos quadros mais qualificados e de
profunda transformação e vulnerabilização da economia, enfim, de repressão e
internamento em campos de reeducação de muitos grupos comprometidos com o regime
colonial, dissidentes políticos, religiosos, desempregados, vítimas do afã persecutório
derivado de uma perspectiva de pureza política e ideológica, ou então do arbítrio de
guerrilheiros impreparados. Todavia, esta perspectiva ignora grosseiramente o grande
capital de popularidade detido pelo novo regime saído directamente da guerra de
libertação (Egerö 1987), e na sua leitura redutora ignora o complexo papel jogado neste
contexto pelas relações Frelimo-Estado. O desrespeito pelo contexto vai até à posição
ingénua e conservadora de considerar acriticamente que a possibilidade de inclusão de
9
forças altamente preparadas pelo regime colonial para combater a guerrilha nacionalista
precisamente nas forças governamentais moçambicanas, e isso num contexto regional
altamente hostil, seria uma solução para evitar a guerra civil. Finalmente, sem dúvida
que a fragilidade do Estado pode ser associada à sua incapacidade de resposta em
termos de repressão da guerrilha do MNR, dado que nos primeiros anos da
independência o novo regime experimentou severas dificuldades em transformar a sua
força guerrilheira num exército convencional eficaz, e isso debaixo do fogo directo da
Rodésia (Borges Coelho & Macaringue 2004). Todavia, é inegável que em 1979-1980 a
morte do líder do MNR André Matsangaiza, a independência do Zimbabwe e as
ofensivas militares governamentais na Gorongosa e em Manica levaram o MNR à beira
do aniquilamento.
Relativamente ao ciclo do início da guerra (no caso de Moçambique particularmente
nítido, entre 1976 e 1980), é portanto muito difícil achar que a LQ, e em particular o
modelo CH, tenha produzido perspectivas estimulantes. As grandes variáveis
independentes ignoram o contexto,19 ou são cronologicamente disléxicas (caso do
impacto social do declínio económico nesta fase), ou são redutoras e de pouca
consistência (caso de toda a análise relativa ao desempenho do novo regime), ou ainda
praticamente incompreensíveis (caso da dominância étnica); e quando a inferência
parece acertada, como no caso da proximidade com o conflito anterior, é-o pelas razões
erradas.
Alguns autores do campo da LQ procuram atenuar as dificuldades mais gritantes da
aplicação do modelo CH ao caso moçambicano. Sambanis (2003) propõe a diáspora
como fonte de recrutamento do MNR, reduz o papel da Rodésia a factor substituto da
pilhagem interna (pagando o preço de um sério erro metodológico de confusão
voluntária de variáveis para poder manter internalizada a origem do conflito), e
finalmente propõe a introdução de novas variáveis (‘actores externos’, ‘Guerra Fria’,
‘disenfranchisement e repressão de beneficiários coloniais’, ‘incapacidade do Estado
para controlar o território’). Weinstein & Francisco (2005) mostram-se mais atentos ao
chamado factor externo e reconhecem que sem informação mais rigorosa é impossível
examinar sistematicamente muitas questões, embora no final integrem da mesma
19 Existe uma outra variável do modelo CH que considera a baixa percentagem de frequência escolar
entre jovens masculinos como factor de descontentamento ou indigência que encontra uma correlação
positiva no caso moçambicano logo após a independência, variável essa que ignora por completo o
contexto da transição. De facto, o declínio da percentagem corresponde à saída da população europeia, e
uma vez que os jovens africanos praticamente não tinham acesso à escolaridade no tempo colonial, para
eles a situação só pode ter melhorado.
10
maneira o ‘apoio externo’ na ‘pilhagem de bens’ para que a endogenia do modelo CH
permaneça preservada.
3. Duração e Transformação
Quando um grupo inicia uma rebelião armada não se põe a si próprio a questão de
quando e como esta irá terminar. Collier, Hoeffler & Söderbom (2001: 17) afirmam,
nesta base, que ‘a duração do conflito é determinada por um conjunto de variáveis
substancialmente diferente das que determinam o seu início’, e a aceitação deste
princípio tem levado a que os dois momentos tenham vindo a ser estudados cada vez
mais em separado.20
Relativamente às variáveis independentes da prevalência dos conflitos, são
normalmente salientadas as características geográficas do terreno, o fraccionamento
social (étnico e religioso) e as oportunidades económicas do prosseguimento das
hostilidades. Embora menos consensual, a interferência de actores externos tem vindo
cada vez mais a ser tida em conta (Elbadawi & Sambanis 2000a).
Esta última continua a ser central na narrativa elementar do caso moçambicano. De
facto, nas vésperas da independência do Zimbabwe, reduzido a cerca de 300
guerrilheiros, o MNR estava praticamente extinto. A sua sobrevivência ficou a dever-se
à introdução de um novo actor no processo, a África do Sul,21 que através da ‘Operação
Mila’ transferiu para o nordeste do seu território o que restava do aparelho do MNR na
extinta Rodésia, enquanto os guerrilheiros se concentravam na região montanhosa de
Sitatonga. Todavia, no ano seguinte a Renamo operava novamente no interior de
Moçambique com um contingente de milhares de homens.
Para compreender o apoio sul-africano e um ressurgimento tão pujante do
movimento rebelde é necessário considerar a África do Sul não estaticamente mas em
mudança profunda e em confronto directo com os países de maioria negra, que se
organizam em torno da Linha da Frente e da SADCC para lhe fazer frente. Botha
20 Embora aceitando esta separação no caso das determinantes dos dois processos serem claramente
distintas, Elbadawi & Sambanis (2002: 307-308) apresentam um conjunto de razões técnicas e práticas
pelas quais eles deviam ser vistos em conjunto. Collier et al. (2003: 80) consideram a prevalência da
guerra civil mais difícil de investigar estatisticamente do que o início, pois que enquanto este compara
países em guerra e em paz, aquela recorre a uma variação muito mais limitada entre países em guerra. 21 Até então a África do Sul havia desempenhado um papel algo secundário, limitado a um
endurecimento nas relações económicas com Moçambique e a uma colaboração discreta no esforço de
guerra rodesiano. Para o apoio sul-africano à Renamo, cf., entre extensa literatura, Vines (1996), Martin
& Johnson (1986), Minter (1994), Davis (1985).
11
substitui Vorster na condução do país e os militares radicalizam-se no quadro da
‘Estratégia Total’, concebida a partir de 1977 para garantir a ‘sobrevivência da nação
branca’ face àquilo que era visto como o avanço comunista na África Austral. Neste
período, os militares sul-africanos tornam-se dominantes e influem pesadamente na
relação com os países vizinhos. Desenvolvem a indústria militar (entre 1978 e 1985 as
despesas militares mais que duplicaram), criam batalhões étnicos e regimentos de
reconhecimento – Recces – integrando ‘dissidentes’ de toda a região da África Austral.
Em relação a Moçambique, esta atitude levou a um ‘investimento’ maciço na
recuperação do MNR/Renamo.22 Por sua vez, para compreender a complacência
ocidental face a esta radicalização sul-africana é preciso ter em conta o contexto
internacional da Guerra Fria e o endurecimento das posições norte-americanas já a partir
da fase final da Administração Carter, e sobretudo com a entrada em cena de Ronald
Reagan (Minter 1994). Juntamente com o Irão, o Afeganistão e o Corno de África, a
África Austral torna-se nesta altura num cenário do confronto entre os dois blocos.
Enquanto que o interesse da Rodésia havia incidido sobre um espaço moçambicano
relativamente circunscrito (o Corredor da Beira e áreas fronteiriças de Manica e Gaza
onde se concentravam os nacionalistas zimbabweanos), a África do Sul utiliza a ‘nova’
Renamo tendo em vista objectivos muito mais amplos. Continua certamente a visar o
Corredor da Beira (‘satisfazendo’ assim a Renamo e assegurando ao mesmo tempo que
o Zimbabwe continue a depender das vias de escoamento sul-africanas), mas, mais do
que isso, visa a substituição do regime moçambicano, pressionando o país inteiro e em
particular a capital. Todavia, ao contrário da Rodésia, a África do Sul vai pretender cada
vez mais, não uma força auxiliar mas um movimento progressivamente autónomo e
com objectivos políticos próprios.
Entre 1982 e 1983 a ofensiva da Renamo chegou praticamente a todas as zonas do
país, com excepção de algumas áreas de Cabo Delgado.23 Infiltrando-se a partir da
fronteira ou transportados por helicópteros, os guerrilheiros refazem a rota desde a
fronteira de Pafúri para o Sul de Manica e o centro do país. Em 1982 estão já novamente
no Corredor da Beira e na Gorongosa, de onde prosseguem para Tete (em Junho
ocorrem as primeiras emboscadas na estrada Chimoio-Tete). A rapidez com que se
22 Para o apoio sul-africano à Renamo, cf., entre extensa literatura, Vines (1991) e Martin & Johnson
(1986), Minter (1994), Davis (1985), Oliveira (2006), Africa Watch (1992). Para as operações militares
da ‘Estratégia Total’, cf. Stiff (1999). 23 O Projecto da História Social da Guerra, do Departamento de História da UEM, dá alguns passos
no sentido de cartografar detalhadamente a progressão da Renamo no território, a partir de testemunhos
ao nível distrital e local.
12
instalam nesta região pressupõe linhas de infiltração não só a partir de Manica e Sofala
mas também do Malawi. Ao mesmo tempo, em meados de 1982 atravessam o rio
Zambeze e penetram na zona ocidental da província da Zambézia, ocupando várias
sedes distritais e estabelecendo bases importantes (Mureremba, Eruruni, Alfazema e
Muaquiwa24). No início de 1983 entram em peso na província de Nampula e progridem
para a província de Niassa. Em 3 de Fevereiro de 1984, a linha férrea que liga Nampula
a Lichinga é atacada pela primeira vez, ficando seriamente afectado o Corredor de
Nacala. Ao mesmo tempo, no sul do país, a Renamo progride rapidamente a partir de
Vilanculos e ao longo da costa, num movimento facilitado pela grande seca de
princípios da década de oitenta, que despovoou vastas regiões do norte da província de
Inhambane. No início de 1982 está já próxima de Inhambane e evolui velozmente para
sul com forças bem equipadas de bazucas, morteiros e armas automáticas, e deparando
com uma fraca resistência governamental. Ao mesmo tempo, a maior parte da província
de Gaza, no interior, passa a ser alvo de ataques que afectam a região fértil do vale do
rio Limpopo e a estrada nacional que liga o país de norte a sul. Também a partir de 1982
a Renamo passa a actuar em toda a fronteira meridional com a África do Sul, e as suas
bases Matsequenha e Kwahla servem de suporte ao cerco a Maputo, capital do país.
Esta progressão rápida e simultânea da Renamo numa extensão ampla como o é a
totalidade do território moçambicano levanta muitas questões. Desde logo, coloca o
factor geográfico de uma maneira substancialmente diferente daquela que é posta pela
LQ.25 As variáveis que esta discute em relação à geografia limitam-se ao factor positivo
para a evolução militar dos rebeldes que pode ser representado pela cobertura florestal e
pela configuração montanhosa do terreno.26 Todavia, esta capacidade da guerrilha de,
no curto espaço de tempo de dois anos, poder chegar ubiquamente a toda a parte, e com
tal intensidade e eficácia, levanta possibilidades que estão para além da mera
configuração física do território, numa dimensão espacial que se liga necessariamente
tanto à própria coreografia da guerra e dos seus combates como à perspectiva
estratégica e táctica sul-africana interessada nos corredores económicos (Beira, Nacala e
Limpopo) para inviabilizar a economia, em determinados pontos da costa (para o
24 Muaquiwa, por exemplo, é descrita como uma base enorme e estrategicamente muito importante,
com grandes machambas que a população cultivava. Por vezes aterravam ali aviões sul-africanos com
abastecimentos. Havia nesta base instrutores sul-africanos. 25 Para uma elaboração do factor espacial no interior da LQ ver por exemplo Fearon & Laitin (2003),
e Chojnacki & Metternich (2008). 26 Tanto a cobertura florestal como o terreno montanhoso são medidos percentualmente em relação à
superfície total do país. Para a definição ver apêndice em Collier, Hoeffler e Söderbom (2001).
13
abastecimento dos guerrilheiros), e no cerco das principais cidades, nomeadamente a
capital. Este factor, associado à intensidade e eficácia com que a ofensiva é levada a
cabo, não só colocam muitas dificuldades à possibilidade de criação endógena do
movimento (caso em que a sua evolução teria de ser muito mais lenta e circunscrita a
determinados pontos do território, nunca à sua generalidade) como alimentam uma
explicação exógena que está em harmonia com a motivação sul-africana tal como foi
apresentada, e com a evidência factual do abastecimento da Renamo por meio de
helicópteros e desembarques costeiros, da presença de instrutores e forças especiais nas
bases, e do sofisticado sistema de comunicações com a rectaguarda sul-africana.27
Embora a configuração do terreno tenha influência nas operações militares, o factor
geográfico inclui muito mais elementos, e certamente não pode ser avaliado de maneira
tão simplista e abstracta.28
Novamente, esta perspectiva não contradiz o argumento dos factores internos. Pelo
contrário, a face complementar da rapidez da progressão da guerrilha deve ser explicada
pela dificuldade governamental em responder-lhe e, agora sim, pelo impacto social e
económico interno profundamente negativo da estratégia de desenvolvimento adoptada,
e das políticas que a materializaram sobretudo a partir da entrada na década de 1980.
Resumidamente, essa estratégia assentou numa perspectiva dualista e altamente
centralizada, em que o esforço do investimento era canalizado para o sector estatal
considerado moderno e com alegado potencial de vir a ser o motor do desenvolvimento,
negligenciando-se a massa de pequenos camponeses que constituíam a esmagadora
maioria da população, já de si fragilizada pela ruptura da rede comercial e por anos
seguidos de desinvestimento. À entrada de 1983 as exportações nacionais haviam caído
para metade, as importações haviam baixado em um terço, sendo o valor das segundas
cinco vezes mais que o das primeiras (Castel-Branco 1994). Os resultados desastrosos
da estratégia de desenvolvimento, associados aos devastadores efeitos da guerra e da
seca, instalam uma crise profunda. Cada vez mais o mundo rural se torna num espaço
paradoxal em que convivem a violência da guerra com um reordenamento populacional
acelerado e autoritário levado a cabo pela Frelimo e pelo Estado,29 que fragiliza a
27 Evidência reforçada pelo seu reconhecimento implícito por parte das próprias autoridades sulafricanas
do apartheid em período posterior. Ver, por exemplo, Davis (1985) e Stiff (1999). 28 O modelo CH deduz uma correlação positiva, embora o terreno montanhoso seja reduzido (2,4%
da área total) comparado com a média de países em guerra (24,9%) e em paz (15,2%). Sambanis (2003). 29 Entre 1978 e 1982 a população abrangida pelo reordenamento das aldeias comunais praticamente
duplicou, passando de 1.160.437 a 1.808.693 pessoas, e a perspectiva era de abranger cerca de 6.500.000
até 1985 (Borges Coelho 1993: 345; 361).
14
estrutura organizativa e produtiva da sociedade rural sem concretizar a alternativa
prevista; cada vez mais esse mundo se constitui como um espaço violento que resvala
para a margem.30
Em finais de 1983 a Renamo é já muito diferente do velho MNR rodesiano. Com
eficácia militar e uma retórica de protesto, vai criando bolsas de apoio social e
consolida-se no território, cresce em número. O recrutamento e financiamento são
elementos essenciais da variável da LQ sobre a duração do conflito que estão ainda
longe de ser totalmente esclarecidos. Todavia, a informação que existe afasta-se da
simplicidade das explicações resultantes da aplicação do modelo CH. As perspectivas
económicas progressivamente bloqueadas das comunidades rurais, assim como a
resposta a esta realidade e a um discurso modernista do Estado que reprime os valores
tradicionais (Geffray 1991, McGregor 1998) são evidentemente factores a ter em conta,
mas sempre inscritos num quadro em que a violência é o mecanismo essencial de
recrutamento, e em que o crescendo das possibilidades da guerrilha corresponde ao
aumento das suas áreas de operação;31 mecanismo essencial, também, do seu
financiamento, que além da componente externa, sobretudo sul-africana, se baseia na
extorsão e na extracção de recursos por meio da pilhagem nas aldeias e localidades, e
das emboscadas e transacções fronteiriças que é ainda preciso circunscrever e
detalhar.32
O Acordo de Nkomati,33 celebrado entre Moçambique e a África do Sul em Março
de 1984, pode bem servir de marco simbólico neste processo contínuo de
‘internalização’ da Renamo. Na sequência deste acordo a África do Sul é forçada a um
envolvimento mais discreto, embora sempre presente e eficaz (Davis 1985), que,
30 Estas duas linhas de explicação são poderosas, e estruturaram mesmo o debate sobre o conflito
moçambicano, opondo os defensores da guerra enquanto agressão e desestabilização àqueles que davam
cada vez mais importância ao impacto negativo das políticas do Estado. Ver, a este respeito, um célebre
debate na Southern African Review of Books, envolvendo Clarence-Smith (1989), Roesch (1989), Cahen
(1989), Minter (1989), etc. 31 Sobre a violência do conflito, e a violência como método de recrutamento, ver entre extensa
literatura, Minter (1994), Gersony (1988), Vines (1996), Geffray (1991), Nordstrom (1997), Finnegan
(1992), Borges Coelho (2003b). A ‘adesão’, embora trazendo consigo perspectivas de acesso a recursos, é
sempre cândida e esmagadoramente explicada pelos próprios ‘aderentes’ como forçada. 32 Gastrow (2001), por exemplo, procura traçar o quadro deste tipo de transacções na África Austral,
observando que a partir de meados de 1980 se estabeleceu uma nova ligação entre grupos dos países
vizinhos e a África do Sul com base no tráfico de produtos como marfim, drogas, minerais, corno de
rinoceronte, mercadoria vária, em troca por bens diversos. Este comércio terá existido também com
outros países com fronteiras com Moçambique, como o Malawi. Sobre a extorsão, por exemplo Vines
(1998). 33 O acordo, descrito como de não-agressão e boa vizinhança, prescrevia fundamentalmente que
Moçambique deixava de apoiar e dar guarida ao ANC sul-africano e a África do Sul faria o mesmo em
relação à Renamo. Ver Armon, Hendrickson & Vines (1998).
15
levando à diversificação dos apoios políticos e materiais da Renamo em sectores
conservadores dos EUA, da Europa e de países da região (Vines 1996), e a uma maior
autonomia política, ajudam a que o movimento atinja a sua ‘maioridade’. Ao contrário
do esperado, o conflito sobe de intensidade e internacionaliza-se com o envolvimento
militar do Zimbabwe (sobretudo no corredor da Beira mas também na via férrea do
Limpopo e no corredor rodoviário de Tete), da Tanzania (na Zambézia) e do Malawi
(corredor de Nacala) ao lado das tropas moçambicanas.34 A Renamo consolida as suas
posições no território como as manchas da pele de um leopardo, provocando e
alimentando-se de micro-conflitos locais, uns antigos, outros relacionados com tensões
entre a tradição e a modernidade, com o acesso à terra, etc.35 Muitos destes microconflitos
são recuperados no pano de fundo do conflito maior e incorporados na retórica
política da Renamo, outros gravitam simplesmente em volta dele. Nos termos da
definição clássica, é a partir desta altura que se pode falar verdadeiramente em guerra
civil.
Um dos problemas mais sérios da LQ está na necessidade intrínseca que tem de
simplificar o número de actores, e também de os imobilizar para poder obter os valores
absolutos que alimentem as operações estatísticas. A ‘população’ é transformada em
categoria singular, destituída de diversidade para além de uma curiosa classificação
étnico-territorial, incapaz de evolução ao longo do processo. Essa categoria é reduzida
ao papel de vítima (que justamente é), sendo-lhe com isso negado o papel de agente no
processo. E todavia seria mais produtivo indagar as estratégias diversificadas que esta
procura para responder à guerra e à violência, estratégias essas que não se limitam a
escolhas ideológicas e têm por base a sobrevivência.
Da mesma forma, o Estado é no modelo CH uma entidade simples, destituída das
complexas relações com o Partido Frelimo, e a sua acção é tida como meramente
repressiva. A sua natureza contraditória – autoritária e ao mesmo tempo popular –
escapa ao crivo, o mesmo acontecendo com a profunda transformação ao longo deste
período, iniciada com as medidas do IV Congresso da Frelimo em 1983, e prosseguida
com as infrutíferas tentativas de convívio com a África do Sul em 1984, e com o
34 Para o envolvimento zimbabweano, iniciado em Dezembro de 1984 e de longe o mais importante,
ver Mlambo (s/d). Alguns autores concedem particular atenção à internacionalização dos conflitos
(Elbadawi 1999; Elbadawi e Sambanis 2000). Todavia, tratam-na sempre como variável endógena que
por efeito de ‘contágio’ ou ‘difusão’ atinge países vizinhos (Sambanis 2003: 43-44; Kalyvas, Wood &
Bell 2007). 35 A partir das suas deambulações pelo país em guerra, Finnegan (1992:71) observou que ‘a natureza
da guerra é tão diferente de região para região que pode ser enganador falar apenas em Renamo’.
16
processo de reformas internas na sequência da abertura ao Ocidente, do abandono
progressivo do modelo socialista (apesar da retórica de continuidade) e de adesão aos
programas de ajustamento estrutural em 1987, portanto ainda em plena guerra. Uma
transformação que resulta, e ao mesmo tempo influi no curso dela.
À entrada da década de 1990, a guerra civil encontra-se num impasse que, se do
ponto de vista militar é real, numa perspectiva mais geral é apenas aparente. É que
entretanto os actores sofreram profundas mudanças na sua natureza, levando em
consequência à reconfiguração das suas relações aos diversos níveis. Desde logo, ao
nível global da Guerra Fria e ao nível regional. De facto, é preciso ter em conta que se
1989 foi o ano da queda do Muro de Berlim, foi também o ano da subida de de Klerk ao
poder na África do Sul, e de início do desmantelamento do regime do apartheid. E, por
uma vez, essas transformações vão no mesmo sentido de uma diâmica interna da qual
fazem parte, sobre um tecido exausto pela guerra, exigências sociais e humanitárias,
vontade política, necessidade económica e interesses empresariais em relação à paz.
A interpretação da guerra exige pois extremas sensibilidade e atenção para a
multiplicidade de actores e respectivas transformações no eixo do tempo, de que resulta
uma permanente reconfiguração das suas relações. Uma leitura diacrónica e sincrónica
que a parafernália de correlações binárias, coeficientes de Gini e relações ‘diádicas’ da
LQ não nos consegue dar. O chamado ‘caso’ a ser estudado não se traduz em dados
dispersos e fragmentados, mas antes numa narrativa elementar, sempre em construção e
portanto sempre polémica, construção essa de que faz parte um rigor de informação e
um depuramento das interferências políticas e ideológicas. Uma narrativa que avança
com o acumulo de conhecimentos e que integra no seu corpo uma racionalidade própria
constituída pela actividade e opções dos seus agentes e pelos diversos contextos em que
estas são levadas a cabo. Este conjunto de elementos é melhor apreendido pelas
categorias de processo ou de dinâmica, no sentido que lhes conferem Kalyvas, Wood &
Bell (2007).
4. Conclusão
Aquilo que aqui foi designado de LQ é um corpo complexo e muito diverso. Todavia,
podem descortinar-se no conjunto de perspectivas que o integram algumas
características comuns. Em primeiro lugar, a racionalidade operativa, que consiste em
reduzir processos sociais da guerra a conjuntos de dados supostamente objectivos para,
17
através da sua combinação estatística, se descobrirem tendências probabilísticas gerais a
partir das quais se constroem variáveis independentes que se considera poderem
interpretar o sentido de conflitos passados e prever conflitos futuros. Uma segunda
característica, que embora não exclusiva é dominante, está no primado da explicação
económica e na econometria como técnica de eleição.
Esta racionalidade levanta dúvidas metodológicas importantes. Desde logo quanto
ao rigor e qualidade dos chamados dados empíricos, que surgem muitas vezes eivados
de erros grosseiros ou codificados segundo critérios duvidosos. Os exemplos são
numerosos. Fearon (2002 Apêndice 2), considera que o conflito moçambicano ocorreu
entre 1976 e 1995 (ignorando o cessar-fogo definitivo de Outubro de 1992), e que a
guerra colonial ocorreu entre 1965 e 1969, considerando esta última como um conflito
interno de Portugal. O mesmo critério é seguido na classificação da base UCDP/PRIO,
que considera a guerra colonial como conflito menor em 1964-1965, intermédio em
1966-1971, e de guerra propriamente dita em 1972-1973 (Strand, Wilhelmsen &
Gleditsch 2002).36 Enfim, Collier, Hoeffler & Söderbom (2001) atribuem à guerra
colonial as datas 1964-1975 (ignorando o cessar-fogo em 1974). Alguns autores
manifestam certa inquietação face a estes problemas, sugerindo novos processos de
recolha37 e revisitações mais cuidadosas dos chamados estudos de caso (Sambanis
2003; Gates 2002; Blattman & Miguel 2009; Mack, Humphreys & Weinstein 2004),
reconhecendo que as variáveis binárias das bases quantitativas não permitem perceber
os contextos, discutindo problemas conceptuais da codificação e mesmo afastando
variáveis que ‘não merecem ser levadas a sério’ (Hegre & Sambanis 2005).38
Mesmo dando de barato o rigor dos ‘dados’, há ainda que questionar o sentido mais
geral do desmembramento de processos sociais reais e da sua redução a séries de dados.
Os problemas contextuais são múltiplos, aos níveis temporal e espacial. As tentativas de
os resolver por meio do estabelecimento de séries temporais (em muitos casos
quinquenais) são pouco convincentes dado que os cortes não correspondem a critérios
de periodização. No caso da aplicação do modelo CH a Moçambique, a única distinção
temporal traçada é a vaga separação entre início e prevalência do conflito.
36 Se é certo que a guerra se agravou em 1972 com a abertura da frente de Manica e Sofala, é preciso
ter em conta que em 1971 ela já fazia mais de 1000 mortos por ano (ver Borges Coelho 1993: 183). 37 Weinstein & Francisco (2005: 186 e segs) sugerem uma recolha diária de informações dos jornais
ao longo dos anos de guerra. Os problemas com este tipo de soluções são evidentes. 38 Nas palavras de Sambanis (2003: 56), ‘Os estudos de caso podem ajudar a corrigir os erros de
medição e a melhorar a conceptualização e medição das variáveis utilizadas para testar as hipóteses
construídas a partir da teoria nos estudos quantitativos. Os estudos de caso podem também ajudar-nos a
construir modelos teóricos melhores’.
18
São estas dados que, agrupados em séries, constituem o ‘fast food’ da teoria. São os
dados relativos a cada ‘unidade’ (cada conflito ou cada país representa uma ‘unidade’)
que, relacionados entre si por meio de complexas fórmulas de cálculo probabilístico,
permitem validar as variáveis independentes, ou seja, as frases do texto da teoria. Esse
texto tem assim origem já não directamente na realidade dos processos mas nesta
intermediação, no decorrer da qual se perde a racionalidade intrínseca daqueles, que
pré-existe à operação da explicação. O sentido da interacção entre fenómenos e actores
desaparece, substituído pelo novo sentido que o investigador quiser imprimir.39 E este
novo sentido é obtido, em grande parte da LQ, no âmbito exclusivo de um suposto
triunfo da economia sobre as outras disciplinas,40 não da economia em geral mas de
uma economia neo-clássica baseada no indivíduo singular que opta racionalmente pela
guerra na base dos seus interesses. Como diz Cramer (2000: 11), assistimos a uma
mudança da explicação dos conflitos, da perspectiva romântica das grandes motivações
para o cinismo dos interesses, no acto ficando as causas reduzidas a ‘abstracções
ahistóricas e funcionais’.41
No caso do conflito moçambicano, para além da falta de rigor da informação,42
o
problema é estrutural pois a ortodoxia da explicação económica endógena impede a
apreensão da importantíssima dinâmica externa que gera e está presente ao longo de
todo o conflito;43 a perspectiva diádica impede a apreensão do número de actores; o
‘congelamento’ destes impede a visão da sua transformação ao longo do conflito e de
como esta dita a reconfiguração permanente das relações entre eles; a perspectiva do
país como uma unidade homogénea impede-nos de ver as complexas variações
territoriais. No conjunto, o resultado é aquele que referem Kalyvas, Wood & Bell
39 Existem já casos radicais de aplicação de variáveis num mundo virtual, por exemplo para mostrar
como a etnicidade e o nacionalismo jogam um papel importante na produção de conflitos. Cederman &
Gerardin (2007: 12) desenvolvem mesmo um programa computacional que facilita a modelação,
simulação, análise e validação de processos sociais complexos com incidência especial nas guerras civis.
Além disso permite inscrever no modelo factos empíricos para calibrar os ambientes e mecanismos nos
níveis apropriados de realismo. Estamos já no mundo asséptico de um país virtual e dos video-jogos, um
mundo liberto da poluição da realidade. 40 O ‘triunfo’ da economia surge em todo o seu esplendor nas palavras de Jack Hirschleifer (citado
em Cramer 2000): ‘À medida que explorarem este continente [dos conflitos], os economistas cruzar-se-ão
com um certo número de tribos nativas – historiadores, sociólogos, psicólogos, filósofos, etc. – que, nas
suas diversas formas intelectualmente primitivas, nos precederam no reconhecimento do lado escuro da
actividade humana. Mas sempre que nós, os economistas, nos envolvemos, varremos evidentemente para
longe estes aborígenes a-teóricos.’ 41 Sobre a crítica geral da perspectiva colleriana, ver Ballentine & Sherman (2003), Malone &
Nitzschke (2005), Mkandawire (2002), Cramer (1997, 2000) e Woodward (s/d). 42 Muitas vezes, suspeitamos mesmo, os dados são ‘massajados’ para caber na teoria. 43 Para novas perspectivas de integração do factor externo, ver por exemplo Lockyer (2008);
Garfinkel, Skaperdas & Syropoulos (2005).
19
(2007: 1-2), quando dizem que ‘estes trabalhos resultam em modelos essencialmente
formais e altamente abstractos, cujo principal problema está no facto dessa abstracção
ser obtida muitas vezes à custa de assunções irrealistas derivadas frequentemente de
analogias económicas cuja operacionalização empírica se revela difícil de levar a cabo.’
Ou seja, onde esperávamos cinema surge-nos uma desarticulada sucessão de maus
retratos que dificilmente remetem para o real.
Procurando na objectividade dos números fugir às crenças que toldam o trabalho do
investigador, a LQ acaba ironicamente por se deixar prender por elas, transmitindo-nos
a estranha e contraditória sensação de uma tecnologia ‘high tech’ accionada por uma
concepção neo-clássica de sabor a século XIX colonial. Exemplo disso é a visão de
grupos étnicos ou religiosos medidos por número de cabeças e arrumados em territórios
claramente circunscritos, movimentos colectivos agindo como um só indivíduo irado e
ganancioso, com o Estado atrás sempre reprimindo – tudo isso transmitido por uma
terminologia merecedora de um estudo semiótico.44
O distanciamento do real e a perspectiva altamente conservadora destes estudos com
a chancela de universidades prestigiadas e de organismos com a importância do Banco
Mundial não surpreendem se tivermos em conta a génese da própria LQ. Parecendo
nova, ela corresponde todavia a um velho olhar do Norte sobre a atávica barbárie do
Sul, uma tentativa de explicar esta por meio da antiga conflitualidade das suas formas
de organização social e da moderna ganância, e cujo interesse relativamente à violência
dos conflitos em países distantes equivale ao receio de que esses mesmos conflitos
acabem por ter impacto também no Norte. No fundo, na sua maioria, a LQ é uma deriva
que se dedica a um laborioso exercício mas que desistiu das verdadeiras explicações.
Falta-lhe aquilo a que Theda Scokpol chamou de ‘imaginação histórica’, e tudo isto não
seria motivo de preocupação se não se desse o caso de ela informar muitas decisões
políticas importantes relativamente ao fenómeno dos conflitos. Decisões que afectam o
seu curso e o seu desfecho.
44 Exemplos são a utilização do termo ‘díade’ (pedido de empréstimo à citologia, onde significa cada
um dos cromossomas duplos na divisão reducional do núcleo celular) aplicado à relação entre o Estado e
os rebeldes; a visão do processo como um ‘puzzle’; a violência atávica das sociedades africanas; e os
números, sempre os números e as fórmulas para emprestar à interpretação uma aparência de
cientificidade.
20
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