quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

À espera do Messias

No auge da guerra de desestabilização nos anos oitenta a Frelimo anunciou que o Presidente Samora ia assumir as rédeas do combate. Já nessa altura achei o anúncio estranho porque como chefe de tudo – e ainda mais Marechal – ele era o principal responsável pelo esforço de defesa do país. Lembro-me que na altura se comentou a sua entrada em cena como o momento crucial que iria pôr termo a tudo. E dito e feito. A Casa Banana foi ocupada, os “bandidos armados” fugiram (desta vez literalmente) em debandada. Só que foi sol de pouca dura. Os ganhos iniciais foram perdidos, a guerra aumentou e ninguém mais falou da entrada em cena do grande chefe. Há uma febre estranha na nossa postura política, cujo principal sintoma é ficar à espera do Messias. Não é algo religioso. É algo político. Da mesma maneira que a narrativa básica da nossa política consiste na ideia do herói que nos vem tirar do sofrimento para nos conduzir à felicidade (independência num caso, democracia noutro), parece existir esta expectativa entre nós povo que esse Messias virá. Um dia.
Se essa expectativa existisse apenas assim até porque não seria assim tão grave. O problema é que ela tem reflexos no nosso comportamento político. Recentemente, quando o líder da Renamo anunciou que em Março iria tomar o poder algumas pessoas festejaram isso com frases como “acabou a paciência”. Já antes disso, quando foi emboscado ou quando colocou mais um ultimato, disse-se o mesmo tipo de coisas. Para não fugir à regra o ataque recente, e hediondo, contra o Secretário-Geral da Renamo, voltou a receber o mesmo tipo de reacção: a bomba rebentou, agora é que vão ser elas, etc. Estas reacções parecem-me manifestações do nosso messianismo político. A solução dos nossos problemas não está connosco, mas sim com um Messias qualquer por aí.
O problema é que o poder desse Messias é apenas artefacto da nossa imaginação, manifestação da nossa própria impotência por preguiça de assumir as obrigações cívicas que o sistema político democrático nos impõe. Já por várias vezes escrevi neste espaço que qualquer grupo armado organizado tem capacidade para desestabilizar um país como o nosso. Confundir isso com capacidade para conduzir uma guerra e derrotar o exército nacional é, contudo, ingênuo. E muita gente, principalmente intelectuais auto-intitulados independentes, ou alguns membros de redações de jornais como o Savana e o Canal de Moçambique, tem caído nesta cilada. Se nessa queda fossem só eles abaixo, a gente ainda podia descontar. O problema é que isso parece ser interiorizado pelos “Messias” que assumem atitudes intransigentes e adoptam um discurso violento que reduz todas as suas opções à confrontação armada.
Eu condeno o ataque ao Secretário-Geral da Renamo. Considero-o mais vil ainda se tiver tido motivações políticas, hipótese que infelizmente só um ingênuo pode descartar. Mas todos nós somos responsáveis pelo estado a que se chegou. A nossa responsabilidade não vem de não nos opormos com maior veemência à destruição do tecido que devia moralizar o nosso sistema político. Ela vem desta atitude messiânica que nos tem impedido de discutir este problema de forma menos polarizada. E aqui insisto: o primeiro passo para uma melhor discussão deste assunto devia ter sido um maior compromisso com a constituição. Não me farto de repetir: Defender a constituição não significa dar razão a este ou aquele. Defender a constituição significa identificar um espaço normativo a partir do qual podemos discutir os méritos das posições defendidas sem pormos em causa aquilo que torna as nossas reivindicações legítimas.
Independentemente de toda a história do conflito armado em Moçambique – pessoalmente, sempre achei que a importância do Acordo de Roma fosse exagerada em todas as discussões – desde 1992/94 que vivemos num sistema político com um poder que teoricamente é legitimado pela referência à constituição na medida em que esta protege a crítica e a diferença de opinião. Todo o ataque a este documento – e ao longo deste conflito a Renamo, coadjuvada por intelectuais ditos independentes sempre atacou este documento – torna a reivindicação ilegítima e, por via disso, inviabiliza a própria solução. Todos nós participamos activamente na destruição deste espaço normativo e, por isso, aparecermos hoje para reclamar que o país esteja a ser tomado de assalto por “gangs” parece-me ingênuo e insensato. Pela via que a própria Renamo escolheu tinha de contar com esta possibilidade. E nós fomos coniventes.
Podemos evocar a constituição para recriminar isto ou aquilo, mas enquanto o seu espírito não tiver penetrado a nossa mente e neutralizado o messianismo que existe dentro de nós para falarmos a partir dum espaço normativo comum teremos que nos preparar para o pior. E esse pior não é uma guerra civil (por muito que algumas pessoas torçam por isso), mas sim um conflito armado que vai acabar com a Renamo como uma força política e vai colocar o país nas mãos de “gangs” que acreditam estar a prestar um serviço à nação.
É por estas razões que leio sempre com renovada esperança textos que procuram ocupar este espaço que teimamos em destruir. Vicente Manjate, por exemplo, escreveu um texto com o título “Pacto social pacificamente violento” que me parece uma boa chamada de atenção. Ele escreve, e eu cito, “[C]omeçou por ser psicológica, ninguém se importou; virou verborreia que mais parecia um inocente jogo de palavras, com promessas e juras; e, muito rapidamente passou para violência armada efectiva, que hoje todos condenamos e parece algo extraordinário. Não há nada de novo aqui! Por um lado, temos uma sociedade que permite e convive com um partido político com homens armados, em flagrante ilegalidade, mas se surpreende com o flagelo da violência armada. É doentio! Condeno a violência e, condeno ainda mais quem só condena a violência mas, consente que homens armados andem à solta. Temos uma democracia conquistada na base de violência armada e suportada por mentes militarizadas. A violência é um dos pressupostos e elementos estruturantes da nossa democracia.” Eu concordo com este desabafo. Nós somos o problema!
Não faz muito tempo que o Télio Chamuço também escreveu linhas muito pertinentes a propósito da decisão da Renamo de procurar por outros mediadores. Nunca comentei esta decisão, mas aproveito para o fazer agora. Se ainda havia alguma coisa que me dava alento nas negociações falhadas era o facto de elas terem como mediadores compatriotas nossos. Quantos países no mundo conseguem uma façanha dessas? E já agora, quantos jornais proclamaram estes heróis nacionais suas “figuras do ano”? Então, o Télio Chamuço escreve, “Dhlakama [o texto refere-se a declarações feitas por este num jornal] profere uma saraivada de declarações que, a meu ver, não indiciam que pretende criar, desenvolver e solidificar uma atmosfera de estabilidade político-social. É inacreditável o que se lê ali (e digo isto de forma destemida, sem qualquer receio das habituais vulcânicas e violentas reacções dos seus seguidores, sequazes e apaniguados – cujo único argumento por eles desenvolvido consiste em apelidar de G-40 e lambe-botas da Frelimo à quem se opõe às intermináveis ameaças do líder da Renamo). É que isto tudo já farta: as ameaças maldosas, as chantagens belicistas, as pretensões megalómanas, a exacerbada ganância pelo poder (que pretende alcandorar a todo custo sem se importar com os meios), as sugestões maliciosas camufladas de "propostas", as promessas sanguinárias contra o povo de que ele faz refém, de tudo. Já me extenua à paciência viver sob esse clima de terror político. Pelos vistos, agora, o problema não é nem a Renamo nem a Frelimo, mas sim os mediadores... Por isso, numa medida "genial" e "salomónica", há que substitui-los. Agora envolve-se a igreja católica e o presidente sul-africano, mas não muda uma única sílaba nas reivindicações que realiza... Por que razão essas reivindicações deveriam ser aceites? Somente porque ele quer? Porque, caso contrário, vai assassinar inocentes (novamente)?”
A linguagem é forte demais, mas o apelo que o texto faz ao bom senso é mais do que evidente. E eu concordo com ele também. Dói até ver que para alguém falar, isto é emitir a sua opinião, tem que prefaciar a sua intervenção distanciando-se deste ou daquele grupo ou simplesmente dizendo que se está nas tintas. Só isto mostra até que ponto o problema somos nós.
Ao contrário do que a mitologia diz, o Messias nunca trouxe a felicidade para ninguém. Não há memória disso na história, começando pelas próprias religiões monoteístas que sempre inauguram fases totalitárias. Mesmo na política a experiência foi sempre a mesma. Os dois grandes exemplos foram o comunismo soviético e o Nazismo alemão. O messianismo é anti-político, quando o que nós precisamos é de mais política. A intransigência da Renamo funda-se neste messianismo que vê no acordo a solução final para todos os problemas e esquece que um acordo político determina apenas as condições dentro das quais cada uma das partes ganha o direito de alargar o seu círculo de influência.
Aceito que um partido político seja assim tão inepto. Mas nós também

1 comentário:

Unknown disse...

Eu sempre leio e respeito as suas linha mas dessa vez e na minha opiniao nao disse nada apesar de falar muito. Alias, so veio decipar as minhas duvidas sobre o lado em que estavas. Es da Frelimo e isso diz tudo.