Há alguns meses que tenho vindo a analisar as transcrições das audições feitas por uma comissão de inquérito na África do Sul na sequência dos graves incidentes de Marikana em Agosto de 2012. Recorde-se que esse incidente resultou da tentativa da polícia sul africana de pôr termo à greve de mineiros. 34 mineiros foram mortos a tiro nessa operação. Faço essa análise no âmbito dum projecto de pesquisa que tenho com colegas sul africanos da Universidade de Witwatersrand. O projecto estua o papel do protesto na constituição de espaços democráticos.
Na análise parto dos depoimentos prestados por certas pessoas durante as sessões dessa comissão de inquérito, perceber que ideia de vida quotidiana é dada por adquirido por essas pessoas e como é que os aspectos estruturais implícitos nessa ideia podem ter contribuído para produzir uma situação que tornou o massacre possível. Nos últimos dias analisei o depoimento de Joseph Vusi Mathunjwa, presidente do sindicato AMCU (Association of Mineworkers and Construction Union), que foi ouvido durante 7 dias consecutivos. As transcrições a que tive acesso perfazem cerca de 250 páginas. O que transparece no depoimento deste indivíduo é algo que mereceu pouca atenção nos vários livros e artigos escritos sobre o assunto, mas que foi levantado pela equipa de defesa da companhia mineira (Lonmin) durante o inquérito. Havia um conflito sério entre sindicatos, uma vez que na prática só o Sindicato Geral de Mineiros (NUM) tinha o direito de negociar em nome dos mineiros com o patronato. O AMCU não tinha esse direito.
A escalada do conflito, portanto, explica-se parcialmente pela forma como estes dois sindicatos procuraram preservar o seu espaço de actuação e a sua prerrogativa de falarem em nome dos mineiros. O problema, contudo, é que as exigências dos mineiros, sobretudo dos “furadores de rochas” (que queriam um aumento salarial até 12.500 Randes), não podiam ser acomodadas pelo NUM, o que tornou este sindicato ilegítimo aos olhos dos mineiros e abriu espaço para o AMCU se insinuar como alternativa. Isto criou uma forte tensão que desembocou em actos de violência envolvendo os mineiros (contra o NUM) e o sindicato (contra os mineiros em greve) com mortes e feridos no meio. Agora, um aspecto muito interessante de tudo isto é a forma como os mineiros, enquadrados pelo AMCU, protestavam.
Com efeito, eles ocuparam uma elevação (em Marikana) e a partir de lá exigiram que a direcção da companhia fosse lá ter com eles para falar sobre como pôr termo ao conflito. Três milhares de homens armados de paus, facas e todo o tipo de “armas tradicionais” (como se diz lá na África do Sul) a exigir isso. Pela análise que faço dos depoimentos de Mathunjwa parecia haver uma relação muito forte entre essa exigência e a necessidade que os mineiros tinham de serem tratados com respeito. Esse respeito só podia ser observado se a direcção conversasse com eles lá no seu acampamento, à luz do dia e representados por um sindicato que não respeitava a legalidade por achar que todo o complexo mineiro era um conluio neo-liberal de co-optação de elites (o AMCU até usou a expressão “rent-a-black” para descrever a relação entre o complexo mineiro e a elite política e sindical).
Porque é que conto isto? É porque vejo paralelos interessantes com a nossa própria situação. O líder da Renamo tem o hábito de exigir que o Chefe de Estado vá ter com ele lá onde se encontra acampado. Não sei se é fortuito, mas dou em mim a tentar perceber se haverá uma simbologia qualquer que me escapa aqui. Há outros paralelos, mas talvez mais polémicos. Um é o paradoxo de paralisar ou inviabilizar aquilo que, no fundo, é o nosso próprio sustento, neste caso concreto o Estado. Outro é a prerrogativa que o impasse criado pela nossa própria intransigência nos dá de fazer recurso a seja o que for para alimentar essa intransigência, incluindo naturalmente o uso da violência “em legítima defesa”.
O outro paralelo polémico é o que o Facebook chama de “solução angolana” e que algumas pessoas estão a interpretar literalmente. Sempre esteve claro ao longo do conflito de Marikana que o endurecimento de posições no fim acabaria por afectar o elo menos forte, se calhar até com consequências trágicas. E o elo menos forte, longe de toda a romantização marxista, é constituído pelos próprios mineiros. Gozando da simpatia pública (que na verdade era apenas expressão da hostilidade contra as elites políticas e suas ligações com o capital mineiro), do efeito inebriante de números (3000 mineiros a marchar naquele compasso de toi-toi…) assim como de vitórias iniciais (ataques à polícia com danos materiais e mortes bem como a morte de trabalhadores que eram vistos como estando a quebrar a greve) os mineiros não fizeram plano “B”, reduziram todas as suas opções ao que der e vier. A articulação com a “solução angolana” vem do facto de que ao contrário do que muitos pensam, Savimbi não morreu em resultado apenas dum plano angolano de o eliminar. Ele foi vítima de si próprio no sentido em que pelo seu curso errático e intransigente privou-se de alternativas que teriam permitido, talvez, a sua acomodação. A reacção às “emboscadas” revelam a vulnerabilidade do líder da Renamo e dizem algo aos que o querem bem, nomeadamente que deviam deixar de dar ouvidos aos jornais “Savana” e “Canal de Moçambique” neste tipo de matérias.
De qualquer maneira, há um certo sentido em que analisar estes materiais parece ser uma incursão à mente política da Pérola do Índico, e isto não só do lado da oposição. Uma postura política assente na convicção da razão pode não ser uma boa ideia. Por um lado, ela conduz à tirania da razão que gera a atitude segundo a qual os fins justificariam os meios. Por outro lado, ter razão pode ser suicida. Nenhuma destas atitudes é compatível com a viabilidade duma sociedade.
Comments
Bukamiana Ndomanuele As vertigens a que os nossos assuntos e não assuntos nos provocam. O 22 de Fevereiro, com certeza, não é e nunca será uma solução viável para o cenário que Dlakama tem vindo a criar na "pérola do Índico". Existe um conjunto de vaiáveis, índices e indicadores que são intrínsecos a realidade angolana, e que aplicado a Moz, pode de facto resultar em coisas parecidas.....
Elisio Macamo é. e isso pela força que a dinâmica interna das coisas tem.
Marcelo Tavares Momade Desculpa por desviar meu comentario da analise feita neste post, alias, é uma anologia fenomenal. Macamo tem ostentado sempre nos seus posts a necessidade de haver um plano "B" no que concerne a tensao militar. As reaçoes belicistas de ambas as partes face as discordancias no dialogo politico nao é o plano "B" das partes?
Elisio Macamo acho que dum modo geral a violência nunca é plano b, a não ser para o mais forte. o menos forte precisa mais de plano b justamente porque o recurso à violência pelo mais forte põe cobro a (quase) tudo. a estratégia da renamo, se é que ela tem alguma, tem pecado justamente aqui. o seu plano b tem sido a ameaça de violência. mas se analisarmos as coisas friamente, e temos vindo a ver isso, a violência não é opção para ela. a renamo sai mais a perder.
Imtiaz Vala Instransigencia extrema degenera-se na irracionalidade!
Gito Bazima ..." don't put all your eggs in one basket". Plano B é sempre importante quer seja em jogos como negociações ou mesmo em decisões, aparentemente, irrelevantes. A não formulação do plano B pode significar alguma dimensão de ingenuidade e, por isso, conduzir para resultados de jogos de "soma zero" - desastrosos. Pelo discurso, o Líder da RENAMO é um ser super confiante, destemido e capaz, bastando, para isso, que ele queira. Negociar através da arrogância ou negociações de um "tirano de razão" assumem que a parte contrária não tem opções diante da vontade daquele.
A ausência de plano B ou a origem de certos tiranos da razão pode ser resultado de desgaste por parte de quem deseja a alteração do "status quo". Isto aplica-se tanto para o Líder da RENAMO como para os mineiros de Marikana. Porém, entenda-se que desgaste não significa ligitimidade moral ou legalidade da exigência. Pode-se, efectivamente, ficar-se desgastado numa exigência injusta, pois as imagens feitas a volta do fenómeno são singularmente/ isoladamente construidas e alimentadas.
Elisio Macamo concordo. mas política é isto mesmo. justamente porque há desgaste você precisa de rever as suas opções e alargá-las. a estratégia dos mineiros foi de limitar as suas opções. até à véspera do massacre eles diziam que iam acabar de vez com a polícia. é o mesmo discurso que ouvimos da renamo. constantemente. acho o post recente de Vicente Manjate sobre este assunto muitíssimo pertinente. o Télio Chamuço também escreveu um post interessantíssimo sobre o mesmo assunto há pouco menos de duas semanas se não estou em erro. você não faz política reduzindo as suas opções.
Vicente Manjate Elisio Macamo, obrigado. Mas já não é tempo de o accionista maioritário (a sociedade, os governados), conceber o seu Plano B para proteger os seus activos, presentes e futuros? Normalmente, os sócios minoritários não têm Planos B que não dependam da vontade do sócio dominante exactamente porque este sempre aparece como o maior prejudicado na briga entre os pequenos, com o objectivo de granjear maior simpatia e confiança daquele. Mas, se o maioritário nunca teve nenhum Plano A para si mesmo, e sempre andou à boleia ideológica de um dos sócios minoritários, dificilmente terá um Plano B e será sempre manientado pelas ambições de domínio daqueles pequenos viveiros de violência.
Elisio Macamo aí está o problema! muitos de nós fomos na onda da polarização. ao invés de discutirmos este assunto procurando por um espaço comum - por exemplo, a defesa da constituição - andamos aí na defesa da prerrogativa que todo aquele que se sente injustiçado tem de violar essa constituição. este é que é o problema. só sabemos aplaudir um ou outro lado, mas não existe nenhum espaço onde nos encontramos.
Ivan Semedo Achei interessante a analogia. No entanto quer me parecer que a analogia possui uma fragilidade grotesca que se cinge no facto de nunca ter ouvido ou lido na media que o Presidente Dhakama exige que o Presidente (Guebuza ou Nyusi) venha negociar com ele na suas "bases". Já ouvi sim alguns comentadores a proporem isso. Pelo contrário, vi sim o Presidente Dhlakama encontrar-se com os Presidentes da Republica Guebuza e Nyusi em Maputo. Portanto, não seria a analogia melhor aplicada ao contexto moçambicano no sentido inverso dos actores?
Elisio Macamo olha, um ponto de ordem e não é por maldade. o termo "grotesco" cria um mau ambiente para a discussão. pode achar a analogia frágil ou mesmo fragilíssima, mas qualificá-la de grotesca não é bom para o debate. isto sobretudo quando a seguir diz que porque nunca ouviu ou leu, como se tudo o que lê e ouve se confunde com o que acontece. na circunstância, não deve estar bem informado sobre o assunto, pois essa exigência já foi feita pelo líder da renamo. ademais, embora não seja exactamente a mesma coisa, e possivelmente tenha outras explicações (segurança, etc.), o facto de o líder do maior partido da oposição com interesse em pôr termo a este conflito não se encontrar na capital do país é caricato. a política não se faz no mato. faz-se lá onde os orgãos soberanos do poder se encontram. neste sentido, não considero a analogia que faço frágil.
Ivan Semedo Esta bem. Retiro o termo grotesco. Não pretendia ofender. Queria ter solicitado a fonte da exigência ou solicitação do encontro nas matas. Gosto dos mecanismos de raciocínio que utiliza. Ampliam a mente. No entanto, entrando na ordem de ideias que sustentam que a analogia não é fraca, a analogia que fez pode ser usada nos dois sentidos dos dois lados de actores. Posto que a ditadura ou arbritariedade da razão também pode ser encontrada naqueles que fazem apologia pela legalidade do poder (nos dois casos FRELIMO e dos donos das mineiradoras).De modo similar, a Renamo e associação sul africa pode sustentar a sua posição com a ilegitimidade dos mecanismos que geraram os representantes do Sindicato sul africano e do empossamento das autoridades moçambicanas actuais.
Elisio Macamo perfeitamente. chamo a sua atenção para o último parágrafo, principalmente para a seguinte observação: "De qualquer maneira, há um certo sentido em que analisar estes materiais parece ser uma incursão à mente política da Pérola do Índico, e isto não só do lado da oposição." portanto, esta reflexão não é apenas sobre a atitude da oposição. uso a oposição para apenas ilustrar um aspecto particular, nomeadamente o da ausência de plano b. eu posso lamentar a ausência de estratégia por parte do governo, mas dadas as condições não é ele que precisa de plano b. é a renamo. e isto não é tomar partido por ninguém. a alternativa para a renamo é a sua destruição por muito improvável que isso possa parecer a quem se fascina com multidões e com a inépcia do nosso exército.
Dolce Saia Gostei desta analogia comparativa que o Dr. Fez e acho que sempre procurou fazer em suas analises. Acho que as duas partes, Renamo e o Governo deviam pensar no melhor plano B porquea violencia lesa, nao só ao povo, mas também, a saude politica do pais.
Emerson Eduardo Nhampossa Não poderia ficar fora do jogo no contexto actual da política moçambicana pois todas palavras ofensivas são pronúncio da violência. Mesmo que haja plano B em ambos os lados não mataria a sede da razão de cada lado. Digo isto porque a RENAMO é vítima da sua pouca criatividade e o uso da força Já o fragiliza à bastante tempo. Por outro lado a FRELIMO se beneficia por tudo que a oposição armada usa. Faz sentido sim que haja uma saturação por parte de quem queira governar porque os meios justificam os fins que é buscar soluções do conflito.
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