terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Crónicas do País Profundo I - VIII Por Livre Pensador

Cronicas do Pais Profundo I - Mocimboa da Praia

Cansado de ler tanta treta por aqui, sobre as virtudes e defeitos do Pais Real, decidi desta vez nao deixar o credito por maos alheias e dar o meu testemunho muito pessoal sobre o vivi na pela durante uma vintena de dias...
Cheguei de carro, aos trancos e barrancos, vindo de Namoto - vai ser um espanto para alguns - e encarei logo na entrada o movimentado aerodromo de Mocimboa da Praia para ir ver "in loco" o que os relatorios do Banco Mundial e as presidencias abertas de helicoptero propalam sobre as promessas de desenvolvimento. Quiz perceber ate que ponto a chegada do mega projecto esta a melhorar a vida dos que la ja estavam. Ricos ou pobres. E nao gostei de ver.
Aterram naquele aerodromo 10 aeronaves em media, por dia, entre helicopteros, avionetas e ate jactos executivos tipo Embraer - 145 ou Gates Learjet...bem longe dos olhares forasteiros e com vedacao de arame farpado. Quem la entra. Quem la sai, so se ouve o roncar dos passaros de metal. Nada se ve. Os locais, vao-se habituando ao ruido deste constante vai-vem entre as plataformas de gas e o aerodromo. E dali para Maputo ou Johannesburgh.
Nem um pe alface. Nem um fosforo. Nem um lanho sao comercializados pela populacao, comerciantes ou simplesmente limpadores de lixo que vivem na regiao. Tudo vem directo da Africa do Sul para a Plataforma. Duty-Free. Esta a ver por que nao me espanto Américo Matavele?

Aqui, sim, o desenvolvimento e so uma promessa feita de helicoptero!

E para se chegar la? Um pavor de estrada. Quer por Namoto, ou por Macomia, a estrada e uma picada em constante reabilitacao. Este ultimo troco, teve as suas obras iniciadas em 2009 e ate hoje nem 50% do prometido foi cumprido. E o que foi, e de muito ma qualidade. Primeiro, sao os multiplos empreiteiros para um mesmo troco de estrada. Cada um com a sua tecnica. Cada um com a sua mafia...
Li por ai que construir um quilometro de estrada asfaltada em Mocambique custa um milhao de dolares. Ora, de Macomia a Mocimboa ou a Mueda, pagam-se dois, para construir um quilometro de picada! E por essa razao que acho que o AEG deveria meter-se num UNIMOG como eu para perceber bem as aldrabices que lhe poem na secretaria...
O pequeno troco ja asfaltado de Macomia a Mocimboa consiste somente de uma camada fina de alcatrao sobre areia. Nem brita, nem betao, para fazer a "cama" como soi dizer. Na proxima chuvada vai ser como o prolongamento da nossa Julius Nyerere. Vai descer do planalto dos Macondes ate as bermas. Por alguma razao estamos perante uma obra da Sta. Engracia.
No entanto, entre a plataforma da Anadarko em Palma e Mocimboa, ja esta sendo concluida uma autentica alcatifa supervisionada pelo vice-ministro das Obras Publicas, que ja veio alardear a excelencia da empreitada. Afinal, e possivel construir com qualidade em Mocambique. Basta obedecer ao patrao!

A populacao vai fazendo o que pode para sobreviver. Os empresarios tambem, lixando os camioes com amortecedores partidos e quejandos. Promessa de desenvolvimento no relatorio.

Mocimboa da Praia tem grande potencial turistico e madeireiro. A sua bela baia nao o desmente. Ha tambem um grande e pujante empresario local - FARUK. Ele e o cara. O sultao local, que faz estremecer tudo e todos. Tem o empreendiemento turistico mais famoso da regiao e pretende agora reabilitar o porto local, dragar o seu canal de acesso. Para tal, ja pediu ao Governo - seus desejos sao uma ordem - para importar mao-de-obra do Paquistao. Porque diz que os locais nao percebem do assunto...
Enfim, tudo isso seria normal, se nao fosse este o mesmo empresario cuja madeira foi apreendida no Porto de Nacala quando se preparava para ser exportada em bruto para a China. Nunca mais ninguem falou no assunto na nossa imprensa. Pois bem, saibam, que o FARUK agora pretende exporta-la directamente da floresta para o mar.

Duvidam? Agendem uma visita ate la para ver...


Crónicas do País Profundo II – Road to Pemba

Antes de deixar Mocímboa, dei uma vista de olhos ao comércio local. Tudo funciona, grosso modo, como no tempo dos cantineiros portugueses. Vendas a crédito por dinheiro ou por escambo a pescadores, madeireiros, carvoeiros ou até pequenos agricultores. Intermediários ganhando comissões dos grossistas de Pemba ou por vezes, de Nampula e Nacala. E muitos vendedores de quase tudo Made in China, India ou Pakistan, vindos da Tanzania ou da região dos Grandes Lagos. Há também um campo de futebol e outro de básquete, onde a malta jovem de vez em quando vai lá esticar o esqueleto. 
Quanto à gestão municipal, não obstante a nuvem de ONGs que por lá pululam para “ensinar” o município a governar uma vila com estatuto de cidade, 200 metros de estrada alcatroada foi tudo que viu em 4 anos de consulado. O resto é buracada onde não se sabe se é areia ou asfalto. Sendo que a estrada em questão vai ter ao famoso aeródromo e dalí irá também ligar-se a Palma. Patrão que é patrão...
E foi por esse tapete inusitado que peguei a estrada até Pemba, numa viagem infernal até Macomia, no esquiva-cratera ou em terra batida pelo mato adentro (por causa das famosas obras que iniciaram em 2009). Aqui duas empresas portuguesas empatam as obras até dizer chega. São quase 200 km de estrada por asfaltar desde 2009. Ainda não fizeram sequer 50 e todos, troços separados por vias de terra batida! Mas a partir de Macomia tudo se transfigura, a estrada torna-se num tapete, só com algumas irregularidades a partir de Meluco, mas passageiras, é o paraíso das bicicletas e das motas. Tudo funciona a duas rodas. E como verão este é um cenário que se repetirá nos próximos capítulos. Mesmo o governo central, posicionou lá as suas jóias tecnológicas, como por exemplo, uma delegação do inútil MCT e outros. ONGs gravitam também lá como mosquitos. Locais históricos da luta armada também, devidamenre sinalizados.
Chegado a Pemba, dou uma saltada para ver o aeroporto local. Está em obras de ampliação, na parte da sala de embarque e desembarque. Outra empresa portuguesa. Enquanto isso, o embarque e o desembarque vai se fazendo numa tenda de casamentos em lona climatizada. Inclui-se aqui, as lojas duty-free típicas de aeroportos “internacionais” como o de Pemba...
Dalí pega-se uma longa marginal, onde certos troços estão, como já é normal, esburacados. Em alguns casos, enlameados também, como é o exemplo da zona da base naval. Mas o cenário melhora à medida que vamos subindo em direcção à cidade alta. Pemba parece fervilhar apenas com o turismo ainda. Não obstante, é aqui onde se encontra o punhado de beneficiários do mega projecto da Anadarko. Conseguiram contratos de fornecimento de combustíveis e rent-a-car. Isto porque, para já, ainda não aterram cargueiros Antonov a jacto em Mocímboa da Praia. Tão logo a estrada Palma-Mocímboa esteja operacional, estes pembenses felizardos vão ficar a chuchar o dedo pois os Dodges e GMC vindos de Houston serão entregues directamente ao portador em Mocímboa. E tudo voltará ao que sempre foi para eles durante séculos. Intermediários dos grandes armazéns de Nampula e Nacala comprando matéria-prima aos locais e pagando com quinquilharia e bugigangas orientais. Colonialismo provincial por inépcia de uma estratégia inclusiva governamental...
O sector hoteleiro, já tradicional na urbe, é que parece ter um futuro mais próspero face a este mega projecto. Matéria-prima é que não falta. Praia do Wimbe, sol e mulheres bonitas. Tudo que um americano tranquilo desejará para recarregar baterias antes de regressar à plataforma. Há já serviços deluxe exclusivos de meretrizes ligando Maputo-Pemba para dalí partirem de helicóptero até Palma, onde a Anadarko montou uma pequena cidadela com instalações hoteleiras de alto quilate para a região. Em breve, poderão também rumar para Mocímboa, para o gáudio das locais.
Consequentemente, a febre do imobiliário está instalada em Pemba. Especulam-se terrenos e logo se constrói apart-hoteis ou mesmo condomínios sobretudo junto à zona do Wimbe. Já a oferta de restaurantes e bares é mais limitada. Tirando o Dolphin – um lugar de culto para os apreciadores do Blues e das beldades em bikini dos 4 cantos do mundo e que ilustra esta crónica, só tocossado mesmo para apascentar a fome. Ou então, as barracas! Mesmo assim, a demanda é muito maior que a oferta. Mas isto, tem colocado um quebra-cabeças muito grande à EDM. Por essa razão, é normal ter um corte de energia num desses el-dorados. Aí funciona o gerador a diesel, quando há diesel, porque agora, como contractos assegurados com mega projecto, o combustível por vezes escasseia na cidade. Aliás, como verão nos próximos episódios, a chegada destes mega projectos colocou desafios muito grandes ao Governo que nunca se preparou para o efeito.
Mesmo ciente da grande demanda de energia que haveria por causa da febre do imobiliário que data há vários anos ou das próprias demandas energéticas para operar com os equipamentos em terra, minas, etc. a EDM só vai fazendo papel de bombeiro. É outra promessa de desenvolvimento feita de helicóptero aquela que narra que o Estado está a investir em infra-estruturas energéticas e de telecomunicações para responder aos anseios da população. Se antes a oferta era insuficiente e de má qualidade, hoje, toda ela foi priorizada para assegurar os serviços mínimos dos mega projecto e empreendimentos correlatos de serviços prestados pelos moçambicanos felizardos. O grosso da população começa a adaptar novos estilos de vida, para suprir estas falhas estruturais na planificação do desenvolvimento económico do país. 
O mesmo se pode dizer em relação ao fornecimento de água potável onde, não obstante a presença do FIPAG, é ainda a água do poço a melhor defesa de um empreendimento turístico. A chatice é que, por vezes, ela sai turva ou até salobra, como é o caso das áreas próximas ao mar.
Em suma, na cidade de Pemba, os pelouros das Obras Públicas e Transportes e Comunicações tem sido incapazes de apresentar um plano de acção com um horizonte de 10-20 anos para colmatar o problema. Estão à espera das PPPs. Está a ver por que não me espanto Américo Matavele?

No próximo capítulo vamos até Montepuez passando por Ancuabe e Namanhumbir.
Crónicas do País Profundo III – Rumo a Montepuez

Para quem desce por Macomia há um atalho por Ancuabe que permite poupar uns 28 km de asfalto e conhecer um pouco mais da realidade das populações do interior de Cabo Delgado. Por uma estradita bem terraplanada chega-se nesta época fria à disciplinada vila de Ancuabe. De facto, este deve ser um dos poucos lugares de Moçambique onde todas as funções políticas e governamentais convergem numa mesma localização. Uma autêntica cidadela a la “Nachingweya”. Aqui, como devem calcular, só trémula a bandeira vermelha da FRELIMO. Aliás, desde Mocímboa só vi uma única vez a bandeira do MDM. Da RENAMO, nem cheiro. Em Ancuabe, lado a lado à célula do partido no poder, estão a esquadra de polícia, o governo do distrito, o plano e finanças e actividades económicas, enfim, tudo alinhadinho numa precisão norte-coreana. Lixo na rua mal se vê. E até o dumba-nengue é estranhamente disciplinado. Uma vez mais, é a bicicleta que domina a paisagem. Todos aqui agradeceriam ao Dino Foi e a outros chinólogos locais por incentivarem a sua exportação para Moçambique. O mesmo se pode dizer em relação às Li Feng, que são as motorizadas de dois tempos para habitantes de um outro status social. 
Estes meios de transporte são o segredo da produtividade agrícola do norte de Moçambique. Com eles, os camponeses, intermediários ou chico-espertos transportam dezenas de kgs a pedalada por terrenos arenosos ou montanhosos. Como formigas humanas não esperam nem pelo chapa 100 e nem pelas soluções governamentais. Bastam-se a eles próprios. De Macomia saem com um saco de 50 kg de carvão para vender em Meluco ou vice-versa. Saem de Ancuabe com lenha e vão até ao cruzamento Pemba – Montepuez e assim por diante. Em Ancuabe, hoje há Internet, graças à Movitel. E rede móvel também, pela mesma razão. A MCel mal se apanha na auto-estrada. E a Vodacom, essa há muito que está desaparecida em combate. 
Após uns 15 minutos de viagem roçando o monte Ancuabe que ilustra o post atinge-se a auto-estrada que nos leva até Montepuez, passando antes por Namanhumbir, o paraíso do rubis à face da terra. E para quem já tiver lido as histórias narradas por Pedro Nacuo no Notícias, vai-se se espantar em saber que mais de 80% dos garimpeiros que palmilhavam a terra a mando do patrão Pachinuapa estão hoje no desemprego, pois transformaram-se em vendedores ambulantes de beira de estrada. Tudo porque a venda daquela concessão a uma multinacional britânica fechou as portas àqueles que não sabem riscar. Agora é a técnica que manda extrair e lapidar rubis, acabou-se a força bruta. No entanto, os angariados oriundos da África Ocidental ainda por lá estão e em força com suas largas casas de alvenaria e TV satélite. Versáteis como são, adaptaram-se às mudanças locais transformando-se em empresários import & export na luz do dia, que abastecem os ex-garimpeiros de Pachinuapa com todo tipo de quinquilharia em troca de uma comissão. E na calada da noite, ainda compram rubis extraídos de lugares que só eles sabem onde ficam. Escusado será dizer que aqui ninguém paga impostos, mesmo porque é muito passaram tardes em longas patuscadas com funcionários das Alfândegas de Moçambique. Eu mesmo vi lá estacionada uma viatura com logotipo e tudo. Amizades coloridas de farda azul e vermelho rubi.

Cerca de uma hora depois estamos em Montepuez. Surpresa, a cidade nada mudou desde 1975. Continua a ter uma larga e longa avenida asfaltada desde o tempo do colono que lhe corta pelo meio. Já as perpendiculares ainda são em terra batida, ou já foram asfaltadas, como quiserem. Dali mesmo podem-se ver as formações montanhosas características da região. Aqui também, só flutua a bandeira vermelha da FRELIMO, lado a lado com os demais edifícios da administração municipal, policial e das TDM. Também se pode apreciar a famigerada cela onde José Pacheco mandou trancafiar 120 renamistas após uma série de distúrbios graves há uns anos atrás, o que resultou na morte de dezenas deles por asfixia. E com isso, a extinção dos partidos da oposição nas redondezas. Nunca mais ninguém falou desse assunto. Agora, só se fala da madeira e do amigo chinês do sô ministro. O quartel, que também é centro preparação militar básica, continua onde está, e com a mesma rotina como se convém. Logo pelas 04h30 da manhã lá vão os mancebos a correr aos cânticos, faça frio, chuva ou sol, para um drilling matinal. Mesmo encostado ao portão, está o melhor estabelecimento hoteleiro da cidade, denominado Lanchonete. No mais, só dá dependência ou na casa de uma amante generosa. Composto por uma pastelaria, um fast-food e uns oito quartos bem apetrechados, a Lanchonete é um local onde se pode respirar um pouco da ilusão de se estar em Nelspruit num recinto de 100 metros quadrados. Tudo isto com um parque de estacionamento generoso onde se destaca a figura mastodôntica de um potente gerador eléctrico. É verdade. Diz a voz do povo que no dia da inauguração do estabelecimento, o proprietário, que é membro sénior da FRELIMO, teve uma desagradável surpresa. Ao ligar o interruptor do ar-condicionado deu-se um valente curto-circuito que lhe queimou o equipamento todo. O homem ficou bravo e fez queixa e tudo às estruturas competentes. O certo é que se conformou com o gerador…

Foi aqui neste Lanchonete onde escutei a conversa de dois jovens militantes da OJM que se gabavam dos milhões que já tinham embolsado com as boladas ganhas com os rubis de Namanhumbir. Em três anos mudei a minha vida, dizia em voz alto, enquanto olhava circularmente para ver se o escutavam bem. “…Construí a minha casa em Maputo e tenho outra em Pemba alugada a uma ONG. Tudo com tako ganho aqui. Agora vou regressar a Maputo para ser colocado no ministério dos Recursos Minerais…”. Disse triunfalmente.

Montepuez vive apática, à espera do nada. O fornecimento de energia é deficiente, por ser oscilante ou mesmo sujeita cortes. Num só dia, há em média 8 horas de black-out, sobretudo à noite. Quando por lá pernoitei, houve um corte às 22h00 e só às 7h30 da manhã seguinte é que ligaram novamente a corrente. Este fenómeno tem explicação oficial e oficiosa. A oficial narra que a central de Metoro, sita há cerca de 100 km de Montepuez, não foi devidamente dimensionada pela EDM que recentemente esteve a reabilitá-la. Alega-se erros devido à incompetência técnica na montagem de linhas de transmissão até aquela cidade. A oficiosa, e possivelmente a mais plausível, diz que desde a chegada da multinacional dos rubis em Namanhumbir, uma boa parte da carga tem sido dedicada para manter em funcionamento a poderosa maquinaria, bem como as luxuosas instalações que lhe rodeiam. Pois que antes, também haviam cortes, mas eram muito menos frequentes ou prolongados. Seja qual for o motivo, o que se regista, tal como em Pemba, é uma EDM tapa-furos sem um plano de expansão energética para os próximos 10-20 anos, preferindo concentrar os esforços nos mega projectos.

Quanto a telecomunicações, aqui também só canta de galo MOVITEL. As TDM lá estão, mas o seu serviço é nominal. Nunca funciona. A MCel só envia SMS para Maputo, mas recebe nem faz chamadas. E a VODACOM nunca ninguém ouviu falar disso. Eu acho que já é tempo do INCM contestar os graus de cobertura e fiabilidade destas empresas, a bem do próprio consumidor. Está visto, enquanto a MOVITEL investe muito em tecnologia e pouco em publicidade, a VODACOM e a MCel investem em publicidade, para esconder o deficit tecnológico. Há gato por lebre, meus senhores.
Por alguma razão se diz que Guebuza ficou irritado com a recepção que lá teve na última presidência aberta de há 45 dias. Tão chateado ficou, que andava por lá uma brigada central de “estruturas” do partido e do estado (sic) em maratónicas reuniões para apurar os motivos da birra de sô excelência. O pânico era geral, todos caciques locais tremendo que nem caninhas verdes, com medo de serem demitidos sumariamente pelo chefe. Audiências, despachos e visitas campais, tudo cancelado. o CHEFE ZANGOU! Uma troca de acusações inaudita, quem foi? Porque foi? Como foi? O secretário permanente disparava para o presidente do município e este para o seu correligionário, enquanto a brigada tomava notas para informar o AEG. Curiosamente, nem a brigada, nem os visados tentaram perceber o que havia desagradado o AEG. Teriam poupado despesas com dezenas de calmantes e folhas de relatório. Enfim, subserviências. 

E foi assim, ao som lúgubre do coro de lamentações dos apparatchicks locais pela desfeita ao chefe que me fiz novamente à estrada em direcção à Nampula.
Crónicas do País Profundo IV – Atravessando o Lúrio

Quem sai de Montepuez para Nampula tem de se mentalizar para o esticão que isso é. São perto de 500 km que se fazem numas 6 horas. A boa notícia é que a auto-estrada até ao cruzamento de Chiúre está impecavelmente asfaltada. Talvez seja uma das melhores auto-estradas construídas no norte de Moçambique. Mas quando se chega a Chiúre, as coisas mudam, a via estreita-se e torna-se muito perigoso conduzir, sobretudo à noite, pois corre-se o risco de limpar um ciclista, ou até uma galinha e cabritos que pululam na região. Aliás, dizem os conhecedores dos hábitos locais que quando se atropela uma galinha é melhor não parar, pois vão cobrar a capoeira inteira! É aqui em Chiúre que faço o primeiro contacto com a mitologia Macua, depois de já tê-lo feito com a Makonde em Meluco e Macomia. Lá, juraram-me que há pessoas que se tranformam em leões para roubar rapé na calada da noite aos pobres camponeses. Sem perceber por que razões um felino gosta de aspirar umas boas baforadas, fui escutando a fantástica narrativa enquanto fazia uma pausa em Macomia para comer um javali na brasa caçado há minutos por três rapazes de arco e flecha. Dizia o meu interlocutor que havia um velhote que se transformava em leão e fazia das suas. Mas um dia, as coisas correram-lhe mal, apareceram dois leões – dos verdadeiros – que como é de praxe “leonina” cheiram-se no traseiro para se reconhecerem. Ora, dizia o narrador, quando o leão é feiticeiro, ele não cheira nada, nem deixa cheirar. E foi assim que o falso-leão-pessoa começou a ser perseguido por dois legítimos machos pelo mato fora até trepar numa frondosa árvore onde ficou por dois longos dias, até que foi descoberto pelas vítimas do roubo de rapé, que lhe perguntavam o que estava a fazer ali empoleirado. E ele dizia que era para fugir dos leões ali à volta. E como não havia leão algum, disseram-lhe que poderia descer à vontade. Mas ele continuava a ver leões, até que teve a bela ideia de confessar o crime dizendo onde escondia o tabaco. E assim, como na lâmpada de Aladino, putz! Deixou de ver leões...mesmo assim, havia quem jurasse que ele ainda estava com patas no lugar dos pés e das mãos. Enfim, o lobisomem de Macomia...

Mas aqui em Chiúre, a história é já outra. São os fantasmas de branco que surgem na estrada disfarçados de grandes cegonhas. Seguia eu por essa estrada que vêem na foto quando parei para conversar com a população. E lá fiquei a saber que naquela estrada antes do Lúrio e depois dele, já em Namapa, província de Nampula, sempre que um animal de duas patas vestido de branco aparece no meio da estrada a ordem é acelerar prego a fundo e passar por cima dele. Porque nunca morre! Quem morre é o incauto condutor se tentar evitá-lo. E que eu até estava com sorte por ser luz do dia, pois se fosse lá para as 22 horas...

Verdade ou mentira, o certo é que acabei mesmo por ver um fantasma vestido de branco e chapéu, mas à luz do dia. Uma inusitada brigada de trânsito da PRM com radar e tudo, a controlar a velocidade dos bólides e camiões que se achegavam ao poderoso rio Lúrio. Felizmente ia à 50. Mas muitos cairam que nem patinhos na armadilha. Facturaram bem, os nossos gendarmes.

E chega-se finalmente ao rio Lúrio, dizemos adeus Cabo-Delgado e já estamos em Namapa, outro paraíso da magia negra. Aqui, neste distrito conhecido pela sua grande produção agrícola, começo a perceber por que Nampula é a província mais populosa de Moçambique. São mais que as mães. Casa 1. Casa 2. Casa 3. Lado a lado, hábitos herdados do islamismo. De novo, motas, bicicletas, cabritos, carneiros e galinhas, tudo na estrada, atarefados com seus afazeres. Uns transportando pesadas cargas no lombo. Outros levando uma família de 3 na bicicleta ou mota para “ver família”. E os amigos de 4 patas, a ruminar como gente grande. Este aliás, será um cenário que me acompanhará na minha odisseia.

Em Namapa, a estreita estrada de Chiúre está em obras. Pretende-se alargar a via para o dobro da largura. Um 20 metros por aí. De maneira que está tudo de pantanas para quem conduz. Poeirada, brita e máquinas. Bem nada que um verdadeiro patriota não aguente em nome da auto-estima. Nesta mística Namapa narram-me o infortúnio de muitos extensionistas que morriam que nem tordos quando eram colocados aqui, porque já haviam “donos do lugar”. Coitados dos jovens, que vinham ensinar métodos científicos aos locais para produzirem mais e melhor, mas que por causa disso, punham em causa os métodos empíricos seculares. O último morreu ali, dizem-me apontando para uma ponteca sem sinalização. Vinha lá de cima lançado e ainda tento travar. Foi projectado com a mota e tudo e embateu naquela rocha. Morte instantânea. E agora? Pergunto. Agora está melhor. Falou-se com o régulo e com xé. Eles fizeram uma cerimónia...

Infelizmente, encontro aqui os mesmos problemas das estradas de Montepuez. Num mesmo troço de 40 km, três empreiteiros. A nacional CETA. A italo-moçambicana CMC e a luso-brasileira ZAGOPE, cada uma vai fazendo a estrada à sua maneira. Fico então a saber que quando o Governo adjudica empreitadas destas, é dado a escolher entre estradas tipo 1, tipo 2 e tipo 3. A tipo 3 é a melhor de todas. Assim, diz a voz do povo, a CETA é especialista a fazer estradas tipo 1, por isso acaba sempre as empreitadas mais cedo. Ou seja, aquele caldinho de alcatrão sobre areia. A CMC essa só gosta de fazer estradas tipo 3, por isso leva séculos a concluir uma estrada, inflacionando os custos e deixando muitas vezes troços por completar por falta de fundos. E a ZAGOPE é a nova estrela na região trazida pela ANADARKO em Palma, mas que, pelos vistos, aprendeu rapidamente a construir estradas tipo 1. E assim se vai alargando esta estrada até Namialo, donde se espera depois venha também a bifurcar-se para Nacala e Nampula, numa autêntica avenida do norte. A ver vamos.
Deste ponto, enquanto subimos para Nampula, dá-se o habitual apagão móvel. Passamos então à ditadura da MOVITEL, o salva-vidas do viajante. De vez enquanto, lá reaparece a Mcel para enviar um fugaz SMS, depois baza e perde-se nas montanhas. Enfim, tretas amarelas. E vermelhas também, mas já nem vale a pena cansar-vos com a repetição da mesma narrativa.

Conduzir aqui à noite é como jogar à roleta russa. Bicicletas, pessoas e motas circulam na contra-mão para esquivarem aos buracos e às barricadas das obras, quase sempre sem iluminação. Por isso, máximos acesos e pisca-pisca sempre que um vulto surgir na direcção oposta. Não nenhuma sinalização na estrada, logo a precaução impõe-se, estando numa região sem electrificação e montanhosa. De repente, surgem bacias vermelhas, azuis e amarelas do nada. São os vendedores de beira de estrada que aquela hora ainda tentam ganhar uns parcos cobres...
Enfim, chega-se então a Namialo, para que se possa finalmente dizer: Cahora Bassa é nossa! Realmente, esta vila e outras das redondezas já têm iluminação pública trazida pela barragem, o que faz deste lugar um estonteante ponto de encontro e comercial que nunca encerra portas. Pode-se comprar aqui boa castanha de cajú assada. Mas em Nacavala é melhor, asseguram os conhecedores. Os macuas são hábeis negociantes. Nunca ficam a perder dinheiro e nem sequer são muito dados ao regateio de preços, como faria supor a sua matriz cultural islâmica. Mesmo iletrados, são capazes de fazer contas erradas, mas sempre em prejuízo do comprador. Aqui não se faz desconto. Sobretudo para forasteiros...

A partir de Namialo a qualidade da estrada melhora substancialmente nos 100 ou mais km que nos separam de Nampula. Chega-se a Nampula e nota-se de imediato que a cidade está hoje muito mais movimentada do que era há dois anos. Com um tráfego automóvel intenso, lembra Maputo na hora de ponta. Aqui também as Li – Feng e bicicletas “made in China” preenchem o nosso campo de visão. Muitas delas, de saída da cidade. São os negociantes e intermediários, que pelas primeiras horas da manhã deixam os seus aposentos, cerca de 50 ou mais km daqui e levam empoleirados no seu precário caixão sobre duas rodas, uma miscelânea de bens de consumo e alimentares para vendê-los em Nampula e assim poderem acumular o seu pecúlio. Há grandes ciclistas aqui. Autênticos triatletas. Nampula está em polvorosa. Os negócios nunca estiveram tão apetitosos como agora. Com as obras da VALE em Nacala, os grandes comerciantes esfregam as mãos de contente, imaginado-se já num pote de ouro. Infelizmente, a maioria dos governantes municipais e provinciais parecem mais preocupados em escrever relatórios pontuais ao AEG para que este não embirre com eles, ao invés de lhes abrir o verdadeiro jogo...
Crónicas do País Profundo V – Nampula

Quem for ao centro da cidade de Nampula hoje, vai-se se surpreender com algumas obras de grande engenharia em curso. Já só não é o edifício Millenium o único a arranhar os céus daquela urbe. Há pelo menos três de igual ou maior dimensão a nascerem nas redondezas. Há também obras de drenagem em algumas zonas da cidade, nomeadamente próximo da Academia Militar, que continua a ser a Sommerschield lá do burgo. Mas as ruas da cidade estão em muito mau estado. É a buracada total. O mesmo que dizer dos semáforos, que sofrem dos mesmos problemas de Maputo, ou não funcionam ou acendem todos verde num mesmo cruzamento. O melhor mesmo e rever o capítulo das aulas de condução sem sinaleiro antes de se aventurar por ali. É a capital do norte, hoje com seis carreiras diárias ida e volta semanais Nampula-Cuamba, o que resultou no abaixamento dos preços ao consumidor de muitos produtos agrícolas. Pelo menos duas companhias aéreas estrangeiras, a SA Airlink e a Kenya Airways ligando directamente os seus países sem escala. E claro, muita camionagem partindo e regressando de todas as províncias de Moçambique. O Hospital Central de Nampula também lá está. Firme e hirto, esta infra-estrutura contruída pelo colono nos anos 60, quando Nampula era uma cidade-militar, tem um aspecto exterior impressionante. Será certamente o segundo maior hospital do país, logo a seguir ao HCM.

Andar de táxi em Nampula é relativamente barato. Por apenas 50 mt, pode-se chegar a todo lado. E até combinar para ser recolhido a tempo e a horas, valha-nos isso. Assim, é possível ir até à Feira Popular – eufemismo local para Dumba-Nengue – e escolher algumas recordações para a cara-metade. Ou até coisas mais exóticas, como extractos de sêbo de leão, pedra-pomes, afrodisíacos. E claro, dar de caras com algum tratante tentando vender ouro de tôlo. Ou pulseiras em pseudo-prata “sete irmãs” ou “namorados” que a Celina Henriques adora. Mas dela são verdadeiras, asseguro-vos. A lábia destes vendilhões de “ouro” e “prata” é tal, que chegam ao ponto de dizer que a mesma foi derretida de moedas antigas portuguesas. Que lata! Quem estiver no centro da cidade, pode ir a pé até à feira permanente de artesanato nas traseiras do Museu da cidade, encontrar lá escultura Macua e Maconde, um pouco mais séria. Em todo caso, é sempre bom conhecer alguém da terra para recomendar o melhor artesão e conseguir – ALELUIA- o primeiro desconto em Nampula! Enfim, como não estava pelos ajustes, rendi-me aos artefactos de pau-preto e pau-rosa e resolvi um possível problema doméstico. Para dourar a pírula, acrescentei um par de brincos trabalhados em carapaça de tartaruga. Nada de marfim, sou contra a caça ao elefante e não estava disposto a comprar um colar em osso de vaca...

Mas aqui em Nampula e um pouco por Angoche e Nacala, temos de ser imediatamente submetidos a um rito de iniciação, que já ganhou muitos adeptos nas estruturas do munícipio e provinciais: mesquita, comércio e deixa-andar. Mesquita, porque um forasteiro desavisado corre o risco de não ter ninguém numa reunião, ou vê-la mesmo esvaziar-se, ao aproximar-se o meio-dia. Comércio, porque desde há séculos, está no ADN dos novos e velhos nampulenses. É impossível dissociar Nampula das trocas comerciais. Os grandes armazenistas, que controlam a rede imensa de intermediários que fazem a comercialização agrícola por todo norte de Moçambique e até, como vimos com o MBS, nasceram ou ainda estão por aqui. Pouco dados aos pagamentos electrónicos, movimentam por vezes contentores de meticais ou usd para os bancos ou agiotas com quem se endividam. Do mesmo modo, é impossível estabelecer Nampula sem Nacala como perceberão nas próximas narrativas. E por fim, o deixa-andar. Aconteça o que acontecer, o nampulense encara com normalidade absoluta. Há um corte de energia total na cidade, sem aviso prévio. Não faz mal, vai-se até ao Almeida Garrett, donde registei as imagens que ilustram o post e bebem-se umas geladinhas. Como? Guardadas em colmans, obviamente. Mas porquê? Pergunta um forasteiro. A EDM está a realizar obras de manutenção na central, explicam. Aliás, ir a qualquer restaurante da cidade é um grande tormento. É melhor avisar com antecedência por telemóvel – felizmente a três operadoras móveis têm rede aqui - ou então, vai-se secar por mais de uma hora por causa de uma banal sandes de atum. Mesmo se o estabelecimento estiver vazio. Vão alegar uma bíblia de justificações. Porque o atum acabou. Foram comprar cebola. Não havia pão. O cozinheiro está a preparar outra comida. E por aí em diante. Aqui, tempo ainda não é dinheiro. Anda tudo a zero a hora. Inclusive nos hotéis. E por falar nisso, é notório o crescimento do número de estabelecimentos do género na cidade, por causa da crescente demanda. É sem dúvidas, um negócio bastante rentável, quando o solicitante não é o Partido ou o Estado. Pois que, quando isso sucede, é uma lista de dívidas que nunca mais acaba de ser paga. Muitas vezes até, deferida com chantagem pelo meio. Caloteiros engravatados...

Não sai água no centro da cidade. E agora? Não faz mal, ali na loja vendem água mineral, sugerem. Há buracos na cidade. São as obras do FIPAG, o Governo está a trabalhar, acreditam. Quero ir ao SHOPRITE, como faço? Pergunto. Já não há SHOPRITE...ardeu faz tempo respondem. Como? Porquê? Dizem que foi a concorrência insinuam. E agora? Agora temos o RECHEIO, que por acaso também uma filial aqui em Maputo próximo da Junta. Este de Nampula, tem cara de gente. Não é aquele armazém de vão de escada e cheio de paquistaneses que vende quase que aos gritos. Este RECHEIO da capital do norte é arejado e com belas vendedoras, curvelíneas e apinocadas, com aquele olhar mágico que só as macuas têm e sempre muito atentas à clientela. E à saída ainda oferecem brindes. Vende-se um pouco de tudo, incluindo contrafacções das melhores marcas mundiais. Estamos em Nampula. Ou se compra aqui, ou em lado nenhum. E ponto final.

Mas estes tipos fogem sistematicamente ao fisco, como amplifica a voz do povo. São os marajás do norte. Usam um esquema infalível desde há muitos anos. Se tiverem que declarar 100, declaram oficialmente 10 e mandam um cheque de 30 ao comité local do Partido FRELIMO. Santo remédio, não há quem se intrometa mais nos seus chorudos negócios seculares. E pelos vistos, exportaram essa mania até para capital do país. Ainda apresentam registos contabilísticos do tempo do “DEVE E HAVER”. Tudo em papel. Nem um registo electrónico. Como é possível que um tipo capaz de se endividar a um banco paquistanês em 100 milhões de US$ ainda trabalha como se fosse nos primórdios da revolução industrial? Em Nampula, é... e cada vez mais inundada de estrangeiros. As novas jóias da coroa são os portugueses, muitos deles na construção civil, estradas e drenagem um pouco por toda a cidade. Mas também há quem por cá anda fugido da crise. Por exemplo, pequenos e grandes retalhistas. Uns já cá haviam estado no tempo da outra senhora e com espírito de improvisação que se lhes reconhece vão se consolidando nesse segmento de mercado, sob o olhar enraivecido dos marajás do norte que tudo fazem para lhes complicar a vida, colocando-os frente a frente com outros estrangeiros, os somális, que dominam todo o comércio informal da cidade. É verdade, apesar de informais, estes cavalheiros possuem estabelecimento comercial com número de porta e tudo. Vivem no limbo da fiscalidade. Recebem uma comissão para serem “Caixa 2” dos marajás do norte e ao mesmo tempo vão lavando dinheiro obtido da pirataria do golfo de Áden. Não está fácil. Estes comerciantes-guerrilheiros-jihadistas vendem tudo ao mesmo tempo. Numa bacia de plástico, à venda, pode-se ter um ferro de engomar, ladeado de um perfurme ou garrafa de sumo proveniente do Flingstonequistão, que pode mesmo ter a sua linha de montagem nas traseiras da loja. Por regra, há sempre um tipo a escutar orações islâmicas pela rádio Mogadíscio ou Zanzibar, que nem sei como é que a conseguem sintonizar. E um aviso, em inglês e português, advertindo que uma vez entregue o dinheiro na caixa, o mesmo não volta mais para atrás. Por isso, é sempre bom experimentar tudo antes de comprar. Imaginem o que acontece quando se tratar de perfurmes ou de chá...É no mercado dos “Bombeiros” onde acampam os empregados destes somális. Sovinas por excelência, estes donos da terra fazem-me recordar a arte milenar de regatear o preço. Erram propositadamente nas contas, mas sempre a seu favor. Por mais coisas que se compre, o desconto é sempre menor. Desisto, pego em duas capulanas da Texmoque e dou as vila-diogo acreditando ter feito um bom negócio. Enchi o saco.

Como estava perto, paro um pouco defronte aos “Bombeiros” de Nampula. Acho que me enganei. Mas será mesmo este edifício andrajoso, a cair aos bocados e com aspecto fantasmagórico o quartel do Corpo de Salvação Pública? Bruxo! A visão de um logotipo e de duas viaturas vermelhas e com pirilampo azul no tejadilho confirmam os meus piores receios. E a melhor, eláaa, estão a erguer um novo andar por cima das ruínas. Fantástico feito arquitectónico. Nem Niemeyer faria melhor. Deus lhes pague!

É com esta amálgama de caos e incompetência que a CTA a mando destes senhores tenta encostar o AEG exigindo o seu lugar ao sol na logística dos mega projectos. Eis porque acho que a maioria dos governantes municipais e provinciais parecem mais preocupados em escrever relatórios pontuais ao AEG para que este não embirre com eles, ao invés de lhes abrir o verdadeiro jogo, como por exemplo, não repetir aqui as mesmas soluções “tapa-furos” da EDM, TDM, FIPAG e outros que encontrei em Montepuez. Sendo certo que por aqui ainda não há mega projectos, haverá por certo que prever o boom imobiliário na cidade e uma série de serviços que por lá estarão. Será preciso recordar que Nampula está estrategicamente localizada no centro da província? E que todas estradas que ligam a zona centro ao norte, ou vias férreas do hinterland para a costa, passam por lá? E aqueles grandes edifícios em construção vão beber o pouco que resta da carga eléctrica na cidade. Onde está o plano de expansão para os próximos 10-20 anos? Até de helicóptero se pode ver esta realidade a olho nú. E além disso...já imaginaram uma multinacional, com contabilidade organizada, a lidar com um super-cantineiro que anota tudo num caderninho manuscrito e vende produtos contrafeitos? Vamos lá falar, sr. AEG, pensei para os meus botões, mas como ainda estivesse com algumas dúvidas em relação a este caos governativo organizado, decidi ir dar espreitadela até Nacala.
Crónicas do País Profundo VI – Nacala

Logo pelas primeiras horas da manhã de cacimbo já pedalam na auto-estrada os incansáveis batalhadores do norte de Moçambique, numa espécie de comboio dos duros do pé-descalço. Pedalando quase com os calcanhares – para dar mais força – alguns sem pedais, lá vão eles. Com tudo às costas. Mesas de venda. Cabritos. Galinhas. Carvão. Uns para Nampula, outros para estrada de Angoche, outros para Nacala, onde me encaminho agora. A viagem faz-se tranquila, porque a estrada está relativamente boa. E não fossem somente os percalços naturais, com camiões-cavalo vindos do porto ou um insólito aviso de crocodilos no rio Monapo, bem se poderia falar de um passeio até à esquina. Mas confesso, depois da amostra de Nampula, estou bastante intrigado com o que vou encontrar na alma-gémea Nacala.
Ainda no caminho, vejo o desvio da Ilha de Moçambique e apetece-me ir matar saudades da terra que conheci no final dos anos 70 e quem sabe dizer olá a Macutana Macuta, que hoje se despede da Ilha. Não deu, fica para a próxima.
Prossigo então a minha caminhada e quase a uma trintena de kms de Nacala uma grande obra de engenharia me bloqueia a visão. Trata-se da tão desejada barragem que virá resolver o crónico problema da falta de água naquela cidade (eles acreditam, por isso nem se lembram que a água é também essencial para qualquer indústria ou imobiliário de luxo), o que a suceder, virá ser uma grande vitória eleitoral antecipada para a FRELIMO, que aliás, marca hoje omnipotente presença em todos os lugares abeiram a estrada até Nacala. Do MDM, só alguma vivalma perto do cruzamento da Ilha. A RENAMO, essa parece que se volatizou da província após o precipitado abandono da Rua das Flores pelo seu líder. Um pouco mais adiante, surge a famosa zona económica especial, onde já despontam estaleiros e algumas fábricas. Com um estilo arquitectonico duvidoso, fica-se com a impressão de se estar a entrar num Oued de Marraquexe. Até parecem símbolos maçónicos. No caso, serão islâmicos. Saboeiras, oleaginosas e grandes entrepostos comerciais, assim se resume a “indústria” pesada trazida pelo GAZEDA na porrada de anos que por lá está. Ainda vamos a tempo de ver a famosa “linha de montagem” de carros Tata e autocarros Yutong. BRICS ON FIRE..
Entro então na famosa urbe e deparo-me com um movimento muito mais caótico do que em Nampula. Um autêntico formigueiro de lojas, barracas, motas em ascensão constante cidade baixa, cidade alta, naquele viaduto que se estende por quilómetros desde o porto, curiosamente sempre bem asfaltado. O mesmo já não se poderá dizer da sua bifurcação que liga outra parte da cidade, cheio de autênticas crateras lunares. Lá na cidade alta, desponta o maior edifício da cidade, que ameaça ruir colina abaixo. Está cheio de rachas. É o consulado de Chale Ossufo, que vai acumulando pontos para as autárquicas deste ano, com uma outra estrada feita em pavê que se estende até aos subúrbios, onde um inevitável Tufo meneia as ancas de uma prole de belas macuas, com pulseira no tornozelo. Neste frenesim total, é notório que a VALE veio revolucionar a vida desta gente. Pelo menos, a sua maneira de estar. Ao contrário de Nampula, esta gente parece correr mais veloz atrás das oportunidades. E se houvesse empresários sérios por lá, talvez se conseguisse ali o almejado mozambican empowerment que o AEG tanto sonha de helicóptero. Coisa séria esta, tendo em conta que ali pulsa o comércio nampulense. E por arrastamento de toda a zona norte do país. Razão mais do suficiente para qualquer um acreditar que a pedalada dos mega projectos deveria ser ritmada naquela urbe. Felizmente, há rede móvel aqui. Amarelo, Vermelho e Laranja, conforme o freguês. Mas somente na cidade. Já a energia, é aquela base. Vai-Vém, como um boomerang. Tapando-furos, este é o lema da EDM.
Infelizmente, este conservador emirado de cantineiros seculares, hoje convertido ao capitalismo mundial, afina no mesmo amadorismo dos seus homólogos de Nampula no que tange aos processos de negócio. E até da mesquinhez somáli, no que tange à seriedade do que apresentam ao GAZEDA como projectos de desenvolvimento para usufruirem dos chorudos benefícios fiscais. Como por exemplo, o chico-esperto que engendrou a bolada desses dois navios que vêem nas fotos, que inicialmente deveriam iniciar serviços de cabotagem costeira em Moçambique e pesca oceânica do Atum, pescado muito abundante naqueles mares, mas que de um momento para o outro, se transformaram em ferro-velho para ser vendido aos locais que necessitam de materiais de construção, ou reexportado para outras paragens. Um deles até já perdeu a proa. E o Zucula a dormir. Mais uma ideia “Made in Pakistan” nos portos do norte de Moçambique. A primeira, já havia sido apresentada pelo sultão FARUK de Mocímboa da Praia...
Imaginem, minhas senhoras e meus senhores, que Nacala (a Nova), com o seu porto natural, que não necessita de dragagem, nem manutenção, o que por si só, lhe dá uma vantagem competitiva inigualável em toda a costa oriental de África, apresta-se a se transformar num estaleiro de desmanche de navios, como aquele situado em Alang na costa ocidental de Karachi, no Paquistão, onde navios jazem inactivos em gigantescos parques de estacionamento aquáticos, onde são empilhados em volumes medonhos de até três embarcações. Por ano, morrem ali 125 navios de todos os tamanhos e feitios. Pelos vistos, a indústria naval de que tanto se fala nos “projectos” do GAZEDA tem a linha de montagem pelo avesso...
Mas como é possível que o AEG, que conhece muito bem o sector dos transportes e comunicações na SADC, possa andar tão distraído com o que se passa em Nacala? Talvez os cheques que entram todos os meses nos cofres do comité provincial da FRELIMO sejam a melhor explicação. E porque também, o actual porto de Nacala já não conta para os planos da VALE que preferiu assentar arraiais em Nacala-Velha. Que se lixe Fernão Veloso, já se vê. O que conta agora é o carvão e o PROSAVANA. E os vira-casacas da JICA com os seus presentes envenenados. Sanguessugas de gravata. Sacanas de primeira.
Porque este negócio do ferro-velho de navios não é brincadeira nenhuma. Como as companhias de navegação encomendam regularmente novos navios para substituir os velhos, isso cria um excesso de capacidade similar àquele que afecta o sector automobilístico. Quando as encomendas não podem ser canceladas e os novos navios saem dos estaleiros no momento em que a demanda por eles é baixa, isso causa o aumento da pressão para vender os navios antigos como ferro-velho. Quase 90% da atividade de desmanche de navios ocorre na Índia, no Paquistão e no Bangladesh. Os trabalhadores, cantando suratas do Corão, arrastam placas de aço com longas cordas; cabos eléctricos, tubulações, caldeiras, escotilhas, geradores e espalham-nos pela costa, incluso o cancerígeneo amianto e outras substâncias tóxicas usadas como vedante de cascos. Seguidamente, as peças que não puderem ser derretidas e transformadas em lingotes de aço, são comercializadas ao longo da estrada para Alang num novo tipo de bazar. Nestes dumba-nengues especializados de Karachi, estão à venda portas, mesas, sofás, carpetes, pratos, geleiras, aparelhos de ar condicionado e até utensílios de WC. Os lingotes de aço por seu turno são comercializados no imobiliário, etc. Já imagino o mesmo a acontecer em Nacala muito em breve. E com isenções fiscais!

Sendo assim, não é de se excluir que o boom imobiliário, o porto de Nacala-a-Velha e outros, estejam na mira do lucro fácil destes cantineiros-industriais, o que não me parece bem, é bloquear o cais de Nacala, correndo-se até o risco de vê-los afundar ali... 

Indisposto com esta impunidade arrogante dos que têm dinheiro em Moçambique, subi até à cidade alta para ver a quantas anda o novo aeroporto internacional de Nacala. Valeu a pena, porque fez-me esquecer aqueles dois calhaus flutuantes. 
As obras estão a bom ritmo e se tudo correr bem, temos ali o futuro Hub da zona norte de Moçambique, o que vai obrigar a mudança de rotas da LAM. Assim, já posso imaginar um voo Maputo-Nacala-Lichinga-Pemba-Nampula ou vice-versa. The sky is the limit! O mausoléu do GAZEDA está lá também. De côr cinzenta fúnebre, parece ser mais habitado por fantasmas. Raramente se vê vivalma por detrás daquelas janelas...

Mas a ODEBRECHT, essa, já é outra coisa. Com as bandeiras de Moçambique e Brasil, lado a lado, vai marcando o ritmo das obras na região. O mesmo que dizer em relação à PHOENIX, de moçambicanos, que tem o seu estaleiro ali por perto, mostrando que nesta vida, como em quase tudo, o trabalho e o profissionalismo são o melhor cartão de visitas de um empresário de sucesso.

Antes de partir, dou uma vista de olhos à hotelaria, visto que de comércio já estamos conversados. E sugerem-me o Maiaia, três estrelas, um luxo empinado no viaduto principal de Nacala. Dá para o gasto. Mas recomenda-se grelhados para quem tenha o estômago fraco. É que isto é Nampula, o paraíso das especiarias.

Pego então a estrada de volta a Nampula e de repente, dá-me um vaipe e decido ir até ao Monapo, já a noite ia alta. Surpresa, a vila está mais iluminada que um Titanic. Embora já passasse da hora de expediente, tudo indica que ali se respira vitalidade. Em todos os sentidos, diga-se. Por exemplo, o político. Aqui também só dá bandeira vermelha, com a mesma precisão norte-coreana que já havia encontrado em Ancuabe. Começo a acreditar que no interior desta província onde só chega Movitel e TVM muitos ainda acreditam estar a viver na República Popular de Moçambique. Cadê a oposição? E é com essa interrogação que chego finalmente a Nampula onde descansarei para partir seguidamente para o Parapato.
Crónicas do País Profundo VII – Angoche

Enquanto me preparava para partir para Angoche, surgiram recordações na alma. As mulheres de Ingúri. As Lânguas. E a galinha revoada com arroz de oloco. Também me recordei das duas vezes em que a RENAMO visitou para valer aquela urbe, uma para capturar o então secretário de estado do Cajú, Alfredo Gamito. E outra quando ocupou fugazmente aquela cidade pouco tempo após o AGP...
Com o fio da memória no pensamento, ataquei os 200 km de picada até Angoche que os apaniguados do Banco Mundial gostam de referir como “estrada terciária”. Peço desculpa, mas não sei se eles andam em estradas destas na terra deles. Enfim, tecnocratas...
Envolto no cacimbo nampulense, característico da época fria, testo a estrada recentemente terraplanada, mas que um dia teria sido asfaltada por um governador resoluto chamado Filipe Paúde. É verdade, este homem chegou a defender com unhas e garras durante o seu curto consulado, que o dinheiro usado para fazer manutenção periódica da estrada, i.e. terraplanagem, seria muito melhor aplicado em asfaltagem faseada. Pelos seus cálculos, em cinco anos já se teria alcançado Angoche. Não teve tempo para ver realizada a sua obra, pois foi para SG da FRELIMO. Em contrapartida, nenhum dos seus sucessores se preocupou em recuperar aquela ideia. Antes pelo contrário, até exultaram em saber que Angoche ficaria hermeticamente fechada nos confins, lá nas suas lânguas. Até ao dia em que se começar a falar mais vezes da Kenmare de Moma. No entanto, o aumento do número de terraplanagens foi a melhor solução que os consultores destes governadores de meia-tijela lhes fizeram convencer. E sabem porquê? Porque as areias pesadas são bombadas directamente para o navio em alto mar. Não passam pelas Alfândegas, não precisam de estrada, nem de caminho de ferro para engordar as acções na Bolsa de Londres. Como anima ser bom aluno do Banco Mundial...
Já com 90 minutos ao volante, numa poeirada medonha, atropelo a minha primeira galinha em Nampula. Não paro, não quero saber pévia. Prossigo a minha marcha e uns 20 km adiante vejo uma ambulância da Direcção Provincial de Saúde de Angoche parada na estrada, mas carregada de gente e todo o tipo de tralha no seu interior. E espanto-me. Mas afinal, aquilo não é para transportar doentes? O que estará então a fazer aquele saco de feijão. E aquele cabrito atado pelas patas. E aqueles tipos, com ar bem saudável? Paro. E já um se acerca para pedir boleia para Angoche. Pergunto-lhe se ele é o motorista. Responde-me que não, que estava apenas a aproveitar a boleia da Ambulância. E logo então percebo tudo. Aquele veículo do MISAU havia ido provavelmente deixar um enfermo no Hospital Central de Nampula, mas no regresso, o motorista decidiu ser empreendedor e aumentar o subsídio que o Manguele se recusar a discutir agora. E o que fez? Transformou a ambulância num chapa 100 “ah-doc”, só que desta feita deu-se mal. De tanta carga, o 4 X 4 arrumou as botas e tudo foi pelo brejo. Oficialmente, estou certo disso, irá constar que Angoche ficou sem ambulância porque as condições da via desgastaram a viatura. Está-se mesmo a ver.
Irritado, recuso-me a dar boleia e prossigo a marcha em direcção ao Parapato. Estava eu para aí a uns 40 km do destino, quando dou-me de caras com as cenas das fotos. A ponte caiu e agora, é como diz José Mucavele: Atravessando Rios, ou ir por uma outra picada de Nampula a Angoche, a qual diz a voz do povo, é capaz de assustar os mais experimentados concorrentes do Camel Trophy. Não é que a ponte para Angoche está cortada há mais de 3 meses? Pois é, mas só se descobre estando lá porque...os assessores do AEG não o registaram em relatório para o chefe. É verdade. Não faz 45 dias que o nosso timoneiro foi fazer uma presidência aberta na terra dos Kotis. Como não poderiam deixar de ser, preferiu ir de helicóptero apregoar o desenvolvimento. Já a sua comitiva de jagunços e lambe-botas foi por terra. Foi então que o sentido de sobrevivência apparatchick uma vez mais se revelou. Alguém teve a ideia de fazer um aterro lateral com duas anilhas. E assim, o séquito do AEG passou a justa sem molhar as rodas, a toda brida rumo a Angoche. Mal rejubilavam os locais com este feito da engenharia partidária, quando dias depois da presidência aberta, uma chuvada forte arrasou o improviso anilhar. E desde então, o assunto ficou na gaveta. À espera da próxima visita do AEG ou então das eleições de 2015. Maldito camião de amendoim que rebentou com a ponte, resmungam entre os dentes.
Quando o caudal está fraco, o que é o caso desta época fria, ainda é possível passar de 4x4 full steam ahead. Mas aquele chapa, coitado, teve mesmo de molhar a mão de uns jovens locais, que descobriram naquilo um novo emprego bem-remunerado.
Cerca de 13 kms de Angoche finalmente o asfalto. Afinal é a lenda urbana a explicação segundo a qual nunca houve asfalto de Nampula. Já houve e há. E vejam lá, estrategicamente colocado por motivos militares ou eleitoreiros. E nisso, o sr. Alfredo Gamito revelou-se um mestre do ofício. São incontáveis os troços de asfalto separados por picada, ou vice-versa. Aqui também, reencontro a mesma chico-espertice da estradas de Cabo-Delgado. Sem critério sócio-económico, senão coisas da cabeça dele, o sr. Gamito, pincelou com alcatrão vários troços da mata nampulense...
Já perto da cidade, vejo duas infra-estruturas enormes e impressionantes. Totalmente abandonadas. INCAJU. Ferida gravemente pela guerra civil, viu a sua sentença de morte confirmada pelo Governo moçambicano a mando do Banco Mundial. Ai Carlos Cardoso, se soubesses como estavas coberto de razão...Hoje, só resta um armazém dimensões modesta de uma certa OLAM, multinacional, que compra em bruto e reexporta imediatamente para a Índia onde é apresentada como Castanha de Cajú da melhor qualidade.
Entro em Angoche e sou surpreendido. A cidade está irrepreensivelmente limpa. Nem um papel no chão. O Município de Angoche é hoje um dos edifícios mais modernos e funcionais da cidade. Algumas das avenidas principais estão em óptimo estado também. Mas as ruas interiores já apresentam sinais de velhice. Foram herdadas do colono. As casas, por sua vez, estão semi-habitadas. Explico-me melhor. Muitas casas foram abandonadas voluntariamente por seus habitantes. Por diversos motivos, nunca mais desejaram regressar a Angoche. A sede do Governo, de um branco imaculado, está no mesmo local onde Kaúlza montava o QG da sua administração militar. Diz-se até que tinha uma amante Koti em Ingúri. E por falar neste ex-libris de Angoche, aquelas damas que nos molhavam a roupa para não nos deixarem regressar a casa, já lá não vivem mais. Migraram para Moma, que é onde está o eldorado Koti hoje. Mas a galinha revoada, ainda é Macua. Asseguro-vos. E o feijão oloco também. Por isso, vale sempre a pena ir comer uma patuscada em qualquer dos restaurantes da “cidade”. Mas não se esqueça. Peça com antecedência de três horas no mínimo. Lembrem-se que isto aqui é islâmico. Digo mais, é mais maometano que o próprio Profeta. Uma refeição que se preze, tem de ser rezada, abençoada, namorada e desejada. E só depois é que desce até ao seu destino final. Estamos em Angoche. Aqui não se vende alcool de qualquer maneira. Normalmente, compra-se a refeição e bebe-se em casa. Ou fora do recinto onde se confecciona o repasto. Outra coisa boa de se comer é a garoupa. As melhores do mundo são daqui. Não sei se é por causa da Lângua...
A Lângua, este costume secular que se estende de Moma até Nacala, ao que sei. Estranho hábito de defecar ou urinar na praia que rodeia a cidade. Mesmo com um sistema de esgotos funcional, doutores e pés-descalços. Mulheres, velhos ou crianças, todo mundo gosta mesmo de ir à Lângua. E nem vale a pena contrariar. Pois perdem-se eleições aqui por muito menos. É que aqui reina o sultão José ABUDO, o nosso Provedor de Justiça. A cidade para cada vez que ele lá vai. Nem o AEG lhe faz frente lá. E não estou a falar de umas parcas dezenas de neófitos. Em Angoche vivem milhares de habitantes. Tantos quantos em Nacala. Abudo é o todo-poderoso senhor dos Kotis. Construiu uma biblioteca pública, de enaltecer, mas só ele é que pode fazer coisas dessas. Todos os que lhe quiserem imitar estão tramados se cairem na antipatia do homem. Que o diga um dos familiares do eng. José Viegas, ex –PCA da LAM, que um dia abriu um parque de diversões em Angoche. Não tardou que um bando de intriguistas instruisse umas petizes com véu a declararem na presidência aberta do AEG, que aquilo fomentava a pedofilia. Fechou portas logo que o comício acabou e ainda hoje lá está abandonado. A mesma explicação em relação às dezenas de casas abandonadas na cidade. Foram-se embora, porque o sultão embirrou com elas. Lá ilá, ilálá... Mas este isolamento do mundo é de bradar os céus. Como é possível que até hoje, não chegue nenhuma jornal à cidade? E nenhum ATM também? Se não fosse a MOVITEL, nem internet teriam. Nenhum discurso de unidade nacional pode justificar isto, sr. AEG. Angoche é, por conta disso, um sacrossanto refúgio dos ambientalistas da WWF, que em duas ilhas sobranceiras da cidade vão protegendo diversas espécies marinhas. O turismo, apesar das excelentes praias, é nulo. O Koti por natureza só vai à Lângua. Poucas vezes vai à praia, a qual, por motivos óbvios, fica bem mais distante das amuradas da cidade. Mas só lá vão tomar ar numa dezena de dias por ano. A pesca sim, é algo com futuro, isto é quando o porto pesqueiro voltar a ser o que era. E aquela famigerada picada virar estrada de verdade. Talvez no dia 31 de Fevereiro do ano que vem.

É assim, carregado de emoções fortes, que regresso a Nampula para pegar o comboio até Cuamba, porque de estrada, só se estivesse doido é que arriscaria...
Gostaria de começar este apontamento com dois pontos prévios. O primeiro, é simplesmente dizer que lí hoje no jornal Notícias, que só faltam 18 distritos no país para serem electrificados. Bem, eu acredito que Nampula, Cabo Delgado e Niassa juntos, superam e muito os 18 distritos. Sendo assim, a menos que estes locais sejam catacumbas nas montanhas, acho que estamos em presença de uma enormidade do sr. vice-ministro da Energia, que pelos vistos, pertence ao clube dos amantes de relatórios. Shame on you!
O segundo ponto prévio, é atrever-me a fazer uma transcrição, com a devida vénia do autor, do seguinte post:

“...O horizonte, um fio de fumo que se avoluma, o comboio que se aproxima. Chiar de freios, vai parando, parou. A vila atraca buliçosa às carruagens. Chicualacuala...”

In Diário de Um Sociólogo, Setembro de 2006

Pois foi exactamente isso que encontrei ao chegar a Cuamba. Partindo em simultâneo de Nampula e de Cuamba no sentido oposto 6 vezes por semana, este é o COMBOIO! Um micro-cosmos de gente que se translada periodicamente unindo os macuas de Nampula e Niassa. Suas cinco carruagens, com capacidade de cento e picos pessoas cada uma, levam mais que o dobro. Numa só viagem, mil pessoas é muito pouco. E nem importa se há preços diferenciados, especiais e quejando, viaja-se sentado e de pé, por cerca de 9 horas até ao destino final. Quer numa, como noutra direcção, se faz o comércio. De Cuamba, os produtos agrícolas. De Nipepe, o famoso amendoim de duas cores, que alguns chamam “João & Maria”, sabe-se lá porquê. De Nampula, as famosas bicicletas que permitem o executivo justificar a cobrança de impostos ao comercio informal na provincia.

É uma viagem estafante. Que merece um banho bem tomado assim que se chega ao destino. Puro logro, em Cuamba há – como já poderia imaginar – ainda mais poeira. E chuveiro para tomar um duche é coisa de gente fina mesmo. Esta é uma autarquia dominada desde a primeira hora pela FRELIMO. Aqui não se vê uma única bandeira da oposição. Está tudo dominado pelo partidão. É a chamada capital económica do Niassa, por causa da linha férrea e da estrada quase totalmente asfaltada que lhe liga a Nampula vinda do hinterland. A bem da verdade, esta “cidade” deveria fazer parte de Nampula, por todas as razões que se possam saber (e até muitas outras). Por isso, só um milagre explica como é que uma das primeiras autarquias da FRELIMO em Moçambique e que tem estatuto de cidade, não possui sequer, um metro de estrada asfaltada. Nem serviço de recolha de lixo que se preze. E nem nada que lhe faça lembrar gestão municipal. Se não fossem os veículos motorizados, que levantam uma poeirada dos diabos em qualquer canto da cidade, isto bem poderia ser um hollywoodesco cenário para um reprise do Trinitá, o Cow-Boy insolente. Percebem agora porque um duche aqui é como beber um copo de água no deserto. Um luxo. As habitações, também, têm um aspecto peculiar. Todas de côr vermelha. Mas não é tinta não. É a poeira do Niassa. Enfim, com tanta smoeira, isto é, uma mescla de poeira e smog causado pelas viaturas em constante movimento, só dá mesmo sentar aqui no S.Miguel para aliviar o stress. Puro engano, com um menú de mais de 20 variadades de pratos, normalmente só tem 3 ou menos disponíveis. Tchambo há sempre, para variar. E com xima, também para variar. E quanto as bebidas, fique-se pela Coca ou Fanta. E Manica feita a partir da Mandioca. Felizmente estão gelados.Tudo Made in Nampula. Por isso, é melhor ficar pela saudável água ou chá do Gurué, muito popular por estas paragens. Aliás, um aviso estampado no restaurante já adverte algum atrevido da cidade que deseje encomendar um “take-away”. São sete horas de antecedência, no mínimo, isto é, se o cozinheiro não estiver ocupado com outros afazeres. Até parece que os ingredientes vêm de Nampula, no comboio. Às tantas...

Aqui, neste lugarejo, o único médico que encontrei disse-me que nunca iria aderir à greve dos seus colegas. Não me bem explicou porquê. Simplesmente limitou-se a repetir o que eu ouvia no Bom Dia Moçambique da TVM, que no caso do Niassa, ainda tem uma edição local do género TV Rural. Em Cuamba, como já imaginam, em sinal aberto, só se vê TVM. 24 horas por dia. 365 dias por ano. Via satélite, vê-se qualquer coisa. Mas esses privilegiados, ou não fazem política. Ou são do partido no poder. Logo para todos os efeitos, ninguém acredita que esta greve das batas brancas em Maputo esteja a atrapalhar a governação do glorioso AEG, que aqui é exaltado como um Messias, em cada repartição pública, do vilarejo alcunhado de cidade. Se em Maputo, muito lêm a Bíblia para buscar inspiração divina. Em Cuamba, a função pública reúne-se para estudar os discursos do líder. E isto, não é partidarização. É que aqui não há imagem de qualquer outro partido que não seja o (Tu)barão Vermelho. Sempre foi assim. E assim será. Imaginem então a excitação da pré-campanha deste ano. O cacique local, candidato a revalidação por decreto, acaba de anunciar que a sua cidadezita vai ter o primeiro km de estrada asfaltada. Que grande feito, em mais de 10 anos de autarcização!!!

Quanto ao comércio, isto é mais uma filial de Nampula. As mesmas manhas. As mesmas ronhas. São os testas-de-ferro dos marajás do norte e nem sequer se preocupa, em usar um esquema esconderem 100, declarando oficialmente 10 e mandando um cheque de 30 ao comité local do Partido FRELIMO ou ao Município, que no fundo são a mesma coisa. Não precisam, a Lei Fiscalidade já protege as sucursais de uma auditoria eficaz. Que bónus...

Mas quem manda aqui é a Mozambique Leaf Tobacco. Dá trabalho a quase tudo que é trabalho braçal na região. Produz vigorosas quantidades de nicotina em folha, que consomem azoto a rodo dos solos locais. E quando eles se tornam improdutivos, planta pinheiros vindos do Malawi, como vêem na foto, para “purificar o ar de Cuamba”, dizem. Que ironia. Já a Cerâmica local não passa de uma ruína abandonada. Morreu de velhice ou de estupidez humana. A Movitel também, é muito bem vista aqui. Porque acompanha os viajantes, dizem. Já a concorrência é quando calha. Por isso, esqueça, aqui até as TIC são monopartidárias. Aliás, começo a formar uma invariante. Todas células da FRELIMO usam Movitel. Logo todas as células estão sempre on-line. E como as células estão em todos povoados. Logo, todo militante tem o dever de cuidar da rede Movitel. Mas dizem que tudo vai mudar antes do AEG se despedir em 2015. Que vai haver uma linha-férrea para Lichinga. E que já há financiamento para a respectiva estrada asfaltada também. Veremos se as obras não empatam como aquelas que estacionaram em Macomia desde 2009. Que bom se houvesse pleitos eleitorais a cada semestre. Já teríamos vencido a luta conta a pobreza. Nem parece que aquela pequena estação de aldeia é um dos pontos nevrálgicos do tão afamado corredor de Nacala. Dizem os relatórios e workshops que por aquela linha que vêem na foto vão circular milhões de toneladas de carvão da VALE. E a soja, o arroz e quejando do PROSAVANA. É preciso vir mesmo aqui ver a equação a muitas incógnitas que isso é. Os tipos até já andam por aí, cheios de projectos. Fazendo contas a vida. Uns até já imaginam uma Cuamba cintilante, cheia de arranha-céus. E quem sabe, até um aeroporto internacional. É do caraças...Pois, pois, lá cintilante ela é. Mas isso, ou é das estrelas, ou das oscilações constantes da central eléctrica local. E dizem que a linha do norte de Cahora Bassa passa mesmo ali. Essa sim, é que arranha mesmo os céus estrelados do Niassa.

Este sim, é meu único consolo ao estar aqui deitado de barriga para o ar, cheio de repelente anti-pernilongo. Não vejo a hora de pegar um carro para Mandimba logo às primeiras horas da madrugada...

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