sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

A crise político-militar configura um limite circunstancial à revisão constitucional!

Do RELATIVIZANDO, da lavra do Ericino de Salema, no SAVANA:


A Constituição da República de Moçambique (CRM) prevê, no Capítulo II do seu Título XV, três limites à sua revisão, designadamente os limites materiais (artigo 292), os limites temporais (artigo 293) e os limites circunstanciais (artigo 294).

Os limites materiais visam salvaguardar e/ou proteger aquilo que é o escopo do Estado de Direito Democrático, que o legislador constituinte o fixou em 12 pontos: a independência, a soberania e a unidade do Estado; a forma republicana do Governo; a separação entre as confissões religiosas e o Estado; os direitos, liberdades e garantias fundamentais; o sufrágio universal, directo, secreto, pessoal, igual e periódico na designação dos titulares electivos dos órgãos de soberania das províncias e do poder local; o pluralismo de expressão e de organização política, incluindo partidos políticos e o direito de oposição democrática; a separação e interdependência dos órgãos de soberania; a fiscalização da constitucionalidade; a independência dos juízes; a autonomia das autarquias; os direitos dos trabalhadores e das associações sindicais; e as normas que regem a nacionalidade, não podendo ser alteradas para restringir ou retirar direitos de cidadania. A extrema relevância destas questões de índole material levou a que o legislador estabelecesse que a sua alteração deve ser precedida de um referendo a elas favorável.

Já os limites temporais visam, na verdade, conferir alguma estabilidade constitucional ao nosso Estado, termos em que a CRM só pode ser revista cinco anos depois da entrada em vigor da última lei de revisão, havendo apenas uma excepção a este comando: quando a AR delibera pela assunção de poderes extraordinários de revisão, no quadro do que é exigível uma maioria de três quartos (pelo menos 187 dos 250) dos deputados.

Um terceiro e último tipo de limites, nem por isso menos importantes, são os circunstanciais. Consigna a CRM, a este propósito, que na vigência do estado de sítio ou de estado de emergência não pode ser aprovada qualquer alteração à lei fundamental.

Quanto aos limites circunstanciais, e considerando que uma Constituição nunca deve ser lida como se lê um jornal, não será razoável indagar se a crise político-militar que o país vive há pouco mais de dois anos não configura, em bom rigor, uma situação tal [de limitação circuntancial] à revisão da CRM? Apressadamente, a resposta pode ser esta: em momento algum foi declarado o estado de sítio ou o estado de emergência, termos em que se não pode colocar essa questão.

Considerando que, em termos das técnicas de interpretação constitucional, há, quando o assunto é a análise aos limites de revisão constitucional, os limites de revisão expressos e os limites de revisão implícitos ou tácitos (Mendes e Branco; 2009; Curso de Direito Constitucional; pág. 138), quer nos parecer que a já tristemente célebre e duradoura crise político-militar configura, sim, um limite circunstancial à revisão da CRM. Aliás, a doutrina segue esta via interpretativa, tendo como base o facto de os limites circunstanciais existirem para vetar qualquer reforma em situações de crise institucional, em razão do ambiente que se instaura “nesses momentos impróprios como em estado de guerra, de sítio ou de qualquer outra situação que possa calar a opinião pública ou limitar outros direitos individuais” (Danuela Bornin; S/D; Limitações ao poder constituinte reformador).

Em boa verdade, uma crise político-militar, não sendo necessariamente uma situação jurídica, deve ter como base para a sua solução, de entre outros, aquilo que o Tribunal Supremo dos Estados Unidos da América (EUA) designou, em 1929, de “doctrine of political questions” (doutrina de questões políticas), pelo que a via mais segura para curar a nossa situação talvez seja a política e não necessariamente a jurídica.

Os últimos dois exercícios que tinham como objecto a revisão da CRM de 2004, o último dos quais reprovado esta semana pelo voto maioritário da Frelimo na AR, têm o mérito de revelar algo tão profundo como isto: as principais forças políticas do país estão de acordo quanto à premência da revisão constitucional. O que essas principais forças políticas se demoram a atender é a economia política dessa revisão. Quanto à relevância e premência de uma revisão constitucional, achamos substancial o que o juiz Carlos Mondlane defendeu em 2012, em artigo intitulado “Limites da revisão constitucional em Moçambique":

“Naturalmente, uma Constituição, como lei, pode ser aperfeiçoada e deve-se evitar o imobilismo. E, de resto, ainda que não haja revisões formais, uma Constituição evolui por força da interpretação, da prática e das decisões dos tribunais. Tudo está em que as revisões sejam realizadas na base da experiência, em tempo razoável à luz do dia, com equilíbrio e procurando aumentar, e não diminuir, os consensos inerentes às soluções constitucionais (pág. 11).

Para terminar, imaginemos o seguinte: se, numa certa manhã de Dezembro de 2015, o Presidente da República (PR), Filipe Jacinto Nyusi, ligar para o líder da Renamo, Afonso Macacho Marceta Dhlakama, dizendo “irmão, em prol da demonstração inequívoca do pluralismo político do nosso país, envia-me três nomes de quadros do teu partido ou que os julgas idóneos e à altura, para que eu possa nomear um deles para governador da província de Gaza”, e, em resposta, Dhlakama propusesse as cidadãs A, B e C, e o PR, depois da relevante análise e ponderação, nomeasse a cidadã B, se estaria em face de uma violação à CRM? Claramente que não, pois a CRM é inequívoca: “Compete-lhe [ao PR], ainda, nomear, exonerar e demitir os Governadores Provinciais” [alínea b) do número 2 do artigo 160]. À luz da CRM, é irrelevante se B, a nomeada nesta situação hipotética, é da Frelimo, da Renamo, da Frenamo, do MDM, sem partido político, etc.

Para a semana, por conta da inelasticidade do jornal, voltaremos a este assunto, com enfoque em duas questões principais: os erros estratégicos da Renamo quanto aos fundamentos da revisão e os equívocos da Frelimo quanto à constituição de uma comissão ad-hoc para a revisão constitucional.

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