OPINIÃO
Em tempos, Pacheco Pereira cunhou a palavra “engraçadismo” para classificar aqueles que, como eu, utilizam o humor para falar de assuntos políticos, com uma superficialidade (diz ele) que impede uma genuína reflexão sobre os problemas do país.
Hoje, eu queria devolver o cumprimento e acusar Pacheco Pereira de “desgraçadismo”, que podemos classificar como a utilização de um discurso catastrófico para falar de assuntos políticos, com um primarismo (digo eu) que impede uma genuína avaliação do estado do país.
Não digo isto só para embirrar com Pacheco Pereira em vésperas de eleições, mas porque a sua atitude me parece sintomática do desfasamento que existe entre a realidade do país e a narrativa que sobre ele foi sendo construída ao longo dos últimos anos. Todos estamos admirados com as sondagens, e há seis meses não se vislumbrava vivalma capaz de admitir em público a sua fé na vitória da coligação. Contudo, há uma diferença significativa entre o espanto e a incompreensão. Eu estou espantado, mas percebo. Já a esquerda da pátria, e a própria esquerda do PSD, não está pura e simplesmente a perceber o que lhe está acontecer. Afinal, como é possível que num Portugal espremido até à última gota de IVA, de sobretaxa de IRS, de 13º mês, de terrível precariedade e impiedosa austeridade, quatro em cada dez eleitores ainda se mostre disponível para votar em quem nos governou desde 2011? O povo embruteceu de vez?
Não, o povo não embruteceu de vez, embora o mesmo não se possa dizer de quem decidiu resumir os últimos quatro anos de Portugal a uma espécie de “waste land” – para esses, Outubro pode bem vir a ser o mês mais cruel. Ao mesmo tempo que fomos sendo esmagados por um discurso mediático centrado em números de desemprego, programas de ajustamento, cortes, emigração, quedas de bancos e protestos de corporações descontentes, havia centenas de milhares de portugueses a fazer pela vida e a tentarem desenrascar-se sem a velha bengala do Estado, cada vez mais frouxa e desconjuntada. O desgraçadismo está muito sobrevalorizado.
É verdade que boa parte dos portugueses que vão votar na coligação não estão satisfeitos com a governação de Passos Coelho e Paulo Portas. Eu próprio, no próximo domingo, vou votar PàF mais ou menos com a mesma convicção com que os comunistas votaram em Mário Soares em 1986. Trata-se de engolir, não direi um sapo, mas, pelo menos, uma rã. Só que não tenho alternativa à rã – não há um único partido que esteja a criticar a coligação por aquilo que ela merece ser criticada. Todos os políticos batem na tecla da austeridade, quando todos os não-políticos têm a perfeita consciência de que a austeridade era inevitável; toda a esquerda acusa o governo de ter ido além da troika, quando o maior erro do governo foi ter ficado aquém da troika.
Tivesse alguém dito: “o governo perdeu uma excelente oportunidade para reformar o país”, e eu estaria ao seu lado. Mas não. Em toda esta campanha apenas se ouviu a conversa do desgraçadinho. Ora, para quem não é desgraçadinho, não se sente desgraçadinho e não está viciado em desgraçadismo, o discurso do queixume e as promessas de regresso a vacas gordas em prado ralo são muito pouco convincentes. O país mudou e o PS estava distraído. Acreditou que para ganhar folgadamente as eleições bastava, como dantes, sacar o voto do descontentamento. Enganou-se: desta vez, os descontentes não são todos iguais.
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