A Pérola do Índico não deixa de surpreender. Desta feita a surpresa vem de Tete, onde uma carta aberta das “Organizações da Sociedade Civil de Tete, das comunidades, comerciantes e demais cidadãos sem voz e sem uma representação formal” apela ao Presidente Nyusi para revogar um diploma ministerial que impõe taxas de portagem bastante onerosas. O parágrafo que abre essa carta diz o seguinte:
“Caro Sr. Presidente da República de Moçambique; Queria aceitar, antes de mais, as nossas cordiais saudações. A presente carta é uma manifestação do sentimento das Organizações da Sociedade Civil de Tete, das comunidades, comerciantes e demais cidadãos sem voz e sem uma representação formal. Endereçamos a si esta carta porque entendemos que as novas taxas de portagens foram aprovadas por um Diploma Ministerial. O que significa que mesmo estando em Tete é com o Senhor Presidente que temos que interagir, pois a nível provincial ninguém tem a autonomia de revogar um Diploma Ministerial a não ser a si que o ratificou”.
Esta é uma carta que súbditos escrevem ao Rei; não é carta de cidadãos para o seu representante. Digo bem: esta é uma carta que súbditos que querem ficar súbditos para toda a vida escrevem ao Soberano. A filosofia política por detrás desta carta é a de Hobbes, de Rousseau e, claro, do Marx “cafreal” que tanto mal fez à nossa cultura política. É a filosofia política do indivíduo que confia no Leviatão e, em troca, deseja apenas que lhe seja poupada a vida. Não é a filosofia política de Locke e sua ênfase no indivíduo que sabe que o outro apenas o representa, mas não é alfa, nem ômega. Nem é a filosofia política do sistema político que desde 1992 estamos a tentar estabelecer no País que coloca a política no centro da constituição da nossa vida através da cidadania activa. É a trivialização do político na sua forma mais abjeta.
Não questiono a legitimidade das preocupações apresentadas pela carta. Questiono o que a forma como elas são apresentadas documenta sobre o nosso sistema político. Primeiro, esta frase horrível “[a] presente carta é uma manifestação do sentimento das Organizações da Sociedade Civil de Tete, das comunidades, comerciantes e demais cidadãos sem voz e sem uma representação formal”. Demais cidadãos sem voz e sem uma representação formal? E ainda assim são cidadãos? E como “sem voz e sem uma representação formal” se existe uma Assembleia Provincial, existe um Município e existe uma Assembleia da República? E já que a carta menciona “comunidades”, será que os “demais cidadãos sem voz e sem uma representação formal” vivem fora das “comunidades”? Ou é apenas a gíria normal da “sociedade civil”? Será que os que não têm voz, nem representação são os que vão dar banhos de multidões aos outros que falam em nome do povo? Eu não sei, mas a minha primeira reacção ao ler esta carta, sobretudo ao ler o primeiro parágrafo, foi de que há qualquer coisa de fundamentalmente errado na concepção de política que alguns concidadãos têm. Ao invés de activarem as estruturas políticas locais – falando com os seus representantes locais, fazendo manifestações, abaixo-assinados, boicotes, etc. – “saltam estruturas” e correm logo para a “Nação”, desautorizando, dessa maneira, os níveis locais.
Segundo, tem aí outra frase horrível “…mesmo estando em Tete é com o Senhor Presidente que temos que interagir, pois a nível provincial ninguém tem a autonomia de revogar um Diploma Ministerial a não ser a si que o ratificou”. Como não? Se essa for a vontade dos eleitores de Tete, se eles tornarem isso claro aos que lá em Tete representam o partido do Chefe do Estado, porque é que não pode haver essa “autonomia” ao nível provincial? Que Estado é esse que fica indiferente à vontade popular organizada? E aqui levanta-se de novo a questão crucial: que entendimento de política temos nós? Temos mesmo consciência de que somos cidadãos? Eu duvido. Muito mesmo.
Terceiro, nota-se a ausência gritante dos partidos políticos. É para isto que existem partidos políticos numa democracia representativa. São estes assuntos que dão conteúdo ao trabalho dos partidos. Mas aqui há dois problemas sérios que se insinuam. Um problema tem a ver com a cultura da sociedade civil profissionalizada que, em minha opinião, tem contribuído em grande medida para despolitizar (e muitas vezes externalizar) os problemas sociais, ao invés de os politizar. As OSC sentem-se à vontade falando em nome dos que não têm voz, nem representação formal (que é na verdade uma ficção útil a sua própria reprodução), mas não conheço um único caso duma Organização da Sociedade Civil que se aproximou dum partido político da oposição para fazer frente comum em algum assunto de interesse político. O outro problema é dos partidos da oposição que investem mais nas eleições e ficam à espera do dia em que vão estar no poder, e mandam às favas todo o trabalho que precisa de ser feito hoje. Aposto que estas preocupações da população de Tete nem ocorreram a nenhum dos partidos. De resto, até hoje, mesmo o grande assunto da madeira no norte do País não mereceu o tratamento privilegiado dos deputados que representam as regiões afectadas. Aí eu até pergunto: suponhamos que se mudem as regras do jogo e que o projecto das Autarquias Provinciais passa: quando houver um Diploma Ministerial qualquer que prejudica o povo autónomo para onde se vai correr? Para quem exigiu o direito de nomear ou para quem está lá longe em Maputo?
Quarto, as várias discussões que acompanho por aí que apontam, por um lado, para as limitações fiscais do Estado, e, por outro, para a violação de promessas eleitorais dão conta dum problema fundamental que é de todos nós. Não é possível avaliar intenções políticas na base de políticas pontuais. Intenções políticas avaliam-se pela visão programática que as sustentam. Foi sobre isso que falei em alguns textos há algumas semanas a comentar os primeiros passos do novo Governo. Se o Presidente revogar essa decisão que tanto preocupa os Tetenses, muita gente vai aplaudir com alguns a reclamarem vitória e outros a enaltecer as qualidades de ouvinte do novo Presidente. Mas o problema de base não será abordado. E esse problema tem a ver com o próprio modelo político que confere muitos poderes ao Chefe de Estado e ao Governo central ao mesmo tempo que enfraquece criminosamente os poderes locais. Escrevi sobre este assunto várias vezes. Uma vez sugeri uma autarcização mais radical ao lado da abolição (ou eleição) dos governadores provinciais; já escrevi um texto sobre as limitações do poder do Chefe do Estado no qual, inclusivamente, perguntava ao então Presidente, Armando Guebuza, para imaginar o seu pior inimigo a ocupar o Palácio da Ponta Vermelha com os mesmos poderes; foi também nesta perspectiva que saudei de forma entusiástica o fundo dos 7 milhões introduzido pelo anterior Presidente e que me parecia caminhar no sentido dessa maior responsabilização dos níveis locais; sinto-me atraído por um sistema eleitoral uninominal, cuja ausência foi magistralmente criticada (ainda que indirectamente) num texto recente (e fulminante) do jurista Gilberto Correia que recordava aos deputados que ele só tinha escolhido listas, e não as pessoas. Nyusi ainda não se pronunciou de forma programática. Tudo quanto tem feito é apenas anunciar intenções viradas para questões pontuais. E a ser aplaudido por tão pouco.
Mas o assunto dava para um óptimo plano B, disso não tenho dúvidas.
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