sexta-feira, 10 de abril de 2015

Desmemoriar para melhor escravizar


10.04.2015
ALEXANDRE PARAFITA
É deveras inquietante para a humanidade o apelo que a diretora-geral da UNESCO, Irina Bokova, teve de lançar aos jovens, desde a Universidade de Bagdad, para que usem todos os meios ao seu alcance, especialmente as redes sociais, no combate à campanha de "limpeza cultural" a que está sendo sujeita a República do Iémen, com as ações orquestradas de destruição do seu património cultural pelos grupos extremistas do Estado Islâmico. O património do Iémen é único. Grande parte está classificada como Património Mundial. Nela se mostram séculos de reflexão sobre o Islão. A destruição do museu da cidade setentrional de Mossul e vários sítios arqueológicos, como os de Nimrud e Hatra, bem como a difusão pelos jiadistas de um vídeo que mostra a destruição de esculturas pré-islâmicas de valor inestimável, estão ainda vivas na memória recente.
Um apelo desta natureza aos jovens, implicando-os num combate ativo pela defesa do património, acentua também a noção de que o património cultural não é um bem exclusivo de uma geração. A nenhuma geração cabe o direito de fazer dele o que bem entende, nem tão pouco de sujeitá-lo aos seus caprichos civilizacionais, pois trata-se de um legado da cosmogonia de um povo, ou seja, a herança da sua memória coletiva, havendo que acautelar o direito que a ela também têm as gerações futuras. E tudo porque a memória tem também um papel normativo, especialmente quando, representada no património comum (material ou imaterial), lhe cabe inserir os indivíduos numa cadeia de filiação identitária.
Daí que a campanha de "limpeza cultural" a que se assiste no Iémen deva alertar-nos para o maquiavelismo de uma estratégia (tratando-se de uma estratégia e não de um sórdido vandalismo apenas) apostada numa "queima de arquivo" da memória de um povo. Aliás, nem sequer é original esta estratégia e conhecem-se bem os efeitos de outras que a história dificilmente apaga. Bem sabemos como a cristandade se empenhou em destruir, na Península Ibérica, os documentos árabes do séc. VIII, como forma de eliminar a verdade da memória muçulmana, ou impedir, posteriormente, a sua reconstituição. De facto, para melhor dominar um povo, escravizá-lo mesmo, há que "sugar-lhe" a memória, e, desse modo, eliminar-lhe a identidade. Chama-se a isso desmemoriação.

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