Na falta do melhor
Os primeiros dias dum governo são interessantes. Tenho estado a acompanhar o nosso com algum interesse (aquelas dores de cotovelo…). Alguns pronunciamentos, senão todos eles, dos novos governantes fizeram-me recuar no tempo. Lembrei-me do meu avô materno que era curandeiro. Só tinha um remédio que servia para todas as doenças. Chamava-se “nthla-nthla ngati” (tradução literal: dilui ou liberta o sangue). O remédio consumia-se aos litros. Até dá volta no meu estômago só de pensar nisso. Quem se sentir tentado a rir por achar o meu avô curioso vá com calma, por favor. Ele não foi diferente dos europeus, uns 100 anos antes dele, que também tinham esta obsessão com o sangue. Nos meados do século XIX a França chegou a importar 40 milhões de sanguessugas que eram utilizadas nas famosas sangrias, o principal método de curar doenças durante 2000 anos… A ideia era simples. A doença tinha a ver com o equilíbrio dos líquidos do corpo (bílis, muco e sangue) que se restabelecia sugando o sangue do doente. Milhares de europeus morreram desta forma às mãos dos descendentes de Hipocrates, sobretudo barbeiros. E o curioso é o seguinte: não é que eles não tivessem consciência de que na maior parte dos casos esse método de cura fosse uma autêntica perca de tempo. Tinham. Mas não conheciam nenhum outro método melhor.
E isto traz-me de volta ao novo governo. Sistemas complexos – e o corpo humano é um sistema complexo – têm o condão de nos encorajar a desenvolvermos teorias que não abandonamos de qualquer maneira sem que haja uma melhor. Ficamos reféns das velhas maneiras de fazer coisas. Ouvi vários depoimentos dos novos governantes. O da educação diz que as suas prioridades consistem em colocar carteiras nas escolas e pagar os salários em atraso; o da ciência e tecnologia diz que a sua prioridade é de constituir o ministério, depois reconverter os desistentes da universidade para o ensino técnico-profissional e depois ajudar as universidades privadas a terem o mesmo nível da UEM, o do interior diz que vai reduzir a criminalidade e os acidentes de viação, o da terra diz que vai ajudar o povo a produzir riqueza a partir dessa importante conquista e a governadora de Gaza – que esse traidor do Jaime Langa já começou a bajular – diz que ainda vai conhecer a província, repetindo, na verdade, a exortação do seu chefe feita a todos os governadores para primeiro irem conhecer as suas províncias e aprenderem do povo, o novo patrão. Etecetera.
Tudo isto dito 40 anos após a nossa independência. Praticamente o mesmo discurso de sempre. Há 40 anos que os nossos governantes são nomeados para irem “ganhar experiência” ou “resolver os problemas do povo”. Antes que seja mal-entendido e que o texto seja compartilhado efusivamente pelos que normalmente me consideram desvairado, apresso-me a dizer o seguinte: é bom aprender e é bom se preocupar com a sorte do povo. Mas governar devia ser mais do que isto. Dum governante, não importa o sector, nem a sua experiência, nem a sua formação, devíamos ouvir muito mais do que este tipo de lugar-comum. Colocar carteiras nas escolas, aumentar a segurança, pôr a terra a produzir riqueza, etc. é o que realmente deve acontecer. Mas o mais interessante, pelo menos para mim cá do conforto da minha mesa de trabalho, é saber qual vai ser a estratégia e porquê essa estratégia. E a razão é simples. Os seus antecessores também deviam ter logrado isso. O que é que se passou? Mudaram de prioridades ao meio do caminho, ou a estratégia por eles determinada falhou ou ainda não surtiu efeito?
E com isto volto à sangria. Os médicos primeiro cortavam uma artéria do braço e deixavam o sangue brotar, assim meio litro, até o doente desmaiar. No dia seguinte repetiam a mesma operação várias vezes até não sair mais sangue. Depois colocavam um frasco de vidro com ar quente sobre a ferida. À medida que o ar arrefecia criava um vácuo que espremia mais sangue. Finalmente, colocavam as importações francesas (as sanguessugas) na ferida que se refastelavam até nem mais. Ao fim de três meses o doente recebia alta, vivo ou morto. Mais morto do que vivo. Por falta duma teoria melhor para abordar um problema complexo.
E repito: não estou a criticar (apesar de estar). Eles estão a agir de acordo com o que sabem e na melhor das intenções. Portanto, o que estou a dizer é que se queremos mesmo que os nossos governantes sejam melhores teremos que os interpelar a um outro nível. Não ao nível dos resultados finais que eles deviam alcançar, mas sim ao nível do que eles pretendem fazer para alcançar esses resultados. Seria por aí que a discussão iria animar. É claro que quem aborda os assuntos politicamente vai sempre chamar a atenção dos governantes para os resultados. E isso é legítimo, ainda que não seja tudo. Mas se queremos ser mesmo parte do processo – já que fomos declarados patrões – devemos interpelar os nossos governantes a um outro nível. E recusarmo-nos a ecoar declarações, em minha opinião, vazias de sentido. Carteiras, sim, menos crime, sim, riqueza da terra, sim, melhor formação, sim, mais conhecimento da província, sim, mas COMO e porquê ASSIM?
É a falta deste tipo de interpelação que leva muita gente a pensar que também pode governar, basta fazer uma lista enorme dos resultados que espera alcançar. E é isso que empobrece a nossa política.
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