... UMA PARÁBOLA
SOBRE O QUE DISTINGUE UMA SOCIEDADE DECENTE SÃO, PELOS VISTOS, DE APLICAÇÃO
FACULTATIVA, MESMO PELAS AUTORIDADES JUDICIAIS
Chama-se Mamhoud e desde Junho do ano passado que está separado da maioria dos seus irmãos. Porque estava na escola quando a polícia chegou para levar sete dos dez filhos de Liliana Melo. As irmãs mais velhas ajudaram-no a escapar à ordem do tribunal e no outro dia vimos a sua silhueta numa reportagem da RTP. Passaram sete meses e as "autoridades", que naquele dia de Verão entraram pela sua casa adentro, parece terem-se esquecido dele. Na altura era uma "criança em perigo" que tinha de ser imediatamente retirada à guarda dos familiares. Agora será o quê para o tribunal, os seus técnicos e os seus polícias?
O país esquece depressa as suas fugazes histórias mediáticas, e poucos se lembrarão de Liliana e da polémica sobre uma ordem de laqueação de trompas, mas esperava-se que as instituições fossem, no mínimo, mais persistentes. Não dão indicações de o ser. É que se Mamhoud ficou para trás na ordem de o levar para uma instituição de acolhimento, as suas duas irmãs mais velhas também ainda esperam pelo "apoio psicológico" que o juiz prescrevera. As sentenças dos tribunais são, pelos vistos, de aplicação facultativa, mesmo pelas autoridades judiciais.
Estas incongruências reforçam a convicção de que houve neste processo muita inumanidade e, porventura, algum preconceito. Por isso ele é, também, exemplar sobre alguns dos males da nossa sociedade.
Primeiro que tudo, o problema da imposição da laqueação de trompas. O tribunal, apoiado pela corporação dos juízes - da associação sindical a um comunicado apócrifo do Conselho Superior da Magistratura -, sustenta que a decisão de tirar os filhos à mãe nada teve a ver com o facto de esta, por razões religiosas, não aceitar realizar aquele tipo de operação. O tribunal diz até que Liliana a "aceitou" num acordo com os técnicos da Segurança Social. O que não deixa de ser extraordinário, pois aparentemente o tribunal não se interrogou sobre as condições em que Liliana terá sido levada a aceitar um "acordo" que, sendo conhecida a sua religião, mais soava a imposição. Por outro lado, conforme relatava o último Expresso, este tipo de imposição está a tornar-se muito habitual na Grande Lisboa. A "sugestão" vem por regra de técnicos da Segurança Social, as destinatárias são quase sempre mulheres de origem africana. É uma solução expedita que desobriga os técnicos e lhes permite passar o problema ao hospital, altura em que os serviços lavam dele as mãos.
Mesmo que o tribunal não tivesse considerado a falta à laqueação de trompas uma questão relevante - e considerou, como se verifica lendo as 42 páginas do acórdão -, a verdade é que em momento algum questionou a validade da "sugestão". Mais: apesar de o acórdão descrever a situação familiar do pai das crianças, um muçulmano com três mulheres e três famílias diferentes, em nenhuma passagem há qualquer referência ao facto de Liliana ser muçulmana, como se as suas crenças não tivessem qualquer importância nas suas opções e não devessem ser respeitadas.
Não está em causa saber se concordamos com as opções de Liliana, nem sequer o que possamos pensar de alguns aspectos da religião muçulmana. O ponto, como notou esta semana José Tolentino Mendonça, é que "é trágico não perceber-se que a ofensa à liberdade religiosa coloca em causa a liberdade em sentido absoluto, a liberdade de nós todos". E foi a liberdade religiosa de Liliana que foi posta em causa neste processo.
A leitura da sentença é muito instrutiva. Não quero ser injusto, pois não pretendo conhecer todos os detalhes do caso, mas a forma como é descrita a intervenção dos diferentes serviços sociais é reveladora de uma frieza e de rotinas burocráticas que afligem. Em certos períodos visitavam a casa de Liliana de três em três meses, concluíam que ela ainda não estava a cumprir com todas as "sugestões", faziam mais um relatório e ficavam à espera que um qualquer milagre ocorresse entretanto. Por exemplo: os papéis da cabo-verdiana não estavam em ordem e por isso ela não podia receber apoios sociais (só recebia abono de família, num certo período 175 euros); os técnicos determinavam então que tinha de ir tratar dos papéis; ao mesmo tempo condenavam-na por às vezes deixar os filhos mais novos à guarda dos mais velhos e constatavam que o pai só ia a casa alguns dias por semana. Pergunta-se: mas como queriam que ela fosse tratar dos papéis? Podia encontrar outros exemplos, que o padrão seria sempre o mesmo: olhava-se para aquela família com os olhos de quem tem uma família normal e exigia-se a uma mãe com nove filhos que lhes desse os banhos que se dão numa casa da classe média, mesmo quando se reconhecia que a água estava cortada ou o esquentador avariado.
Não duvido que, pelo menos em alguns dos períodos, aquela família era muito desorganizada, que aquela mãe não cumpriria com todas as obrigações que hoje se esperam de uma mãe, mas só por uma vez se encontrou uma resposta adequada para a situação: quando uma técnica da organização não-governamental Movimento em Defesa da Vida passou a acompanhar o processo. Ia a casa da Liliana quatro vezes por semana, levou-a a Cascais a tratar dos papéis e enquanto a colaboração se manteve a evolução foi notável. Não é possível deixar de pensar que isso também sucedeu porque esta organização se baseia na dedicação de voluntários e nos serviços públicos há demasiado espírito "das nove às cinco" e um desejo inconfessável de que "ninguém venha com mais problemas". Não é sempre assim, mas é demasiadas vezes assim. Talvez porque o sentido de humanidade de uma sociedade diminua consoante temos mais leis e mais funcionários a tratar de nós, e menos obrigação sentimos de olhar para quem está ao nosso lado e possa precisar de ajuda. A simples existência de serviços sociais é nisso muito eficaz: alivia-nos a consciência.
Chegamos assim à questão do equilíbrio da sentença - até porque a decisão de dar um filho para adopção é a solução limite, a solução para casos extremos. Neste caso, retirar sete dos dez filhos a uma família onde se admite que há amor e carinho, onde não há maus tratos, abusos sexuais ou dependência de drogas, onde podem faltar umas vacinas no boletim de saúde mas onde as crianças têm aproveitamento escolar muito razoável, é incompreensível. Se houvesse violência ou abandono, o que se decidia? Condenava-se a mãe à forca e o pai ao exílio?
Aquilo que parece ser proibido, seguindo a lógica da sentença, é ser pobre e ter muitos filhos. Não está lá escrito, mas é o que está implícito numa declaração do juiz Rui Rangel ao PÚBLICO, em que defendeu que os pais "não podem ter os filhos que querem" se não tiverem condições. Ficámos sem saber o que sugere nesses casos. Talvez a castração, pois é o passo que falta dar.
Em todo o acórdão se nota que as acusações àquela família oscilam permanentemente entre ela não ter condições de vida tranquilas, não haver dinheiro suficiente ou a casa ser pequena, e a mãe (sistematicamente tratada como "a progenitora") não cumprir com as sugestões dos técnicos, sendo culpada de desorganização. Algumas das coisas que lhe fizeram são mesmo inauditas e impensáveis se se tratasse de alguém mais diferenciado e com advogado constituído. Basta referir que Liliana foi convocada para ir a tribunal sem saber ao que ia, que chegou e ouviu a leitura da sentença secamente, que depois não pôde levantar uma cópia porque era sexta-feira e os serviços já tinham fechado, que teve de lá voltar na semana seguinte e acabou assim por falhar o prazo do recurso por 24 horas. Kafkiano, no mínimo.
Uma sociedade decente não é uma sociedade com muito "Estado social", muitos serviços públicos de assistência, muitas instituições de acolhimento e muita burocracia. É sim uma sociedade que sabe olhar para os seus vizinhos e ajudá-los, que respeita e valoriza as famílias e que só se intromete no espaço de liberdade dos cidadãos quando isso é mesmo inevitável. Não me parece que numa sociedade decente o Estado e os seus agentes se comportem como neste caso da Liliana. Mas todos os que, nas suas relações, a podiam e deviam ter ajudado mais, como a sua comunidade de Fé, também não estão ilibados."
José Manuel Fernandes in ‘Público’ de 01.01.2013
Chama-se Mamhoud e desde Junho do ano passado que está separado da maioria dos seus irmãos. Porque estava na escola quando a polícia chegou para levar sete dos dez filhos de Liliana Melo. As irmãs mais velhas ajudaram-no a escapar à ordem do tribunal e no outro dia vimos a sua silhueta numa reportagem da RTP. Passaram sete meses e as "autoridades", que naquele dia de Verão entraram pela sua casa adentro, parece terem-se esquecido dele. Na altura era uma "criança em perigo" que tinha de ser imediatamente retirada à guarda dos familiares. Agora será o quê para o tribunal, os seus técnicos e os seus polícias?
O país esquece depressa as suas fugazes histórias mediáticas, e poucos se lembrarão de Liliana e da polémica sobre uma ordem de laqueação de trompas, mas esperava-se que as instituições fossem, no mínimo, mais persistentes. Não dão indicações de o ser. É que se Mamhoud ficou para trás na ordem de o levar para uma instituição de acolhimento, as suas duas irmãs mais velhas também ainda esperam pelo "apoio psicológico" que o juiz prescrevera. As sentenças dos tribunais são, pelos vistos, de aplicação facultativa, mesmo pelas autoridades judiciais.
Estas incongruências reforçam a convicção de que houve neste processo muita inumanidade e, porventura, algum preconceito. Por isso ele é, também, exemplar sobre alguns dos males da nossa sociedade.
Primeiro que tudo, o problema da imposição da laqueação de trompas. O tribunal, apoiado pela corporação dos juízes - da associação sindical a um comunicado apócrifo do Conselho Superior da Magistratura -, sustenta que a decisão de tirar os filhos à mãe nada teve a ver com o facto de esta, por razões religiosas, não aceitar realizar aquele tipo de operação. O tribunal diz até que Liliana a "aceitou" num acordo com os técnicos da Segurança Social. O que não deixa de ser extraordinário, pois aparentemente o tribunal não se interrogou sobre as condições em que Liliana terá sido levada a aceitar um "acordo" que, sendo conhecida a sua religião, mais soava a imposição. Por outro lado, conforme relatava o último Expresso, este tipo de imposição está a tornar-se muito habitual na Grande Lisboa. A "sugestão" vem por regra de técnicos da Segurança Social, as destinatárias são quase sempre mulheres de origem africana. É uma solução expedita que desobriga os técnicos e lhes permite passar o problema ao hospital, altura em que os serviços lavam dele as mãos.
Mesmo que o tribunal não tivesse considerado a falta à laqueação de trompas uma questão relevante - e considerou, como se verifica lendo as 42 páginas do acórdão -, a verdade é que em momento algum questionou a validade da "sugestão". Mais: apesar de o acórdão descrever a situação familiar do pai das crianças, um muçulmano com três mulheres e três famílias diferentes, em nenhuma passagem há qualquer referência ao facto de Liliana ser muçulmana, como se as suas crenças não tivessem qualquer importância nas suas opções e não devessem ser respeitadas.
Não está em causa saber se concordamos com as opções de Liliana, nem sequer o que possamos pensar de alguns aspectos da religião muçulmana. O ponto, como notou esta semana José Tolentino Mendonça, é que "é trágico não perceber-se que a ofensa à liberdade religiosa coloca em causa a liberdade em sentido absoluto, a liberdade de nós todos". E foi a liberdade religiosa de Liliana que foi posta em causa neste processo.
A leitura da sentença é muito instrutiva. Não quero ser injusto, pois não pretendo conhecer todos os detalhes do caso, mas a forma como é descrita a intervenção dos diferentes serviços sociais é reveladora de uma frieza e de rotinas burocráticas que afligem. Em certos períodos visitavam a casa de Liliana de três em três meses, concluíam que ela ainda não estava a cumprir com todas as "sugestões", faziam mais um relatório e ficavam à espera que um qualquer milagre ocorresse entretanto. Por exemplo: os papéis da cabo-verdiana não estavam em ordem e por isso ela não podia receber apoios sociais (só recebia abono de família, num certo período 175 euros); os técnicos determinavam então que tinha de ir tratar dos papéis; ao mesmo tempo condenavam-na por às vezes deixar os filhos mais novos à guarda dos mais velhos e constatavam que o pai só ia a casa alguns dias por semana. Pergunta-se: mas como queriam que ela fosse tratar dos papéis? Podia encontrar outros exemplos, que o padrão seria sempre o mesmo: olhava-se para aquela família com os olhos de quem tem uma família normal e exigia-se a uma mãe com nove filhos que lhes desse os banhos que se dão numa casa da classe média, mesmo quando se reconhecia que a água estava cortada ou o esquentador avariado.
Não duvido que, pelo menos em alguns dos períodos, aquela família era muito desorganizada, que aquela mãe não cumpriria com todas as obrigações que hoje se esperam de uma mãe, mas só por uma vez se encontrou uma resposta adequada para a situação: quando uma técnica da organização não-governamental Movimento em Defesa da Vida passou a acompanhar o processo. Ia a casa da Liliana quatro vezes por semana, levou-a a Cascais a tratar dos papéis e enquanto a colaboração se manteve a evolução foi notável. Não é possível deixar de pensar que isso também sucedeu porque esta organização se baseia na dedicação de voluntários e nos serviços públicos há demasiado espírito "das nove às cinco" e um desejo inconfessável de que "ninguém venha com mais problemas". Não é sempre assim, mas é demasiadas vezes assim. Talvez porque o sentido de humanidade de uma sociedade diminua consoante temos mais leis e mais funcionários a tratar de nós, e menos obrigação sentimos de olhar para quem está ao nosso lado e possa precisar de ajuda. A simples existência de serviços sociais é nisso muito eficaz: alivia-nos a consciência.
Chegamos assim à questão do equilíbrio da sentença - até porque a decisão de dar um filho para adopção é a solução limite, a solução para casos extremos. Neste caso, retirar sete dos dez filhos a uma família onde se admite que há amor e carinho, onde não há maus tratos, abusos sexuais ou dependência de drogas, onde podem faltar umas vacinas no boletim de saúde mas onde as crianças têm aproveitamento escolar muito razoável, é incompreensível. Se houvesse violência ou abandono, o que se decidia? Condenava-se a mãe à forca e o pai ao exílio?
Aquilo que parece ser proibido, seguindo a lógica da sentença, é ser pobre e ter muitos filhos. Não está lá escrito, mas é o que está implícito numa declaração do juiz Rui Rangel ao PÚBLICO, em que defendeu que os pais "não podem ter os filhos que querem" se não tiverem condições. Ficámos sem saber o que sugere nesses casos. Talvez a castração, pois é o passo que falta dar.
Em todo o acórdão se nota que as acusações àquela família oscilam permanentemente entre ela não ter condições de vida tranquilas, não haver dinheiro suficiente ou a casa ser pequena, e a mãe (sistematicamente tratada como "a progenitora") não cumprir com as sugestões dos técnicos, sendo culpada de desorganização. Algumas das coisas que lhe fizeram são mesmo inauditas e impensáveis se se tratasse de alguém mais diferenciado e com advogado constituído. Basta referir que Liliana foi convocada para ir a tribunal sem saber ao que ia, que chegou e ouviu a leitura da sentença secamente, que depois não pôde levantar uma cópia porque era sexta-feira e os serviços já tinham fechado, que teve de lá voltar na semana seguinte e acabou assim por falhar o prazo do recurso por 24 horas. Kafkiano, no mínimo.
Uma sociedade decente não é uma sociedade com muito "Estado social", muitos serviços públicos de assistência, muitas instituições de acolhimento e muita burocracia. É sim uma sociedade que sabe olhar para os seus vizinhos e ajudá-los, que respeita e valoriza as famílias e que só se intromete no espaço de liberdade dos cidadãos quando isso é mesmo inevitável. Não me parece que numa sociedade decente o Estado e os seus agentes se comportem como neste caso da Liliana. Mas todos os que, nas suas relações, a podiam e deviam ter ajudado mais, como a sua comunidade de Fé, também não estão ilibados."
José Manuel Fernandes in ‘Público’ de 01.01.2013
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