segunda-feira, 15 de julho de 2019

VAZAJATO: AS PROVAS DE QUE OS CHATS SÃO AUTÊNTICOS AGORA VÊM DE DIVERSOS VEÍCULOS DE COMUNICAÇÃO – SÃO DEFINITIVAS E ESMAGADORAS

35
Ilustração: Rodrigo Bento/The Intercept Brasil

#VAZAJATO: AS PROVAS DE QUE OS CHATS SÃO AUTÊNTICOS AGORA VÊM DE DIVERSOS VEÍCULOS DE COMUNICAÇÃO – SÃO DEFINITIVAS E ESMAGADORAS

NO DIA 9 DE JUNHO, o Intercept publicou os primeiros artigos da série #VazaJato, que tratam de abusos cometidos pelo ex-juiz Sergio Moro e pela força-tarefa da operação Lava Jato. Tanto a força-tarefa quanto o ministro Moro responderam negando qualquer impropriedade, mas não contestaram – e implicitamente confirmaram – a veracidade do material publicado. Eles dizem “não reconhecer a autenticidade”, o que é diferente de dizer que os chats são falsos. Eles jamais apontaram uma frase sequer que teria sido, segundo eles, inventada ou adulterada.
Somente depois da repercussão atingir grandes proporções e ex-aliados ferrenhos da Lava Jato passarem a criticar duramente o comportamento revelado nas conversa que o ex-juiz e os procuradores mudaram de discurso. O Estadão, por exemplo, publicou um editorial no dia 11 de junho exigindo a renúncia de Moro do Ministério da Justiça e o afastamento de Deltan; e a Veja dedicou a capa da edição do dia 19 de junho ao desmanche da imagem de Moro. A partir daí, a dupla adotou então a tática de insinuar – sem nunca afirmar expressamente – que enquanto, nas palavras de Moro, “tem algumas coisas que eu eventualmente posso ter dito”, as “mensagens podem ser total ou parcialmente adulteradas.”
Em um editorial anunciando uma parceria com o Intercept no trabalho de reportagem da #VazaJato, publicado no dia 23 de junho, a Folha de S.Paulo recapitulou as mudanças no discurso dos procuradores e do ex-juiz Moro:
Após as primeiras reportagens sobre as mensagens, publicadas pelo Intercept, no dia 9, Moro e os procuradores reagiram defendendo sua atuação na Lava Jato, mas sem contestar a autenticidade dos diálogos revelados.
Depois de alguns dias, passaram a colocar em dúvida a integridade do material, além de criticar o vazamento das mensagens. Até agora, porém, Moro e os procuradores não apresentaram nenhum indício de que as conversas reproduzidas sejam falsas ou tenham sido modificadas.
Até hoje – depois de cinco semanas e mais de uma dúzia de artigos publicados por Intercept, Folha, Veja e pelo jornalista Reinaldo Azevedo em seu blog e em seu programa na rádio Bandnews FM –, Moro e a força-tarefa não apontaram um único indício de adulteração ou inautenticidade nas mensagens publicadas pelos diferentes veículos.
O que ocorreu foi justamente o oposto. Diferentes veículos de mídia, de diferentes orientações e com credibilidade reconhecida confirmaram o conteúdo publicado. Além dos nossos parceiros já citados, El País, Correio Braziliense, Buzzfeed News investigaram o conteúdo e atestaram, a partir de evidências concretas e segundo os métodos jornalísticos tradicionais, sua veracidade.
Apesar da abundância de provas da autenticidade do material, publicadas pelos diferentes veículos, diversas fontes disseram ao Intercept ao longo dos últimos dias que a Polícia Federal, durante o afastamento do ministro Sergio Moro, está considerando realizar essa semana uma operação que teria como alvo um suposto “hacker”, que hipoteticamente seria a fonte do arquivo. Esse suposto hacker seria estimulado a “confessar” ter enviado o material ao Intercept e o adulterado.
Essa tática equivocada fracassará. A razão é simples: as evidências provando a autenticidade do material são tão grandes, e oriundas de tantas fontes de credibilidade conhecida, que nenhuma “confissão” do tipo seria verossímil.
O Intercept só publicou o material após uma apuração minuciosa, que incluiu consultas com especialistas em tecnologia, com fontes que corroboram a autenticidade de conversas privadas que tiveram com os procuradores (das quais jamais saberíamos sequer da existência), com juristas e partes envolvidas nos processos que confirmaram a veracidade de vários documentos e atos processuais inéditos e confidenciais, além da comparação jornalística entre o conteúdo das discussões e eventos – públicos ou não –- que os procuradores participaram. Após a publicação dos primeiros artigos da série #VazaJato, diferentes veículos, usando métodos similares de investigação jornalística, confirmaram a autenticidade do material.
O primeiro deles foi o BuzzFeed News, num artigo publicado no dia 13 de junho. Os três repórteres que assinam a matéria explicam que o site “cruzou nos últimos dias as mensagens e os atos da procuradoria e do juiz nas mesmas datas nos processos citados.” Apontando para vários exemplos documentados, os repórteres concluem, como bem resumido na manchete: “Documentos mostram que atos da Lava Jato coincidiram com orientações de Moro no Telegram.”
p1buzzfeed-1563212187
O mesmo BuzzFeed realizou investigação semelhante após a publicação de novas mensagens privadas pelo Intercept, e novamente listou amplas provas da autenticidade do arquivo
Em matéria publicada no dia 19 de junho, repórteres do site mais uma vez detalharam como os desdobramentos da Lava Jato coincidem perfeitamente com as conversas publicadas: “A troca de mensagens divulgada pelo site The Intercept Brasil, em que atribui a Sergio Moro a sugestão para Deltan Dallagnol ‘inverter a ordem’ de operações da Lava Jato, coincide com os documentos e registros que antecederam a deflagração da fase Aletheia, a da condução coercitiva do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.”
Novas provas da autenticidade do material foram oferecidas no dia 23 de junho pela Folha de S. Paulo, num editorial explicando as razões pelas quais decidiram trabalhar em parceria com o Intercept:
O site permitiu que a Folha tivesse acesso ao acervo, que diz ter recebido de uma fonte anônima há semanas. (…) Nos últimos dias, repórteres do jornal e do site trabalharam lado a lado, pesquisando as mensagens e analisando seu conteúdo. (…)
Ao examinar o material, a reportagem da Folhanão detectou nenhum indício de que ele possa ter sido adulterado.
Os repórteres, por exemplo, buscaram nomes de jornalistas da Folha e encontraram diversas mensagens que de fato esses profissionais trocaram com integrantes da força-tarefa nos últimos anos, obtendo assim um forte indício da integridade do material.
No dia 29 de junho, o Intercept publicou uma nova série de chats privadosem que procuradores do MPF criticam duramente a conduta do ex-juiz Moro. O artigo revela, entre outras coisas, que a procuradora Monique Cheker disse que “Moro viola sempre o sistema acusatório e é tolerado por seus resultados.” Outros procuradores – inclusive Deltan – manifestaram a preocupação de que a decisão de Moro de aceitar a oferta do presidente Jair Bolsonaro de assumir o ministério da Justiça pudesse colocar em xeque a credibilidade da operação e comprometer sua imagem de apartidarismo cuidadosamente cultivada.
Após os defensores de Moro tentarem mais uma vez lançar dúvidas sobre a autenticidade do material, o jornal El País Brasil realizou investigação similar à conduzida pelo BuzzFeed, e chegou à mesma conclusão: o material publicado coincide perfeitamente com os eventos conhecidos, oferecendo novas evidências da integridade do material.
No dia 30, o El País publicou um artigo sob o título: “Artigo de procuradora no EL PAÍS coincide com diálogo vazado por ‘The Intercept’,” e explicou: “o conteúdo da nova reportagem revela trechos de uma conversa privada dos procuradores que coincidem com a linha de raciocínio de um artigo publicado pela procuradora Jerusa Viecili no EL PAÍS Brasil no dia 28 de outubro.”
O artigo do El País cita uma crítica feita por Viecili aos colegas no dia 25 de outubro do ano passado, em que a procuradora lamenta que a força-tarefa não tivesse condenado posições antidemocráticas de Bolsonaro, o que poderia criar a percepção que a Lava Jato apoiaria a candidatura do ex-capitão nas eleições. O jornal nota então que “Viecili decidiu por si só se posicionar em um artigo enviado ao EL PAÍS Brasil na noite do dia 27 de outubro, e publicado no dia 28, sob o título ‘Corrupção se combate com respeito à liberdade e à imprensa’.” Em outras palavras, o jornal demonstra que as críticas feitas pela procuradora nos chats privados e publicados por nós coincidem com sua decisão de publicar no El País um artigo que defende a mesma posição.
Todos esses fatos levaram o El País a concluir que, mesmo se “seu conteúdo pode não ter valor jurídico neste momento para anular a operação”, o material “vem tirando capital político importante do ministro Sergio Moro e do procurador Deltan Dallagnol.” Notando ainda que outros veículos de mídia estabelecidos, como Veja e Folha, em parceria com o Intercept, têm acesso ao ao arquivo, o jornal espanhol explicou: “Os jornalistas de todos os veículos parceiros estão checando informações com fontes, e consultando suas próprias mensagens trocadas no passado com integrantes da Lava Jato para confirmar a veracidade dos diálogos.”
Uma entrevista publicada pelo Correio Braziliense no mesmo dia oferece evidência ainda mais forte da autenticidade do material publicado. O repórter Renato Souza, baseado em Brasília, entrevistou um dos procuradores do MPF que era membro de alguns dos grupos de Telegram em que foram trocadas as mensagens publicadas e pôde confirmar a veracidade das conversas publicadas.
Em resposta às tentativas de Deltan e de outros procuradores do MPF de insinuar que as mensagens não são autênticas, o procurador ouvido pelo Correio acessou em seu próprio celular as mensagens trocadas no aplicativo Telegram e comparou com as  mensagens publicadas pelo Intercept. A conclusão do procurador foi enfática: “aquelas mensagens que foram publicadas ontem (sexta) são autênticas.”
Ao passo que o procurador não pôde atestar a autenticidade de todas as mensagens publicadas – visto que não era membro de todos os grupos de chat em que as mensagens foram trocadas – a verificação oferecida por ele foi bastante clara:
VERACIDADE
Ao Correioum dos procuradores que estava no grupo em que ocorreram as conversas, disse, sob a condição de anonimato, que os trechos divulgados são verdadeiros. “Me recordo dos diálogos com os procuradores apontados pelo site. O grupo não existe mais. No entanto, me lembro do debate em torno do resultado das eleições e da expectativa sobre a ida de Moro para o Ministério da Justiça”, disse.
O integrante do Ministério Público Federal (MPF) também declarou que conseguiu recuperar parte do conteúdo. “Consegui recuperar alguns arquivos no celular. Percebi que os trechos divulgados não são de diálogos completos. Tem mensagens anteriores e posteriores às que foram publicadas. No entanto, realmente ocorreram. Não posso atestar que tudo que foi publicado até agora é real e não sofreu alterações. No entanto, aquelas mensagens que foram publicadas ontem (sexta) são autênticas”, completou.
Novas provas da veracidade do material foram produzidas pela Veja quando a revista – que por anos apoiou enfaticamente Moro e a Lava Jato – decidiu trabalhar em parceria com o Intercept nas reportagens do arquivo. Antes de tomar essa decisão, a revista enviou um time de repórteres experientes, inclusive os que são considerados especialistas em sua cobertura da Lava Jato, para analisar e investigar o arquivo.
Após semanas de trabalho lado a lado com nossos repórteres e com acesso ao arquivo, a Veja chegou à mesma conclusão que os demais veículos: o material é autêntico. Acompanhando a primeira reportagem da Veja – uma detalhada reportagem de capa de 8 páginas descrevendo como Moro, de forma antiética e ilegal, comandou os procuradores da Lava jato – foi publicada uma carta ao leitor, em que os editores da revista explicam as razões pela quais estão publicando reportagens sobre o material e como puderam confirmar sua autenticidade:
A reportagem desta edição é a primeira em parceria com o The Intercept Brasil. Comandados pelo redator-­chefe Sérgio Ruiz Luz, nossos repórteres continuam vasculhando a enorme quantidade de diálogos e áudios trocados entre procuradores e o juiz Sergio Moro. Assim como a Folha de S.Paulo, também parceira do site, analisamos dezenas de mensagens trocadas ao longo dos anos entre membros do nosso time e os procuradores. Todas as comunicações são verdadeiras — palavra por palavra (o que revela fortíssimos indícios de veracidade do conjunto). Caso esta equipe depare com outras irregularidades no decorrer do processo de apuração, novas reportagens sobre o tema serão publicadas.
Na própria reportagem de capa, os editores e repórteres da Veja reafirmam a autenticidade do arquivo:
Só uma pequena parte do material havia sido divulgada até agora — e ela foi suficiente para causar uma enorme polêmica. Em parceria com o site, VEJA realizou o mais completo mergulho já feito nesse conteúdo. Foram analisadas pela reportagem 649.551 mensagens. Palavra por palavra, as comunicações examinadas pela equipe são verdadeiras e a apuração mostra que o caso é ainda mais grave. Moro cometeu, sim, irregularidades.
A revista disse então, na Carta ao Leitor, que “caso esta equipe depare com outras irregularidades no decorrer do processo de apuração, novas reportagens sobre o tema serão publicadas.” Nesse sentido, a revista continuou a seu trabalho de reportagem e na sexta feira, novamente em parceria com o Intercept, publicou um artigo descrevendo novas “conversas impróprias” entre Deltan e “um dos membros do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), João Pedro Gebran Neto, órgão encarregado de julgar em segunda instância os processos da Lava-Jato em Curitiba.”
Frente à abundância das evidências da autenticidade do material, publicadas por vários veículos de credibilidade conhecida, se torna impossível para um observador racional atribuir qualquer credibilidade às insinuações de Deltan e Moro de que as “mensagens podem ser total ou parcialmente adulteradas.”
Entretanto, se restava alguma dúvida, uma matéria publicada no domingo pelo El País resolve de uma vez por todas qualquer debate que restava sobre a veracidade do arquivo.
O jornal foi capaz de provar a autenticidade do arquivo da #VazaJato utilizado os métodos mais tradicionais – e confiáveis – de investigação jornalística. Tal qual o Correio Braziliense, o El País falou com uma fonte que participava de conversas de Telegram que compõem o arquivo da #VazaJato. Essa fonte entregou ao El País a transcrição original dos chats armazenados em seu telefone pessoal, e o jornal comparou esses chats com material que compõe o arquivo da Vaza Jato. A conclusão não deixa dúvida: o arquivo da #VazaJato é idêntico – em todos os aspectos – às transcrições originais dos chats que foi enviada ao El País pela sua fonte.
A matéria do El País começa citando as tentativas de Moro e dos procuradores de lançar dúvidas sobre a autenticidade do material publicado, e postula então que a missão do jornalista nessas situações é tentar determinar por conta própria o que é verdade: “se alguém diz que está chovendo, e outra pessoa diz que não está, não é trabalho do jornalista citar as duas, é ir olhar lá fora”.
Nesse sentido, o El País realizou seu trabalho jornalístico da seguinte maneira:
O EL PAÍS testou este impasse. Com o auxílio de uma fonte externa ao The Intercept, que prefere preservar sua identidade, tivemos acesso a parte de um arquivo de mensagens de um dos chats mencionados nas reportagens e comparamos seu conteúdo com o material disponibilizado pelo site. O conteúdo é idêntico. À parte imagens, que não estavam disponíveis nos documentos consultados, as informações são as mesmas em ambos os chats e mostram o dia a dia de conversas de trabalho entre procuradores, assessores de imprensa e jornalistas.
Inclusive, mensagens do EL PAÍS com pedidos de informações enviados à Lava Jato puderam ser identificadas. É o caso de um pedido feito pelo repórter Gil Alessi por email no dia 2 de março de 2017 para a assessoria do Ministério Público Federal do Paraná (MPF-PR), e que foi compartilhado em um dos chats do Telegram por um assessor de imprensa.
Esse não foi o único método empregado pelo jornal para confirmar a autenticidade do arquivo. Os repórteres encontraram no arquivo conversas entre o procurador Deltan Dallagnol e o diretor executivo da Transparência Internacional Brasil Bruno Brandão e o professor de direito da FGV Rio Michael Freitas Mohallem. Os repórteres mostraram essas conversas aos envolvidos para que pudessem confirmar se os chats são autênticos ou não.
Brandão confirmou de forma definitiva que o material em nosso arquivo coincide exatamente com os chats que teve com Deltan. Nas palavras do El País, “Brandão informou por mensagem: ‘com respeito especificamente ao diálogo enviado, confirmo que ocorreu'”. Já Mohallem disse que não conseguiu recuperar as conversas que teve com Deltan – especulando que tivessem sido apagadas permanentemente por Deltan –, mas confirmou ao El País ter trocado inúmeras mensagens com o procurador.
A conclusão da investigação jornalística do El País é a mesma de todos os outros veículos que realizaram investigações similares: o material em nosso arquivo é autêntico. Como o jornal resumiu em sua manchete:  “O EL PAÍS teve acesso a um trecho dos arquivos da #VazaJato e confirmou, com a ajuda de fontes externas ao site de notícia que sacode o Brasil, que as mensagens trocadas eram verdadeiras.”
Frente a todas as evidênciasque provam a autenticidade do material, não há literalmente nenhuma prova – ou mesmo uma única alegação concreta – de que qualquer mensagem publicada tenha sido adulterada, muito menos forjada.
Ao contrário, quando forçados a responder diretamente, Moro e Deltan reconhecem que o material é autêntico, como Moro implicitamente fez quando pediu desculpas aos os integrantes do MBLpor tê-los chamado de “tontos”, e como Deltan fez em sua entrevista no domingo com Estadão ao ser perguntado sobre o áudio de sua voz publicado pelo Intercept na semana passada.
ESTADÃO: A força-tarefa não tem reconhecido as mensagens, mas o site Intercept divulgou um áudio e afirma ter vários áudios. Isso não confirma a autenticidade das mensagens?
DELTAN: É realmente possível que o criminoso tenha obtido mensagens do aplicativo Telegram. Entretanto, isso não afasta a possibilidade de edição ou falsificação das mensagens de texto ou áudio, o que pode ter ocorrido até mesmo antes de o material ser entregue ao site, que não o submeteu a nenhuma autoridade para verificação. Aliás, o que se viu em publicações foram indícios claros de que as mensagens realmente foram editadas.
Para além do uso de insinuações sobre supostas “adulterações” – sem que tenham apontado um único exemplo concreto –, chama atenção a admissão de Moro, Deltan e dos demais procuradores da Lava Jato que dizem ter apagado de forma permanente todos os registros das conversas trocadas no curso de seu trabalho público. Usando a desculpa de que temiam um possível ataque hacker, Moro e os procuradores destruíram todas as evidências que poderiam corroborar sua acusação de que o material teria sido adulterado, deixando-os na cômoda posição de lançar dúvidas sobre a autenticidade do arquivo sem que jamais precisem – ou possam – oferecer qualquer evidência contrária.
ESTADÃO: O sr ou os outros procuradores não podem apontar o que é verdade ou mentira nas mensagens que são atribuídas?
DELTAN: Não temos as mensagens originais para comparar. Antes da divulgação do hackeamento, encerramos nossas contas no aplicativo para proteger as investigações em andamento e nossa segurança. Isso apagou as mensagens nos celulares e na nuvem. É impossível lembrar detalhes de milhares de mensagens trocadas ao longo de anos.
É importante considerar o quão antiético – e suspeito – esse comportamento é. Como pode ser permitido ou justificável que autoridades públicas, que detêm poder político, possam destruir permanentemente todos os registros relativos ao seu trabalho, em especial – como é o caso aqui – quando esse material é diretamente relevante para inúmeros processos judiciais pendentes nos tribunais. Em muitos países do mundo democrático, isso seria considerado destruição de provas.
Mesmo que Moro e Deltan tenham decidido remover esse material de seus telefones para evitar possíveis ataques de hackers, não seria o caso de salvar as transcrições num disco rígido, numa cópia física ou em algum outro dispositivo protegido para que permanecessem acessíveis por tribunais, ou mesmo pelo registro histórico das atividades de autoridades públicas? Como pode ser justificável que um juiz e procuradores destruam, de forma permanente e irrecuperável, provas relativas a processos criminais em curso, dos quais são parte?
De certa forma, a desculpa apresentada por eles para explicar por que não podem produzir qualquer evidência que corrobore suas insinuações vagas de adulteração – ‘nós destruímos permanentemente todas as provas, mesmo que o material seja relativo a processos judiciais pendentes e ao nosso trabalho de interesse público’ – é tão escandalosa e antiética quanto a conduta revelada nas mensagens.
A conduta de Moro, Deltan e da força-tarefa demonstrada pelas reportagens do Intercept e de nossos parceiros jornalísticos é indefensável. É por isso que o ex-juíz e os promotores, ao invés de defender o indefensável, optaram pela estratégia equivocada de insinuar – sem nunca afirmar diretamente e muito menos apresentar uma única prova – que o material pode ser inautêntico ou ter sido alterado, e que nós, jornalistas, somos “aliados a hackers criminosos”. É provável que a tática de confundir e enganar o público seja a única que resta aos envolvidos e ao governo – incluindo a própria Polícia Federal, sob comando de Moro, em mais um flagrante conflito de interesses.
Por isso, não resta qualquer credibilidade às tentativas dos procuradores e do ex-juiz de lançar dúvidas sobre a autenticidade do material. É a responsabilidade dos jornalistas e das pessoas razoáveis, quando confrontadas com essa tática cínica, apontar para a enorme evidência concreta e conclusiva que prova, de maneira definitiva, que o material publicados pelo Intercept e pelos demais veículos é totalmente autêntico e verdadeiro. É disso que eles têm medo.
Correção: 15 de julho, 20h22.
Diferentemente do escrito em uma versão anterior desta reportagem, o nome do diretor executivo da Transparência Internacional Brasil é Bruno Brandão. A informação foi corrigida. 
Dependemos do apoio de leitores como você para continuar fazendo jornalismo independente e investigativo. Junte-se a nós 

ENTRE EM CONTATO:

Glenn Greenwaldglenn.greenwald@​theintercept.com@ggreenwald
Leandro Demorileandro.demori@​theintercept.com@demori
  35 Comentários
Baquaqua, autor da era da escravidão no Brasil.
2
Foto: Domínio público

ANÚNCIOS DA ÉPOCA DA ESCRAVIDÃO MOSTRAM POR QUE O BRASIL PRECISA ACERTAR AS CONTAS COM O PASSADO

AS ELITES BRASILEIRAS parecem ter um hábito  secular de pôr uma pedra sobre o nosso passado. Apesar de sermos o país com a maior população negra fora da África, quase não há museus sobre o tema e mal estudamos o assunto nas escolas. O desconhecimento do brasileiro médio em relação aos horrores e às consequências da escravidão é enorme. O esquecimento não é um acaso, é um projeto.
O Brasil é o país mais importante na história da diáspora africana. Foram mais de 4 milhões de escravizados que desembarcaram em nossos portos, principalmente nos do Rio de Janeiro, Salvador e Recife, entre 1530 e 1850.
Na primeira metade do século 19, mais de 2 milhões de africanos aportaram no Brasil. Era uma multidão de gente. No censo de 1872, o primeiro de nossa história, o país tinha 10 milhões de habitantes e mais da metade (58%) da população era formada por pretos e pardos, incluindo livres, libertos e escravizados.
Os escravizados, nascidos no Brasil e na África, foram a mão de obra utilizada na criação da riqueza derivada do açúcar, do algodão, do ouro, do diamante e do café, principais produtos de exportação do país. Mas eles eram também empregados domésticos, amas de leite, sapateiros, barbeiros, vendedores de rua, pedreiros, pescadores, alfaiates, ferreiros. As ruas e as casas brasileiras do século 19 transbordavam escravidão.
Em 1872, apenas 0,08% dos escravizados eram alfabetizados. Isso, por si, só explica a ausência de relatos em primeira pessoa sobre esse drama. Por sorte, existe uma única autobiografia conhecida de um africano que passou pela experiência do navio negreiro e foi escravizado no Brasil. Ele se chamava Mahommah Baquaqua.
Nascido por volta de 1820, Baquaqua era filho de um comerciante muçulmano e frequentou uma escola religiosa localizada no atual estado de Benin. Sequestrado na África, foi trazido como escravo para o Brasil em 1845. O tráfico de escravizados já era proibido no Brasil desde 1830, graças a um acordo com a Inglaterra, e desde de 1831, por força de uma lei de iniciativa nacional. Se valessem essas leis, Baquaqua deveria ser declarado livre assim que pisasse o solo brasileiro; e seu traficante, preso. Mas esse era o mundo imaginário das leis, não o dos fatos.
Em sua autobiografia, publicada originalmente em 1854 nos Estados Unidos, Baquaqua relata o drama comum aos mais de 4 milhões de africanos escravizados que aqui desembarcaram.
Capa-do-livro-de-Baquaqua-1562012079
Imagem da edição do livro de Mahommah G. Baquaqua.
 
Foto: Bruno Veras (Public domain)
O relato dos horrores vividos no navio negreiro é pujante. Baquaqua conta que ele e seus companheiros de infortúnio foram empurrados “para o porão do navio em estado de nudez”, com “os homens amontoados de um lado e as mulheres do outro”. Como “o porão era tão baixo”, eles eram obrigados a “se agachar” ou ficar sentados no chão.
A escravidão implica na desumanização completa do indivíduo. Perder o direito à religião e ao nome escolhido por seus antepassados é parte desse processo.
Uma viagem de navio de Angola até o Recife demorava em torno de 30 dias. Amontoados e acorrentados em posição desconfortável, o porão acumulava resquícios de urina, fezes, vômitos sob um forte calor. Relatos dão conta que as pessoas nas cidades primeiro sentiam o mal cheiro desses navios antes mesmo de os verem no horizonte. “A repugnância e a sujeira daquele lugar horrível nunca será apagada da minha memória”, escreveu Baquaqua.
As terríveis condições de higiene e alimentares faziam com que a taxa de mortalidade nas viagens superasse os 10% dos embarcados. Os que morriam pelo caminho tinham seus corpos atirados ao mar, o que torna o Atlântico um gigantesco cemitério de africanos.
Baquaqua conta que “a única comida” que eles tiveram durante a viagem era um “milho encharcado e cozido”. A água também era racionada: “um pint (equivalente a 400 ml) por dia era tudo o que era permitido e nada mais”.
“Houve um pobre rapaz que ficou tão desesperado por falta de água, que tentou arrancar uma faca do homem branco que trouxe a água, quando foi levado para o convés e eu nunca soube o que aconteceu com ele. Eu suponho que ele foi jogado ao mar.
A violência era crucial para manter a “ordem”. Baquaqua conta que, “quando qualquer um de nós se tornava desobediente, sua carne era cortada com uma faca”, então, “pimenta ou vinagre” eram esfregados na ferida.
Os grandes traficantes de escravos eram brasileiros e portugueses aqui residentes. Eram ricos comerciantes, cuja fortuna superava a dos produtores de açúcar e algodão. Eles eram os ricaços do Rio, Salvador, Recife etc. No Recife, na década de 1820, o maior traficante era o comerciante português Elias Coelho Cintra, que tinha o costume marcar seus escravos com a letra “E” com ferro em brasa no peito, feito gado.
Anúncio do furto de três africanos recém-chegados (“negros novos”) de Angola, que tinham “no peito esquerdo a marca E”, de Elias Coelho Cintra.
Anúncio do furto de três africanos recém-chegados (“negros novos”) de Angola, que tinham “no peito esquerdo a marca E”, de Elias Coelho Cintra.
 
Fonte: Diário de Pernambuco, 1829
Anúncio reporta a chegada do paquete Pernambuco, vindo de Angola, numa viagem que durou 26 dias. Embarcaram 257 cativos, sendo que 26 morreram, que se destinavam a Elias Coelho.
Anúncio reporta a chegada do paquete Pernambuco, vindo de Angola, numa viagem que durou 26 dias. Embarcaram 257 cativos que se destinavam a Elias Coelho. Vinte e seis morreram na travessia.
Fonte: Diário de Pernambuco, 1830
Hoje, um dos bairros ainda hoje mais miseráveis e violentos do centro do Recife é o dos “Coelhos”, nome derivado do fato daquela região ser de propriedade da família do maior traficante de escravos da cidade. Sempre que passo por aquela área, fico pensando que parte dos seus habitantes que sobrevivem em condições desumanas, muitos dos quais em palafitas à beira do rio Capibaribe, pode ser formada por descendentes dos escravizados marcados a ferro quente por Elias.
Ao chegarem no Brasil, esses africanos eram postos em quarentena em portos ou mesmo no interior dos navios. Sobrevivendo a essa fase, os escravizados eram obrigatoriamente batizados na fé católica e recebiam nomes à portuguesa. Viravam todos Josés, Franciscos, Marias, Catarinas – Baquaqua não diz qual era seu nome que teve em seus tempos de Brasil. A escravidão implica na desumanização completa do indivíduo. Perder o direito à religião e ao nome escolhido por seus antepassados é parte desse processo.
A viajante estrangeira Maria Graham, que esteve no país na década de 1820, retrata o horror da visão de uma dessas localidades.
“Mal tínhamos percorrido cinquenta passos no Recife, quando ficamos absolutamente enojados com a primeira vista de um mercado de escravos. Era a primeira vez que (…) estávamos em um país de escravos; e, por mais fortes e pungentes que sejam os sentimentos em casa, quando a imaginação retrata a escravidão, eles não são nada comparados à visão desconcertante de um mercado de escravos. (…) Cerca de cinquenta jovens criaturas, meninos e meninas, com toda a aparência de doença e fome, resultante da escassez de comida e longo confinamento em lugares insalubres, estavam sentados e deitados entre os animais mais sujos das ruas ”.
Ao chegar aqui, sendo ainda “boçal” (termo utilizado para descrever os cativos que não dominavam o português), Baquaqua foi colocado para realizar trabalhos puramente físicos. Seu primeiro ofício foi carregar pedras para a construção de uma casa para o seu proprietário.
Depois de ganhar algum domínio da língua, Baquaqua foi para a rua vender pão. Muitos dos escravizados no Brasil do século 19 eram os chamados “pretos de ganho”, isto é, cativos que trabalhavam na rua vendendo alguma mercadoria ou realizando algum serviço, para garantir uma renda diária ao seu proprietário.
A escravidão não era exclusividade da agricultura para exportação e o escravizado não era “mercadoria” acessível apenas aos ricaços. O Brasil era uma sociedade escravista no sentido mais preciso do termo. Os anúncios de compra, venda, aluguel e fuga de escravos eram a matéria mais ordinária nas páginas dos jornais brasileiros neste período.
Um viajante escocês que passou pelo Recife em 1820 relata sua visão:
“Acho que nenhuma impressão fica mais profundamente impressa em minha mente do que a visão melancólica de centenas… de milhares de escravos negros que vi na cidade… Você não pode se mover em nenhuma direção, sem que a escravidão, com todas as suas misérias multiplicadas, prenda sua atenção. Se você anda pelas ruas, você encontra os escravos, a cada hora do dia, em centenas, gemendo e suando sob seus fardos, e gastando suas vidas miseráveis no desempenho daqueles trabalhos pesados que são feitos por cavalos na Escócia e na Inglaterra”.
Sendo vendedor de rua, Baquaqua conta que tentou ser obediente ao seu proprietário para evitar castigos e ter uma existência um pouco menos miserável. Mas mesmo sendo obediente, era agredido e humilhado. E como tantos outros escravizados, na busca de uma fuga da dureza do cotidiano, abusou do álcool. Além da bebida, Baquaqua imita o comportamento de outros milhares de escravizados: foge. Porém, também como era a regra, acaba recapturado.
Homens, mulheres, jovens e crianças viviam tentando fugir. Era uma luta desigual. Alguns, com sorte, podiam se aquilombar em Catucá, o mais famoso quilombo existente no Recife na primeira metade do século 19, que tanto amedrontava o “cidadão de bem” da cidade.
Trecho de uma carta escrita por um desembargador reclamando do “Quilombo dos negros dos palmares do Catucá”.
Trecho de uma carta escrita por um desembargador reclamando do “Quilombo dos negros dos palmares do Catucá”.
 
Fonte: Diário de Pernambuco, 1829
Mesmo “com ferro no pescoço” e com “uma ferida na canela direita”, Sebastião do Rosário tentou fugir da sua condição de escravo. Os anúncios de escravos fugidos eram parte obrigatório dos jornais brasileiros do período.
Mesmo “com ferro no pescoço” e com “uma ferida na canela direita”, Sebastião do Rosário tentou fugir da sua condição de escravo. Os anúncios de escravizados que fugiam eram parte obrigatória dos jornais brasileiros do período.
 
Fonte: Diário de Pernambuco, 1829.
Anúncio da fuga de uma criança de nove anos com “marcas pela cara” provocadas pelo uso “de uma máscara de flandres”.
Anúncio da fuga de uma criança de nove anos com “marcas pela cara” provocadas pelo uso “de uma máscara de flandres”.
 
Fonte: Diário de Pernambuco
Gravura mostrando um escravizado com ferros no pescoço e máscara de flandres.
Gravura mostrando um escravizado com ferros no pescoço e máscara de flandres.
 
Ilustração: Jacques Arago/Museu Afro Brasil (São Paulo)
Baquaqua conta que, após uma recaptura, saiu para vender pão, mas usou o dinheiro arrecadado para comprar bebida. Voltando a casa do senhor embriagado e sem dinheiro. Foi violentamente espancado. Revoltado e humilhado, Baquaqua tenta o suicídio:
“Eu preferiria morrer a viver para ser um escravo. Eu então corri para o rio e me joguei, mas sendo visto por algumas pessoas que estavam em um barco, fui resgatado do afogamento.”
Depois disso, ele é posto à venda.
Anúncio publicado no Diário de Pernambuco em 1830, em que anuncia: “vende-se por [ser] fujão”. O termo “ladino” significava que, apesar de o escravo ser africano, ele já dominava o idioma e os costumes locais.
Anúncio publicado no Diário de Pernambuco em 1830, em que anuncia: “vende-se por [ser] fujão”. O termo “ladino” significava que, apesar de o escravo ser africano, ele já dominava o idioma e os costumes locais.
 
Fonte: Diário de Pernambuco
Baquaqua é vendido “para fora da província”. Essa era uma outra forma comum de punição e de controle dos escravizados: os que se comportavam mal eram vendidos sob a condição de serem levados para localidades distantes. Toda a sociabilidade construída pelo escravizado naquela cidade era, de repente, desfeita, em uma repetição das agruras do navio negreiro.
Anúncio de venda de escravo no Diário de Pernambuco.
Anúncio de venda de escravo no Diário de Pernambuco.
 
Fonte: Diário de Pernambuco
Seu destino foi o Rio de Janeiro, a capital do Império e maior cidade do país. Passou então a trabalhar a bordo de um navio. Após algumas viagens – ele narra passagens por Santa Catarina e Rio Grande do Sul –, a embarcação teria como destino Nova York.
Em 1847, em solo estadunidense, Baquaqua conseguiu finalmente fugir da condição de escravizado e se tornou, mais uma vez, um homem livre. Seus companheiros no Brasil, porém, teriam que esperar até 1888 para terem a mesma sorte.
Livres, mas sem nenhuma indenização por séculos de trabalho forçado, sem acesso à terra, à educação, marcados pelo preconceito e vítimas do racismo “científico” que ganha força no final do século 19 e começo do século 20. Enquanto os imigrantes italianos que aqui aportavam aos milhares a partir de 1890 tinham passagem subsidiada, salário, terra e liberdade para trocar de emprego depois de cinco anos, os pretos e pardos não tinham nada.
Nos EUA, neste exato momento, está em debate no Congresso a questão da reparação dos descendentes de escravizados. No Brasil, diz-se ainda que cotas são “racismo reverso”. O esquecimento da escravidão é um projeto muito bem elaborado pela elite.
Dependemos do apoio de leitores como você para continuar fazendo jornalismo independente e investigativo. Junte-se a nós 

ENTRE EM CONTATO:

Alexandre Andradaalexandreandrada@​gmail.com@AFS_Andrada
  2 Comentários
Leia mais
Protesto antivacina ocorrido em fevereiro de 2018 em Roma.
46
Protesto antivacina ocorrido em fevereiro de 2018 em Roma. Foto: Riccardo Antimiani/ANSA via AP

O CASAMENTO ENTRE A EXTREMA DIREITA E O MOVIMENTO ANTIVACINA É UM PERIGO PARA O MUNDO

NO INÍCIO do século passado, o Rio de Janeiro estava tomado por lixo, ratos e mosquitos. Surtos das mais variadas doenças matavam aos milhares. O então prefeito Pereira Passos (1902-1906) iniciou um projeto autoritário de urbanização e saneamento da cidade. Para abrir avenidas e praças, demoliu cortiços e empurrou os pobres para os morros e as periferias.
Oswaldo Cruz, que ocupava cargo similar ao de ministro da saúde, liderou uma campanha de vacinação obrigatória para erradicar a varíola. Mas a falta de conhecimento da população sobre a vacina e o modo truculento com que a campanha foi implantada, invadindo casas e vacinando as pessoas na marra com a ajuda de policiais, foi o estopim para a Revolta da Vacina. A cidade virou um campo de batalha, com depredação de prédios públicos, incêndio de bondes e barricadas espalhadas pelas ruas da capital federal.

Mais de cem anos depois, o Brasil pode se orgulhar de ter implantado uma política de vacinação que é referência e apresenta um dos maiores índices de cobertura do mundo. Mas o futuro não é animador. Um levantamento do Ministério da Saúde mostrou que sete das oito vacinas obrigatórias para crianças recém-nascidas não alcançaram a meta de 95% de cobertura no ano passado. Desde 2011, o número de crianças vacinadas com até dois anos vem caindo drasticamente. É um dado preocupante.
Um dos motivos apontados por especialistas é a erradicação de algumas doenças, que faz com que alguns pais não vejam necessidade de vacinar seus filhos. O outro é uma crescente onda de desconfiança em relação às vacinas, que vem crescendo no Brasil e no mundo. Doenças que haviam sido banidas estão voltando.
O movimento antivacina não é recente, mas ganhou asas com a internet. Em tempos de pós-verdade, em que o conhecimento científico passou a ser contestado por qualquer youtuber eloquente, a eficácia das vacinas deixou de ser um fato e passou a ser uma questão de opinião. Assim como o terraplanismo e o negacionismo climático, o movimento antivacina tem encontrado guarida na extrema direita mundial. Ele virou parte do pacotão antissistema que agrada os extremistas.
Quando um desses lunáticos que espalham teorias da conspiração passa a ocupar o cargo mais poderoso do mundo, a coisa toma proporções perigosas.
Ao contrário do que afirmou Trump em 2014, nunca houve um caso registrado de criança que se tornou autista após tomar qualquer vacina.
No início do ano passado, quando os EUA passavam por uma temporada de gripe que registrou um recorde de 53 crianças mortas, uma pastora evangélica, conselheira de Trump, orientou a população a não tomar a vacina contra a gripe. Em vez disso, recomendou que se “vacinassem com a palavra de Deus”.
Os EUA têm sofrido com o surto de sarampo. Em janeiro, o estado de Washington declarou estado de emergência após a confirmação de 37 casos, a maioria deles por falta de vacinação. A doença havia sido erradicada no país em 2000, mas voltou a crescer e já bateu o recorde em número de casos em 2019.
A Europa também tem sofrido com a queda da vacinação. Na Itália, a extrema direita está intimamente ligada ao movimento antivacina, que foi impulsionado após a eleição. O político e comediante Beppe Grillo, líder do partido governista Movimento 5 Estrelas, afirmou que as vacinas são tão perigosas como as doenças que pretendem evitar. Em 2015, o partido chegou a propor uma lei contra a vacinação, alegando que ela poderia causar “leucemia, imunodepressão, autismo, câncer, alergias e mutações genéticas hereditárias”.
Massimiliano Fedriga, o maior porta-voz do movimento antivacina da Itália, é também um dos principais políticos da Liga do Norte, o partido de extrema direita do governo italiano. Ele classificou a obrigatoriedade de vacinação do governo anterior como uma medida “stalinista”. Em março deste ano, as crenças de Massimiliano foram atropeladas pela realidade. Ele ficou cinco dias internado por causa de uma catapora e decidiu abandonar a militância antivacina.
No Brasil, a militância não é tão radical nem tão grande como nos EUA e Europa, mas está crescendo. A extrema direita governista, apesar do costume de atacar universidades e rejeitar dados científicos, ainda não abraçou essa conspiração. O ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, tem se mostrado preocupado com a queda no índice de vacinação do país. Ele esteve recentemente na Assembleia Mundial da Saúde e defendeu a ampliação da cobertura da vacinação como prioridade para o mundo.
O ministro parece ter juízo nessa seara. O risco é que, se por algum motivo Mandetta cair, há chance de um nome antivacina substituí-lo. Olavo de Carvalho, que costuma indicar ministros ao presidente, é um cético sobre vacinação. Em 2006, o farol intelectual do bolsonarismo afirmou: “Já li provas científicas eloquentes de que (vacinas) são úteis e de que são perniciosas, e me considero humildemente em dúvida até segunda ordem.”
Em 2008, o guru já se mostrou mais incisivo. Ele foi à loucura com uma campanha de vacinação contra a rubéola. “Essa vacina, ao que tudo indica, tal como aconteceu em outros países, tem dentro uma substância esterilizante. Isso é uma campanha de esterilização em massa”, denunciou antes de xingar o ministro da Saúde da época de “vigarista filho da puta” que “merecia uma cuspida na cara”. Se houver uma nova revolta da vacina, certamente já temos um líder.
Segundo relato da sua filha, Olavo não vacinava os filhos e dois deles tiveram que ser internados por complicações do sarampo.
No YouTube brasileiro, as conspirações antivacina começam a engatinhar. Uma reportagem da BBC mostrou como mentiras importadas sobre o assunto têm feito sucesso no país. Depois que você assiste ao primeiro vídeo demonizando as vacinas, o algoritmo do YouTube te joga para dentro de uma bolha conspiratória. Há desde um médico famoso como Lair Ribeiro criticando a vacina da febre amarela para crianças — o que não faz o menor sentido, segundo especialistas da área — até malucos desconhecidos dizendo que a vacinação é um plano de Bill Gates para esterilizar e reduzir a população mundial. Não é difícil imaginar o perigo desse tipo de informação circulando no país em que a mamadeira de piroca ajudou a eleger um presidente.
Um relatório da Organização Mundial da Saúde estima que vacinação evita de 2 milhões a 3 milhões de mortes por ano e poderia evitar mais 1,5 milhão se a cobertura fosse melhorada no mundo. O órgão se mostrou tão preocupado com as consequências do movimento antivacina que o incluiu em uma lista dos dez maiores riscos à saúde global em 2019, ao lado de ebola, HIV, dengue e influenza.
Há mais de cem anos, as vacinas eram uma novidade. Sabia-se quase nada sobre elas. As pessoas tinham razão em desconfiar de um líquido sendo introjetado em seus corpos por um governo autoritário. Hoje, mesmo diante da inequívoca revolução que as vacinas trouxeram para a saúde mundial, o negacionismo da ciência avança, conquistando mentes, corações e influenciando governos.
Dependemos do apoio de leitores como você para continuar fazendo jornalismo independente e investigativo. Junte-se a nós 

ENTRE EM CONTATO:

João Filhojoao.filho@​theintercept.com@jornalismowando
  46 Comentários
Leia mais

'400K'

Deltan Dallagnol usou fama da Lava Jato para lucrar com palestras e livros

213
Ilustração: João Brizzi e Rodrigo Bento/The Intercept Brasil; Suamy Beydoun/AGIF (via AP)
Oprocurador da República Deltan Dallagnol, coordenador da força-tarefa da Lava Jato, montou um plano de negócios para lucrar com eventos e palestras na esteira da fama e dos contatos conseguidos durante a operação, mostram mensagens obtidas pelo Intercept e analisadas em conjunto com a equipe da Folha de S.Paulo.
Em um chat sobre o tema criado no fim de 2018, Dallagnol e um colega da Lava Jato discutiram a constituição de uma empresa na qual eles não apareceriam formalmente como sócios, para evitar questionamentos legais e críticas. A ideia era usar familiares.
Os procuradores também cogitaram a criação de um instituto sem fins lucrativos para pagar altos cachês a eles mesmos, além de uma parceria com uma firma organizadora de formaturas para alavancar os ganhos do projeto.
A lei não proíbe que procuradores sejam sócios, investidores ou acionistas, desde que não tenham poderes de administração ou gestão da empresa. Os chats examinados pela Folha e pelo Intercept indicam que Dallagnol ocupou os serviços de duas funcionárias da Procuradoria em Curitiba para organizar sua atividade pessoal de palestrante no decorrer da Lava Jato.
As conversas mostram ainda que o procurador incentivava outras autoridades ligadas ao caso a realizar palestras remuneradas, entre eles o ex-juiz e atual ministro da Justiça e da Segurança Pública, Sergio Moro, o ex-procurador-geral da República Rodrigo Janot e outros procuradores que atuaram no escândalo de corrupção.
Pouco antes do primeiro aniversário da Lava Jato, em fevereiro de 2015, a dedicação de Dallagnol ao trabalho de palestrante já gerava descontentamento entre os colegas da Procuradoria em Curitiba. Em um chat com o procurador Carlos Fernando Santos Lima, no aplicativo Telegram, Dallagnol buscou justificar sua atividade, dizendo que ela compensava um prejuízo financeiro decorrente da Lava Jato.
‘Estou a favor de maior autonomia, mas não me encham o saco, pra usar sua expressão, a respeito de como uso meu tempo’
Estou a favor de maior autonomia, mas não me encham o saco, pra usar sua expressão, a respeito de como uso meu tempo. To me ferrando de trabalhar e ta parecendo a fábula do velho, do menino e do burro. Uns acham que devo atender menos a SECOM, outros que é importante. Uns acham que devo acompanhar cada um, outros acham que os grupos devem ter mais liberdade. E chega de reclamar dos meus cursos ou viagens. Evito dormir nos voos pra render. To até agora resolvendo e-mails etc”, desabafou Dallagnol.
“Essas viagens são o que compensa a perda financeira do caso, pq fora eu fazia itinerancias e agora faria substituições. Enfim, acho bem justo e se reclamar quero discutir isso porque acho errado reclamar disso”, continuou Dallagnol no mesmo chat.
Dallagnol se refere a dois tipos de trabalho no Ministério Público que podem engordar o contracheque. A itinerância é quando um procurador substitui as funções de outro, geralmente em outras cidades, com recebimento de diárias. Como integrante de uma força-tarefa que exige dedicação exclusiva, ele foi impedido de ocupar posições fora de Curitiba. Já no caso das substituições, o membro do MP assume o cargo de outro – como alguma função de chefia –, mas de forma mais modesta.
“Acho que o crescimento é via de mão dupla. Não estamos em 100 metros livres. Esse caso já virou maratona. Devemos ter bom senso e respeitar o bom senso alheio”, completou o procurador.

‘VAMOS ORGANIZAR CONGRESSOS E EVENTOS E LUCRAR, OK?’

A IDEIA DE CRIAR uma empresa de eventos para aproveitar a repercussão da Lava Jato foi manifestada por Dallagnol nos chats em dezembro passado. “Vamos organizar congressos e eventos e lucrar, ok? É um bom jeito de aproveitar nosso networking e visibilidade”, afirmou em conversa com a esposa. No mesmo mês, o procurador e seu colega na força-tarefa da Lava Jato Roberson Pozzobon criaram um chat específico para discutir o tema, com a participação das mulheres de ambos.
“Antes de darmos passos para abrir empresa, teríamos que ter um plano de negócios e ter claras as expectativas em relação a cada um. Para ter plano de negócios, seria bom ver os últimos eventos e preço”, afirmou Dallagnol no chat.
Pozzobon respondeu: “Temos que ver se o evento que vale mais a pena é: i) Mais gente, mais barato ii) Menos gente, mais caro. E um formato não exclui o outro”.
Após a troca de várias mensagens sobre formatos do negócio, em 14 de fevereiro deste ano Dallagnol propôs que a empresa fosse aberta em nome das esposas, e que a organização dos eventos ficasse a cargo da firma Star Palestras e Eventos.

14 de fevereiro de 2019 – chat Empresas palestras
Deltan Dallagnol – 21:41:10 – Caros, se formos tocar nós mesmos, não vai funcionar. E se eu passar pra SUPRIMIDO da Star organizar isso e combinar que dividiremos os lucros? Se tivermos a empresa em nome de SUPRIMIDO e SUPRIMIDO, jogamos pra ela organizar tudo e dividimos por 3 o resultado, sendo 1/3 pra SUPRIMIDO da Star. Estão de acordo?
Dallagnol – 21:42:03 – Se estiverem de acordo passo pra ela a ideia e começamos fazendo na Unicuritiba e talvez 1 em SP inserindo um professor como SUPRIMIDO, e enquanto isso as meninas abrem a empresa.
Roberson Pozzobon – 21:42:13 – Gostei da ideia, Delta!

Dallagnol detalhou então como seria a organização formal da empresa. “Só vamos ter que separar as tratativas de coordenação pedagógica do curso que podem ser minhas e do Robito e as tratativas gerenciais que precisam ser de Vcs duas, por questão legal”.
Em seguida, o procurador alertou para a possibilidade de a estratégia levantar suspeitas. “É bem possível que um dia ela seja ouvida sobre isso pra nos pegarem por gerenciarmos empresa”.
‘Se fizéssemos algo sem fins lucrativos e pagássemos valores altos de palestras pra nós, escaparíamos das críticas’
Roberson então comentou, em tom jocoso: “Se chegarem nesse grau de verificação é pq o negócio ficou lucrativo mesmo rsrsrs. Que veeeenham”.
No dia seguinte, Dallagnol levou para o grupo a sugestão de também estabelecer uma parceria com uma empresa de eventos e formaturas de um tio dele.
Eles podem oferecer comissão pra aluno da comissão de formatura pelo número de vendas de ingressos que ele fizer. Isso alavancaria total o negócio. E nós faríamos contatos com os palestrantes pra convidar. Eles cuidariam de preparação e promoção, nós do conteúdo pedagógico e dividiríamos os lucros”, afirmou Dallagnol.
No último dia 3 de março, Dallagnol postou no chat detalhes sobre um evento organizado por uma entidade que se apresentava como um instituto. Ele comentou que esse formato jurídico também poderia servir para evitar questionamentos jurídicos e a repercussão negativa quanto à atividade deles.
“Deu o nome de instituto, que dá uma ideia de conhecimento… não me surpreenderia se não tiver fins lucrativos e pagar seu administrador via valor da palestra. Se fizéssemos algo sem fins lucrativos e pagássemos valores altos de palestras pra nós, escaparíamos das críticas, mas teria que ver o quanto perderíamos em termos monetários”.

‘400K’

OS DIÁLOGOS ANALISADOS pela Folha e pelo Intercept fazem parte de um pacote de mensagens que o site começou a revelar no último dia 9 de junho. O material reúne conversas mantidas pelos procuradores da Lava Jato em vários grupos do aplicativo Telegram desde 2014.
O vazamento das mensagens expôs a proximidade entre Moro e a força-tarefa e pôs em dúvida sua imparcialidade como juiz na condução dos processos da Lava Jato, obrigando-o a ir até comissões do Senado e da Câmara dos Deputados para se explicar.
As conversas no Telegram também mostram a intenção de Deltan e Pozzobon de tocar o projeto mesmo sem que a empresa de eventos e palestras estivesse formalizada.
“Podemos tentar alguma coisa agora em maio tvz. Ou fim de abril. Nem que o primeiro evento a empresa não esteja 100% fechada”, afirmou Pozzobon.
A reportagem pesquisou registros na Junta Comercial do Paraná e em cartórios de Curitiba, e as buscas indicaram que não ocorreu a constituição de empresa de palestras em nome das mulheres dos procuradores ou de um instituto em nome deles.
‘As palestras e aulas já tabeladas neste ano estão dando líquido 232k. Ótimo…’
Em dezenas de conversas analisadas pela Folha e pelo Intercept, Dallagnol mostrou grande interesse quanto ao valor de cada palestra. Em um dos chats, Dallagnol somou os lucros da atividade apurados em setembro de 2018. “As palestras e aulas já tabeladas neste ano estão dando líquido 232k. Ótimo… 23 aulas/palestras. Dá uma média de 10k limpo”, afirmou.
No mês seguinte, o procurador manifestou a expectativa para o fechamento de 2018. “Se tudo der certo nas palestras, vai entrar ainda uns 100k limpos até o fim do ano. Total líquido das palestras e livros daria uns 400k. Total de 40 aulas/palestras. Média de 10k limpo”, disse o procurador. Em 2016, Dallagnol havia faturado R$ 219 mil com as palestras.
Como procurador, o coordenador da força-tarefa recebe um salário bruto de R$ 33.689,11 por mês, conforme o portal de transparência do MPF –  um total que pode superar R$ 430 mil neste ano. Em 2018, ele recebeu cerca de R$ 300 mil em rendimentos líquidos, sem considerar valores de indenizações.
Há chats que revelam ainda que Dallagnol usou os serviços de duas funcionárias da Procuradoria para organizar sua vida de palestrante. As mensagens contêm pedidos de registro de recibos e contratos relativos aos eventos, além da administração do fluxo de convites que ele recebia.

18 de agosto de 2016 – chat privado com funcionária da procuradoria
Deltan Dallagnol – 20:36:38 – Oi SUPRIMIDO, tarefinha pra volta: quanto às palestras pagas, Vc faria o favor de preencher a tabela anexa e me passar os documentos comprobatórios conjuntamente (contrato e comprovantes de depósitos)? Quero controlar conforme forem acontecendo, mas não consigo tempo para fazer o conttrole direitinho

Nas conversas mantidas com autoridades, muitas vezes Dallagnol encorajou os interlocutores a também realizar palestras remuneradas.
Em abril de 2017, o procurador antecipou um convite ao então juiz responsável pela Lava Jato, Sergio Moro, para participar de um evento em São Paulo, e contou ao atual ministro da Justiça como estava cobrando pela atividade.
“Caro, o SUPRIMIDO vai te convidar nesta semana pra um curso interessante em agosto. Eles pagam para o palestrante 3 mil. Pedi 5 mil reais para dar aulas lá ou palestra, porque assim compenso um pouco o tempo que a família perde (esses valores menores recebo pra mim… é diferente das palestras pra grandes eventos que pagam cachê alto, caso em que estava doando e agora estou reservando contratualmente para custos decorrentes da Lava Jato ou destinação a entidades anticorrupção – explico melhor depois)…”, escreveu Dallagnol a Moro.
‘Vc poderia pedir bem mais se quisesse, evidentemente, e aposto que pagam’
O procurador completou: “Achei bom te deixar saber para caso queira pedir algo mais, se achar que é o caso (Vc poderia pedir bem mais se quisesse, evidentemente, e aposto que pagam)”.
A princípio, Moro disse que já estava com a agenda cheia, mas posteriormente aceitou o convite e participou com Dallagnol em agosto de 2017 do 1º Congresso Brasileiro da Escola de Altos Estudos Criminais em São Paulo.
Em junho do ano passado, o chefe da Lava Jato em Curitiba tentou convencer Rodrigo Janot a participar de um evento em São Paulo. Fazia quase seis meses que eles não se falavam pelo Telegram, segundo o histórico de mensagens. Depois de abordar o evento, ele emendou: “Tava aqui gerenciando msgs e vi que fui direto ao ponto kkkk Tudo bem com Vc? Espero que esteja aproveitando bastante, tomando muita água de coco e dormindo o sono dos justos rs Agora, vou te dizer, Vc faz uma faaaaaaaltaaaaa”.
“Oi amigo kkkkkk”, respondeu Janot. “Considero sim mas teremos que falar sobre cache . Grato pela lembra”. Dallagnol perguntou se o cachê oficial do ex-chefe era de R$ 30 mil e sinalizou que faculdades normalmente “não pagam esse valor… mas se pedir uns 15k, acho que pagam”.
Em julho de 2016, Deltan trocou mensagens com a procuradora da República em São Paulo Thaméa Danelon sobre uma operação que ela estava coordenando contra o superfaturamento na aquisição de equipamentos para implante em doentes com Mal de Parkinson.
Após comentar sobre a melhor forma de divulgar a operação, Dallagnol sugeriu que a procuradora aproveitasse o tema de fraude na área da saúde para montar uma palestra para a empresa de planos de saúde Unimed.
“Vc podia até fazer palestra sobre esse caso mais tarde em unimeds. Eles fazem palestras remuneradas até”, disse Dallagnol à procuradora – Danelon informou à reportagem que “jamais realizou palestra” para a empresa.
O mesmo parecer do Conselho Nacional do MP de 2017 que o liberou para seguir dando palestras dizia que só haveria irregularidade se o procurador fosse caracterizado como empresário, assumindo os riscos de lucro ou prejuízo do negócio – exatamente o que ele planejou ao tentar envolver familiares meses depois.
No início da Lava Jato, Dallagnol declarava que doava a remuneração das palestras para um hospital oncológico de Curitiba. Depois, passou a informar que uma parte dos valores ia para um fundo para cobrir “despesas ou custos decorrentes da atuação de servidores públicos em operações de combate à corrupção”.
Um recibo de pagamento não assinado que faz parte do lote de arquivos recebidos pelo Intercept indica que Dallagnol recebeu R$ 23 mil líquidos da Unimed de Porto Alegre em uma palestra realizada em 2 de agosto de 2018.
Recibo-Dallagnol-Unimed1 page

PIROTECNIA E MOTIVAÇÃO

NO CHAT SOBRE a empresa de palestras e eventos, os procuradores da Lava Jato discutiram também maneiras de sair da linha tradicional do ensino jurídico para conseguir clientes jovens e interessados em cursos motivacionais.
No dia 27 de dezembro passado, Dallagnol postou no chat: “Curiosidade não basta, até porque a maior parte dos jovens não têm interesse em Lava Jato. Para o modelo dar certo, teria que incluir coisas que envolvam como lucrar, como crescer na vida, como desenvolver habilidades de que precisa e não são ensinadas na faculdade. Exatamente na linha da Conquer”.
A firma Conquer mencionada pelo procurador organiza palestras na linha motivacional e se apresenta como uma escola “aceleradora de pessoas”. À época, Dallagnol já havia ministrado palestras em eventos da Conquer.
O procurador então sugeriu o desenvolvimento de um curso com o título “Turbine Sua Vida Profissional com Ferramentas Indispensáveis”, com os temas “Empreendedorismo e governança: seja dono do seu negócio e saiba como governá-lo”, “Negociação: domine essa habilidade ou ela vai dominar Você”, “Liderança: influencie e leve seu time ao topo”, “Ética nos Negócios e Lava Jato: prepare-se para o mundo que te espera lá fora”.
Dallagnol propôs ainda que o curso tivesse “uma pegada de pirotecnia” e servisse como ponte para faturar com outros eventos da Conquer. “Todas as palestras deixariam um gostinho de quero mais (tempo limitado) e direcionariam pra Conquer, com retorno de percentual sobre cada aluno que se inscrever no curso da Conquer nos 4 meses seguintes”.
Um mês depois, Pozzobon voltou ao assunto propondo um curso jurídico mais tradicional sobre ética e combate à corrupção, com o objetivo de atrair clientes de alta renda. “Curso de sexta a noite e sábado de manhã. E poderíamos cobrar bem. Tipo uns 3 ou 5 mil. Público alvo: empresários, advs e altos executivos.”
A intensa atividade de Deltan como palestrante chamou a atenção da imprensa e levou os deputados federais Wadih Damous e Paulo Pimenta, ambos do PT, a pedirem abertura de um procedimento disciplinar no Conselho Nacional do Ministério Público em junho de 2017. O requerimento, porém, foi arquivado definitivamente quatro meses depoispois o órgão entendeu à época que as palestras se enquadravam como “atividade docente”, o que é permitido por lei, e ressaltou que grande parte dos recursos era destinada a instituições filantrópicas.
Nós procuramos Deltan Dallagnol e a força-tarefa em Curitiba. Os procuradores dizem que “não reconhecem as mensagem que têm sido atribuídas a eles” e que o material “não pôde ter seu contexto e veracidade comprovado”. “Os procuradores não têm empresa ou instituto de palestras em nome próprio nem de seus familiares. Tampouco eles atuam como administradores de empresas. É lícito a qualquer procurador, como já decidido pelas corregedorias do Ministério Público Federal e do Conselho Nacional do Ministério Público, aceitar convites para ministrar cursos e palestras gratuitos ou remunerados. Palestras remuneradas são prática comum no meio jurídico por parte de autoridades públicas e em outras profissões”, diz o texto.
Continua a nota: “O procurador Deltan Dallagnol realiza palestras para promover a cidadania e o combate à corrupção de modo sempre compatível com o trabalho. A maior parte delas é gratuita e, quando são remuneradas, são declaradas em imposto de renda e ele doa parte dos valores para fins beneficentes. A secretaria da força-tarefa cuida da agenda do procurador quando há eventos gratuitos relacionados a pautas de interesse institucional. Convites para palestras com remuneração ao procurador, quando recebidos pela secretaria, são redirecionados para pessoa de fora dos quadros do Ministério Público, a qual se encarrega de fazer a interlocução com os organizadores do evento”, escreveu a assessoria ignorando que Dallagnol trocava mensagens com uma funcionário do MPF sobre o assunto, como mostra a reportagem.
O ex-procurador-geral da República Rodrigo Janot, que se aposentou e hoje atua como advogado, informou via assessoria de imprensa que “prefere não comentar o conteúdo da conversa com o procurador Dallagnol”. Moro foi procurado, mas não respondeu.
A procuradora da República Thaméa Danelon repetiu o argumento da força-tarefa de Curitiba e disse que não reconhece o conteúdo das mensagens e por isso optou por não comentá-las. A Star Palestras disse que não iria se manifestar sobre o tema, mas enfatizou que a empresa atua “observando a lei e os princípios éticos”.
Dependemos do apoio de leitores como você para continuar fazendo jornalismo independente e investigativo. Junte-se a nós 

ENTRE EM CONTATO:

Amanda Audiamanda.audi@​theintercept.com@amandafaudi
Leandro Demorileandro.demori@​theintercept.com@demori

CRÉDITOS ADICIONAIS:

Pesquisa: Alexandre de Santi.
  213 Comentários
Leia mais

JOGA PEDRA NA TABATA

De prodígio a ‘traidora’: Tabata Amaral foi o voto mais pesado a favor da Reforma da Previdência

167
Ilustração: Rodrigo Bento/The Intercept Brasil, Folhapress
Saídas à esquerdaLeia Nossa Cobertura CompletaSaídas à esquerda
Adeputada federal Tabata Amaral estava visivelmente cansada durante a sessão de votação da Reforma da Previdência na Câmara dos Deputados, na quarta-feira. Ao contrário do que costuma fazer, pouco ficou no plenário e evitou contato com colegas. A deputada vinha de um longo processo de embates dentro do próprio partido, o PDT, em que o tom subiu a ponto de ela ser ameaçada de expulsão. Tabata votou a favor da reforma, e o PDT decidiu, há meses, que votaria contra. O projeto foi aprovado em primeiro turno na Câmara.
No dia anterior, em uma reunião da bancada do partido, o presidente Carlos Lupi havia deixado clara a sua posição. “Que bom que estamos reunidos”, disse ele, segundo duas pessoas que estavam presentes me contaram. “Vamos guardar com carinho esse momento porque pode ser a última vez que estaremos juntos com essa formação”. Tabata Amaral estava lá e sabia que o recado era para ela. Ainda assim, reafirmou sua posição.
Lupi ouviu. Depois, virou a madrugada tentando convencer outros parlamentares que também queriam votar a favor da reforma. Também durante a tarde, ela divulgou nas redes sociais um vídeo dizendo que seu voto era “com consciência, não um voto vendido” e um compilado dos argumentos que justificaram sua posição. “Ser de esquerda não pode significar ser contra um projeto que pode tornar o Brasil mais inclusivo e mais desenvolvido”, justificou no vídeo. Ela defende mudanças no regime de aposentadorias de servidores públicos, mulheres e professores.
No dia da votação, o nome de Tabata chegou ao topo dos trending topics do Twitter e virou meme. Defensores da reforma da Previdência a usavam como exemplo da esquerda moderada ou pragmática; já os opositores usavam seu posicionamento para dizer que ela nunca foi de esquerda ou sugerir, ironicamente, que ela se filie ao Partido Novo, sigla liberal representante do que chama de “nova política”, alinhada ao governo Bolsonaro. No fim da tarde de quarta, ela deu seu voto favorável à reforma, assim como outros sete dissidentes do PDT. Chamados pelo líder do partido na Câmara, o cearense André Figueiredo, de “futuros traidores”, todos sofrerão um processo administrativo dentro do PDT.
Aos 25 anos e no primeiro mandato, Tabata Amaral se tornou, em 2019, um dos nomes mais relevantes na Câmara dos Deputados. Foi a responsável pelo esculacho que o ex-ministro da Educação Ricardo Vélez Rodríguez tomou em uma audiência pública, evidenciando seu despreparo – ele seria demitido oito dias depois. Seu sucessor, Abraham Weintraub, também foi emparedado pela deputada. Registradas em vídeos, as cobranças sobre seu tema favorito – a educação – viralizaram e a alçaram ao posto de nova aposta da esquerda. Mas ela nunca foi unanimidade nesse campo político, nem mesmo dentro do próprio partido.
‘Se com isso eu me tornar impopular e não ser reeleita, beleza. Com a formação que eu tenho, consigo emprego onde eu quiser.’
Pelas posições dissonantes e pelo protagonismo que conquistou em poucos meses de mandato, Tabata se tornou um nome controverso entre os colegas. Ela é considerada importante pela reorganização do PDT em São Paulo, que há tempos não tinha nomes fortes na política, mas, em Brasília, é vista com ressalvas por alas do partido. O assunto era tratado em banho-maria até as vésperas da votação da Previdência, mas se escancarou na semana passada.
No dia seguinte à aprovação do texto em primeiro turno, a hashtag #TabataTraidora chegou aos TTs. Na primeira vez que estive com ela, em maio, ela não se mostrou preocupada com as críticas. “Seria muito mais fácil virar para as redes sociais, falar que sou contra a Previdência e ser adorada por isso. No momento, o governo me odeia e a esquerda também”, me disse. “Se com isso eu me tornar impopular e não ser reeleita, beleza. Com a formação que eu tenho, consigo emprego onde eu quiser. Eu volto a trabalhar e continuo o ativismo de outros lugares”.
tabata-1562785681
Foto: Marcelo Chello/CJPress/Folhapress

A lógica Lemann

A data marcada para o meu primeiro encontro com Tabata Amaral era 15 de maio, o mesmo dia em que estavam marcados os protestos contra os cortes na educação. Ela, porém, não iria para rua: seu compromisso era uma audiência pública em que o ministro Weintraub explicaria o contingenciamento de verbas que atingiu 30% do orçamento de custeio das universidades federais.
Quando encontrei Tabata numa das esteiras rolantes da Câmara, ela estava ansiosa com o confronto que teria naquela tarde com o ministro da Educação. Não só ela. Ao longo do dia, foi abordada por políticos – do PT ao PSL – que vinham lhe falar das expectativas por seu discurso. Tabata me disse que não é exatamente contra os cortes, mas, sim, contra “cortes sem nenhum critério, por razões ideológicas”.
A deputada andava rápido pelos corredores da Câmara (quase correndo), enquanto cumprimentava outros parlamentares, assessores ou visitantes. Vestia camisa social branca, saia xadrez até o joelho e uma bolsa preta com papéis que saltavam para fora do zíper aberto. Ao chegar em seu gabinete, tirou o sapato e prendeu o cabelo num coque para almoçar: um pote de plástico com salada, macarrão e frango, tudo misturado.
“A gente vai reformar esse espaço, vamos abrir as paredes, vai ficar bem [com cara de] startup”, ela falou, se referindo ao gabinete parlamentar. Ela divide espaço e recursos, numa espécie de coworking, com o deputado Felipe Rigoni, do PSB do Espírito Santo, e o senador Alessandro Vieira, da Rede de Sergipe. Apesar de terem perfis políticos distintos, os três integram o RenovaBR, um grupo apoiado por empresários – o principal garoto-propaganda é o apresentador global Luciano Huck – que forma novas lideranças e que elegeu 16 de 120 candidatos para o Congresso e assembleias estaduais.
A novata no Legislativo é fruto de dois programas suprapartidários que lhe concederam bolsa financeira e treinamentos de liderança em 2018: o RenovaBR e o Programa de Lideranças Públicas Lemann/RAPS. Este último é bancado pela fundação do segundo homem mais rico do Brasil, Jorge Paulo Lemann. Ela também faz parte do Movimento Acredito, que ajudou a fundar. Os três grupos pregam a renovação política e se dizem apartidários. Os integrantes são de variados espectros políticos, mas têm como compromisso cumprir princípios como transparência e redução de gastos do mandato.
Em comum, os discípulos de Lemann costumam levantar bandeirasligadas à educação. O ensino público brasileiro é um dos assuntos de interesse prioritário de Lemann, controlador das gigantes Ambev, Kraft Heinz e Burger King –, apesar de ele morar há anos na Suíça.
Os projetos educacionais do bilionário costumam ser geridos como suas empresas: com metas, gerenciamento de resultados e uma equipe escolhida criteriosamente.
Fundada há 15 anos, a Fundação Lemann é uma das entidades que apoiou ativamente a aprovação da Base Nacional Comum Curricular, a BNCC – o empresário, inclusive, foi um dos bilionários convidados a opinar sobre a reforma do ensino público brasileiro. A BNCC é criticada por especialistas por priorizar a preparação dos alunos para o mercado de trabalho, deixando em segundo plano questões teóricas ligadas às “humanas”, como discussões sobre gênero e inclusão, e tornando obrigatórias no ensino médio apenas as disciplinas de português e matemática.
O mesmo discurso é aplicado nos empreendimentos educacionais de Lemann no ensino privado. Seu projeto mais ambicioso em solo brasileiro é o colégio Eleva, que abriu as portas em 2017 no Rio de Janeiro para famílias dispostas a desembolsar R$ 3,9 mil por aluno ao mês e passar por um processo seletivo rigoroso para fazer parte de uma “nova geração de líderes”. Lemann também é acionista do Gera, grupo de investimentos em negócios educacionais, e da rede de ensino Eleva, que tem dez grandes redes de escolas particulares credenciadas pelo país, material didático próprio e mais de 70 mil alunos.
Os projetos educacionais do bilionário costumam ser geridos como suas empresas: com metas, gerenciamento de resultados e uma equipe escolhida criteriosamente. Por causa disso, eles dividem opiniões. Alguns pesquisadores dizem que as grandes corporações, como a de Lemann, se dedicam a formar líderes com objetivo de favorecer o livre mercado. É a opinião de de Eduardo Bonzatto, professor de História com ênfase em Educação na Universidade Federal do Sul da Bahia, que está escrevendo um livro sobre o tema.
“Eles escolhem líderes que tenham alto desempenho e tanto faz se for de direita, esquerda, homem, mulher, rico ou pobre. Na verdade, quanto mais diverso, melhor. Mas, em cargos de liderança, esses representantes são uma garantia de que eles poderão continuar a gerir o sistema com estabilidade”, ele me disse. Essa seria, para Bonzatto, a função de Tabata Amaral. Ele diz que não há doutrinação nos programas, mas, sim, uma preparação de lideranças para atuar em locais estratégicos, como o Congresso Nacional.
Pesquisadores também criticam o interesse de conectar a escola à lógica empresarial. Em um artigo sobre a interferência da Fundação Lemann no ensino público, o professor Jorge Luiz D’Ávila, da área de Políticas Educacionais da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, afirma que as escolas vêm servindo apenas para fornecer “mão de obra” que atenda às necessidades da economia. “Para esse fim, as empresas passam a intervir diretamente nas questões pedagógicas, na elaboração dos conteúdos e na formação docente incorporando nas instituições escolares a lógica do mercado”, escreveu. Outro artigo, da professora Maria Raquel Caetano, do Instituto Federal Sul-rio-grandense, diz que a atuação de grupos privados no ensino público faz parte de uma “crescente incorporação da educação pública a uma lógica empresarial contemporânea”.
‘Eu admiro o Jorge Paulo Lemann. Sabe, a gente tem uma das maiores empresas do mundo que tem brasileiros no poder. Eu acho que aí que a esquerda erra. Qual é o problema disso?’
Quando a questionei a respeito, a deputada disse que ter o apoio de megaempresários com interesses políticos não tolhe a sua independência parlamentar. “Eu vejo essas pessoas com frequência, tenho carinho por elas, mas não me encontro com elas fora de contextos sociais. Não tem ninguém me mandando mensagem, ligando, me enchendo o saco”, me disse. “Eu admiro o Jorge Paulo Lemann. Sabe, a gente tem uma das maiores empresas do mundo que tem brasileiros no poder. Eu acho que aí que a esquerda erra. Qual é o problema disso?”, perguntou.
“Eles têm uma pauta? Têm. Mas todo mundo tem pauta. E eu acho que me resguardo porque recebi doações de 429 pessoas diferentes e nenhuma delas foi de mais de 9% do total [gasto na campanha]. Recebi dinheiro de gente da esquerda e da direita, com agendas e pontos de vistas conflitantes”, continua.
Três dos maiores doadores de Amaral são sócios da rede de ensino particular Ânima, uma das principais do país – que abriga em seus negócios a HSM, empresa que fez Paulo Guedes ser investigado por suspeita de negociações fraudulentas em investimentos na educação. Ela recebeu, ao todo, R$ 150 mil de três membros da diretoria do grupo.
Perguntei se o apoio de um grupo de ensino privado poderia interferir de alguma maneira em seus posicionamentos políticos. “Eu gastei um terço da minha campanha pedindo dinheiro. Foi um esforço muito grande, eu não tinha um doador que pagou tudo, não tinha um partido que pagou tudo. Tive que me encaixar em mais de 50 jantares. Consegui levantar mais de R$ 1 milhão de forma honesta, diversificada e sem amarras”, respondeu. A deputada diz ainda que é contra a privatização do ensino público – o uso de vouchers para famílias pobres estudarem em particulares, é uma ideia defendida pelo seu colega de RenovaBR Vinícius Poit, do Partido Novo.
Os outros maiores doadores de Tabata foram o PDT (R$ 100 mil); o empresário Patrice Etlin, da consultoria de investimentos Advent (R$ 90 mil), que, junto com o irmão, doou para mais de 20 candidatos; e o publicitário Nizan Guanaes (R$ 79,5 mil), que fez as campanhas dos tucanos Fernando Henrique Cardoso (1994 e 1998) e José Serra (2002). Por financiamento coletivo, ela conseguiu R$ 58,1 mil.

‘Acordei cedo e senti uma eletricidade no ar’

Enquanto almoçava, Amaral pegou uma folha de sulfite, dobrou-a ao meio e começou a escrever à mão o discurso que faria mais tarde na sabatina do ministro, consultando dados no celular. Ao fundo, ouvíamos os discursos do ato de estudantes e professores que acontecia em frente ao Congresso naquela manhã.
Amaral teria três minutos para discursar, sem prorrogação. Treinou o discurso, cronometrando-o, por quatro vezes. Na primeira, estourou em 38 segundos. Cortou trechos. Na segunda, bombou por três segundos. Limou mais umas frases. Na terceira, teve sucesso. Mas quis tentar mais uma vez só para garantir. Convencida de que estava segura, começou a passar o texto a limpo – também à mão. “Acho que hoje vai ser um dia histórico. Eu acordei cedo e senti uma eletricidade no ar, algo diferente”, sorriu a deputada.
Foto: Pedro Ladeira/Folhapress
Antes da audiência começar, Amaral buscou assinaturas para 11 emendasque quer apresentar a projetos do Fundeb e da Reforma da Previdência (uma delas, que define regras especiais para professores, reduzindo o tempo de contribuição, foi aprovada na sexta).
A deputada se define como de centro-esquerda, embora seja alvo de críticas tanto da direita como da esquerda. Ela enumera alguns nomes pelos quais já foi chamada: “poodle de tosa e banho tomado”, “comunista”, “socialista”, “débil mental”, “pior do que fascista porque engana a esquerda”.
Ela contou que passou a ser atacada com a pecha de ‘esquerdista’ pelo MBL há três anos, quando começou a militar com o Movimento Acredito, e depois com a outra iniciativa que fundou, o Mapa Educação. “Tenho divergências com o que propõe essa mocinha e seu pretenso movimento, mas é da democracia, não vejo problema. No entanto, é curioso notar que, vereador mais jovem da história de São Paulo, negro, gay e da periferia, nunca fui chamado para programa da TV Globo. Será que é por que eu não sou de esquerda? Pois é”, disse, na época, o vereador paulistano Fernando Holiday. Em janeiro, o MBL a chamou de “deputada-patricinha”.
Desde que tomou posse, porém, Amaral disse que começou a apanhar mais pesado da esquerda. No episódio do confronto com Vélez Rodríguez, seu desempenho chegou a ser elogiado pelo MBL, mas foi atacado pela esquerda, que “descobriu” que ela supostamente é de direita.
Para ela, isso se deve mais à esquerda não querer dividir espaço no campo ideológico do que uma oposição às bandeiras que defende. “Quando eles têm que usar de todos os subterfúgios para dizer que eu não sou de esquerda, eu penso: ‘igualzinho o MBL, os bolsominions'”, disse. “Acho que tem mais a ver com o incômodo que gero, de ter mais alguém ocupando esse espaço, do que com as minhas ideias”.
‘Quando eles têm que usar de todos os subterfúgios para dizer que eu não sou de esquerda, eu penso: ‘ igualzinho aos bolsominions.”
Em declarações à imprensa, ela explora a posição em que fica mais confortável: o centro-esquerda. À Veja, ela falou que “essa coisa de esquerda e direita ameaça a democracia”. O Estadão a apresentou como “nem esquerda, nem direita”. Amaral acredita que a exacerbação da polarização política no país nos últimos anos teria empurrado o PT mais para a esquerda e o PSDB mais para a direita, abrindo um “vazio” no centro, o qual o PDT – e ela – agora querem ocupar.
“Nem PT e nem PSDB formaram lideranças. Os dois extremos, esquerda e direita, foram tomados porque não tinha ninguém. Eu acho que o PDT tem um espaço na centro-esquerda, já que [após o processo de impeachment] o PT foi mais para a esquerda e o PSDB foi mais para a direita do que haviam sido no passado. Espero que no futuro a gente tenha uma liderança na centro-direita também. Vai ser muito bom para o país”, disse.
Embora alguns celebrem a evidência e o surgimento de uma figura carismática – comparando-a à democrata Alexandria Ocasio-Cortez, fenômeno de esquerda nos EUA –, parte da esquerda rechaça a tentativa de elevar a deputada ao posto de nova liderança entre os progressistas. A socióloga Sabrina Fernandes foi uma das que mostrou preocupação publicamente com a ascensão da pedetista. “A Tabata Amaral é representante da pós-política, um dos fenômenos que eu mais abomino”, ela tuitou, dividindo opiniões à esquerda. Perguntei a ela o que isso significa.
Para Fernandes, o discurso do “nem direita, nem esquerda” tem tido cada vez mais apelo na sociedade porque canaliza a frustração das pessoas com a política tradicional. “Geralmente é empregado por figuras que se lançaram recentemente na política institucional, ou que partem de um rompimento com partidos e instâncias”, me disse.
“Esse discurso contribui para uma ilusão acerca da possibilidade de simplesmente dialogar e negociar com os dois lados. É uma ilusão porque os lados não são construções artificiais, mas fazem parte de visões opostas de como lidar com a divisão de classes, com a distribuição de recursos, com direitos e com a origem do poder”, afirmou.
“Por exemplo, o Brasil todo parece concordar com a importância da educação, mas há um oceano de diferença entre um projeto que fortalece a educação pública através da autogestão de estudantes, professores e pesquisadores, e um projeto que dá o projeto público único como falido para favorecer a opinião e entrada do setor privado. É por isso que não é uma questão de simplesmente se encontrar no meio do caminho”, continuou Fernandes.

Entre bolsas e medalhas

Amaral teve uma trajetória meteórica. De família de classe baixa, da Vila Missionária, bairro originado de um loteamento iniciado por uma instituição missionária católica, Tabata disse que trabalhou desde criança para ajudar na renda de casa, mas conseguiu se formar em Harvard, a melhor universidade norte-americana.
Aos sete anos, ela fazia bordado e pintava quadros que vendia na feira hippie da praça da República, no centro paulistano. “Achava que eu ia acabar trabalhando com artesanato, como minha mãe. Sabe que eu acho até que tinha um pouco de talento?”, ela disse, me mostrando, no celular, fotos de quadros que pintou.
Quadros pintados por Tabata Amaral.
Quadros pintados por Tabata Amaral.
 
Foto: Acervo Pessoal/Tabata Amaral
“Todo dia, da 1ª a 4ª série, eu chegava em casa e levava umas boas horas para limpar a casa, fazer o almoço, bordar. Eu não gostava de bordar, não gostava de limpar a casa. Não gosto de cozinhar até hoje, porque por muitos anos cozinhei por obrigação. Eu só queria que aquilo acabasse logo para poder sentar, ler e fazer tarefa”, lembrou.
Ao demonstrar habilidade com ciência e matemática, ela ganhou bolsa em uma escola particular de classe média, a Etapa. Logo, os professores perceberam que a situação financeira dela era diferente dos demais alunos e começaram a pagar suas refeições (antes, seu almoço se restringia a um iogurte) e um hotel perto do colégio (ela demorava todo dia mais de quatro horas indo e voltando de ônibus).
Em dado momento da nossa conversa no gabinete, Tabata tirou um dos sapatos, cinza e com salto baixo, e me mostrou por cima da mesa. “Foi a esposa de um professor que comprou, para eu ir na minha primeira premiação. Eu não tinha nada. Eu guardo bem minhas coisas”, riu.
Envergonhada, a deputada disse que seu comportamento, elogiado na escola, não era motivo de orgulho, mas, sim, uma forma de lidar com os problemas que via dentro de casa. “Estudar era a forma que eu tinha de fugir de tudo.”
“Eu era super aberta, adorava falar. Mas chegou um momento em que fui entendendo o que estava acontecendo”, contou.
Além de problemas financeiros – seus pais intercalavam subempregos com longos períodos sem ocupação –, Amaral também convivia com o vício do pai em álcool. Com o tempo, ele se envolveu com outras drogas e, no fim da vida, estava consumindo crack, segundo ela.
“E aí eu parei de falar com as pessoas. Minha mãe foi chamada à escola porque tinham medo de eu nunca conseguir falar em público. Deixei de ter amigos. Acho que um psicólogo saberia dizer o que aconteceu. O que sei é que me tornei extremamente tímida e só gostava de ler. Aquele era o meu refúgio”, me contou.
‘Eu te asseguro: o diálogo da periferia com Harvard é mais tenso que o da esquerda contra a direita.’
Tabata conseguiu sua primeira medalha – de prata – em uma olimpíada estudantil aos 12 anos. No ano seguinte, em 2007, foi a campeã na Olimpíada de Matemática, o que lhe rendeu um destaque no Jornal Nacional. No total, ela acumulou mais de 30 medalhas em olimpíadas estudantis – as conquistas lhe renderam o apelido de “supercampeã olímpica” em uma reportagem do G1 de 2011. Naquele ano, aos 17, ela já tinha ideia do que queria fazer – estudar em Harvard – e, para isso, tentava bolsas de estudo em oito processos seletivos diferentes.
Seus olhos se encheram de lágrimas ao contar que o pai morreu quatro dias após ela ser aprovada em Harvard, com bolsa de estudos integral da própria universidade – ela também foi aceita em outras cinco universidades americanas com bolsas de 100%.
“Eu odiei o primeiro ano em Harvard. Mas trabalhei como babá e recepcionista e mandei dinheiro para casa. Na época, minha mãe estava desempregada. Eu não falava nada de inglês, tive que aprender”, prosseguiu, antes de assoar o nariz algumas vezes até se recompor.
Tabata estava cursando astrofísica, mas decidiu mudar a graduação principal para ciência política no segundo ano da faculdade, após ter aula com Steven Levistky, autor do livro “Como as democracias morrem”. “Ele me falou: ‘você foi a melhor aluna, tem que considerar [mudar o foco de estudos], você tem talento’. Eu era louca pela aula, porque falava de desigualdades, de tudo que eu tinha vivido no Brasil”, afirma. “E eu te asseguro: o diálogo da periferia com Harvard é mais tenso que o da esquerda contra a direita.”
Com dificuldade para conciliar a faculdade com os empregos, ela se inscreveu para receber uma ajuda financeira da Fundação Estudar, também de Jorge Paulo Lemann. A bolsa, segundo ela, era de apenas US$ 500 por ano – dinheiro que diz ter devolvido este ano com o primeiro salário de deputada. Foi o primeiro contato de Tabata com o empresário, que depois a convidou para integrar a Lemann Fellow, uma “rede de talentos” comprometidos a levar “impacto social” ao Brasil. A rede é alvo das mesmas desconfianças direcionadas aos projetos do empresário na educação pública, pois seleciona lideranças de interesse e as mantêm em contato com a agenda da Fundação Lemann.

A aproximação trabalhista

Em 2014, Tabata Amaral trabalhou em um “summer project” na secretaria de educação de Sobral, no Ceará, berço do clã Gomes, liderado pelo candidato do PDT à Presidência em 2018, Ciro.
Mas o primeiro contato de Tabata Amaral com o líder trabalhista foi durante uma palestra do político em um evento em Harvard, em 2016. O vídeo da pergunta feita por ela viralizou, à época, porque o presidenciável disse que “andava estudando astrofísica” e replicou, perguntando à jovem se ela “compreendia que o multiverso é uma possibilidade”.
No Brasil, já militando em movimentos ligados à educação, ela decidiu usar essa bandeira para concorrer às eleições. Ao procurar um partido para concorrer nas eleições de 2018, Amaral acabou escolhendo o PDT pelo “seu histórico na área da educação, principalmente o legado de Darcy Ribeiro”. Segundo ela, era o partido a que tinha “menos críticas”.
Mas isso não quer dizer que não tem críticas. Para ela, a legenda deveria valorizar as prévias para escolher os nomes que disputarão cargos eletivos e garantir a participação de pelo menos 50% de mulheres nas disputas. As ideias enfrentam resistência, segundo ela, de caciques regionais. “Quem banca minhas brigas e entende que precisamos renovar é o [presidente] Carlos Lupi e o Ciro. Minhas maiores dificuldades são locais. Municipal e estadual. Aí sim tem gente há muitos anos, achando que as minhas ideias são de alguém jovem que só quer causar”, relata.
Católica fervorosa – vai à missa todo domingo, foi coroinha e cantou no coral da igreja –, Tabata diz que sua fé não interfere em posicionamentos políticos. Ainda assim, são os debates morais que podem lhe render novos confrontos com a esquerda. Ela é a favor do aborto nos casos já previstos em lei, mas contra a descriminalização geral. Também é a favor da legalização da maconha, mas não de outras drogas, por considerar que faltam estudos sobre uma liberação abrangente.
A deputada Tabata Amaral (PDT-SP) no plenário da Câmara dos Deputados durante votação do projeto de reforma da Previdência, em Brasília.
 
Foto: Pedro Ladeira/Folhapress
DURANTE QUASE TODA a longa sabatina com Weintraub, em maio, Tabata Amaral se manteve sentada em sua cadeira no plenário e ouviu atentamente aos discursos. Sua fala na tribuna, aquela que viralizou, foi no início da noite. Pouco antes do fim da sabatina, às 21h, ela deixou o plenário para jantar na sala da liderança do PDT. Era o tempo de que precisava antes de mais uma maratona de entrevistas sobre as manifestações de rua e o desempenho do ministro. “A vitória se deu mais nas ruas do que no Congresso”, disse a todos os jornalistas que lhe telefonaram.
Foi para casa perto das 23h. No dia seguinte, chegou ao gabinete às 8h45, se desculpando pelo atraso e dizendo que teve de dobrar roupas que estavam no varal.
Há até pouco tempo, Tabata costumava chegar de ônibus na Vila Missionária, onde vive a mãe. Foi proibida por motivos de segurança. Ela diz que passou a receber ameaças este ano, principalmente pelas redes sociais. Em um dos casos a pessoa foi identificada. Era um jornalista e escritor ligado ao PT que escreveu no Facebook, no final de março, que ela merecia “ser fuzilada e depois virar nome de escola”. Ela não quis revelar o nome por motivos legais, pois o caso foi para a Justiça.
Em Brasília, a deputada vive em um apartamento funcional. Quando tomou posse, ela se envolveu em sua primeira polêmica ao denunciar que o imóvel destinado a ela por sorteio estava ocupado pelo filho do deputado Hildo Rocha, do MDB do Maranhão. Com a confusão, acabou recebendo um outro apartamento, que seria “velho e mofado”. “Tive princípio de bronquite. Tive que ir na secretaria e mostrar os remédios que estava tomando para eles me passaram outro. Ele também é velho, mas pelo menos não tem colchão e cortina mofado”, disse.
A deputada garante que precisa do apartamento por razões financeiras: sua conta corrente vive “zerada”, ela alega. “Eu nunca mais falei sobre isso, porque tem coisas que as pessoas vão achar que eu estou inventando. Elas iam pensar ‘como pode uma deputada não ter onde ficar em Brasília e ainda ter a conta zerada’? Então eu prefiro não falar. Eu não tenho capital guardado, como é comum aqui. Fiz um monte de dívida na campanha, minha tia teve um problema de saúde, e eu emprestei dinheiro. Minha conta hoje tem R$ 200.”
‘É difícil saber para onde quero ir, se quero ser prefeita, secretária, ministra da educação. Acho que quero continuar na política porque aqui está o problema e a solução.’
Tabata reclama também de atos machistas e desrespeitosos na Câmara, como ser interrompida no meio de uma votação para ser perguntada se é casada. “Uma vez um deputado do PSL veio falar comigo, perguntou se eu era deputada, me deu um abraço bem forte e ficou me segurando. Eu me desvencilhei e ele me olhou com cara de idiota, se sentindo um galã”, me contou, franzindo o rosto. A deputada não quis revelar o nome do parlamentar porque diz que poderia sofrer um processo interno por ele.
Em situações assim, ela diz que costuma pensar em sacadas para “responder causando”, no que chama de sua versão “Tabata Zoeira”. Mas só expressa a pessoas mais próximas. Acabou se especializando em ser exageradamente calma e se fazer de boba. “Tem uma piada de que eu bato fofo. A pessoa vem com sangue nos olhos e eu respondo tranquilamente. Quando me perguntaram se eu era casada, perguntei ‘qual é a relevância para a minha atuação parlamentar, o senhor me explica?’. Assim, calminho. Aí a pessoa fica constrangida. Me perguntaram onde eu achei meu pin [broche de deputada] e eu disse que achei no chão. A pessoa ri”, conta.
Com a agenda lotada, Tabata reserva um fim de semana por mês para visitar o namorado, um ex-colega de faculdade que vive no Amazonas e é colombiano. Ele recebe uma bolsa para projetos de saúde e educação em pequenas comunidades. Recentemente, ela está fugindo de spoilers do final de “Game of Thrones”, série que os dois combinaram de só ver juntos.
Apesar da trajetória, a deputada admite que abriria mão de tudo isso caso pudesse voltar no tempo. Ela diz que, se pudesse escolher, não teria aceitado a oferta dos professores do colegial que lhe pagaram um quarto de hotel para ficar mais perto da escola. Afinal, ela estava no hotel nos dois últimos anos da vida do pai, vendo-o apenas aos finais de semana.
“Eu sei que não estaria aqui, não teria ido para Harvard, para nenhuma competição, se eu tivesse continuado pegando quatro horas de ônibus todos os dias. Mas eu queria ter estado com o meu pai”, afirmou. Para ela, esse foi o seu único erro.
Tabata disse se ver completando um segundo mandato de deputada federal, mas é evasiva ao falar dos planos de subir os degraus de uma carreira política. “É difícil saber para onde quero ir, se quero ser prefeita, secretária, ministra da educação. Acho que quero continuar na política porque aqui está o problema e a solução. Mas eu cresci querendo ser cientista. Antes queria ser artista plástica. Eu nem sabia que eu poderia ser presidente da República”, diz. “Sonho ser lembrada como alguém do calibre de Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira.”
Mas talvez tenha que encontrar outro partido para seguir na política. Na quinta-feira, Carlos Lupi confirmou que o PDT abriu um processodisciplinar para discutir qual será a consequência da votação a favor da reforma da Previdência. Para Ciro Gomes, Tabata cometeu um “erro indesculpável” que “não pode passar impune”. A punição, a ser definida em até 60 dias, pode chegar à expulsão do partido.
Dependemos do apoio de leitores como você para continuar fazendo jornalismo independente e investigativo. Junte-se a nós 

ENTRE EM CONTATO:

Amanda Audiamanda.audi@​theintercept.com@amandafaudi
  167 Comentários
Mineiros trabalhando sob o reator nuclear danificado na minissérie “Chernobyl”, da HBO.
23
Mineiros trabalhando sob o reator nuclear danificado na minissérie “Chernobyl”, da HBO.Foto: cortesia da HBO.

O QUE O HORROR DE ‘CHERNOBYL’ REVELA SOBRE A ERA TRUMP

IMAGINE ESTA CENA: um funcionário cheio de culpa que trabalhou para o presidente Donald Trump senta-se à noite para confessar sua agonia. “Qual é o preço das mentiras?”, diz o funcionário cansado a um gravador, sentado em sua cozinha escura. “Não é o caso de confundi-las com a verdade. O perigo real é que, se ouvirmos mentiras suficientes, não mais reconheceremos a verdade. Então, o que podemos fazer?”
Esta confissão não é um artefato da era Trump, mas a abertura de “Chernobyl”, um drama magistral da HBO que transforma a história em profecia. A série de cinco partes começa com um cientista soviético, interpretado por Jared Harris, descrevendo sua consternação com a cultura do sigilo e das mentiras que levaram ao quase derretimento de um reator nuclear em Chernobyl, em 1986, seguido pelo encobrimento das reais consequências da catástrofe. Depois de gravar sua confissão, o cientista Valery Legasov alimenta seu gato, apaga o cigarro, pisa em uma cadeira e se enforca.

O tema das mentiras – a destruição da verdade por um regime dedicado à autopreservação – permeia “Chernobyl” de uma maneira extremamente relevante para os Estados Unidos na era do birtherism (movimento nos EUA que duvida que Barack Obama seja de fato cidadão americano e, por isso, seria inelegível), Sarah Sanders, e “pessoas muito boas” que são neonazistas. O corolário é inconfundível.
Em certo ponto, um engenheiro que é parcialmente culpado pelo acidente nuclear diz a um investigador que sua busca por honestidade e seu desejo de evitar um pelotão de fuzilamento são fúteis. “Você acha que a pergunta certa vai te dar a verdade?”, ele diz. “Não há verdade. Pergunte aos chefes o que você quiser. Você vai receber a mentira e eu vou receber a bala.”
“Chernobyl” pode ser considerada a melhor obra fílmica de nosso tempo porque esclarece um problema central da era Trump: o martelar sem tréguas de informações falsas que abafam o que é verdade. O risco é que os americanos que são inundados com o lixo moral da Casa Branca e da Fox News possam perder a vontade de se importar com a diferença entre o certo e errado, ecoando o que aconteceu na União Soviética. Quando tudo se torna cinzento e débil, não há uma batalha que valha a pena ser lutada.
A arte por trás de “Chernobyl” é transportadora – o diálogo, o visual, a atuação, a música. Ela se destaca como um filme de terror, filme de ação, thriller político, documentário e fábula. Você mal percebe a eviscerante mensagem da série até o episódio final, que é como uma adaga que você não sente até que entre em seu peito e lhe faça arquejar.
Mas o criador e escritor da série, Craig Mazin, foi, como seu personagem central, explícito em dizer o que significa. “Nós estamos vivendo em uma guerra global sobre a verdade,” disse ao Los Angeles Times. “Nós vemos este presidente que mente, não mentiras pequenas, mas mentiras completamente absurdas. A verdade sequer está na conversa. É apenas esquecida ou obscurecida ao ponto de não podermos enxergá-la. Chernobyl é sobre isso.”
A reação da direita à “Chernobyl” provou o ponto de Mazin sobre a América e a negação. Os conservadores elogiaram a série a princípio, pois acreditavam que era o retrato da falsidade do “esquerdismo”. Mas as coisas mudaram rapidamente.
Você deveria assistir a CHERNOBYL. É notável e suas lições são absolutamente relevantes hoje. Esquerdismo é contaminação.– @KurtSchlichter
Quando Mazin comentou que “Chernobyl” também era sobre a contaminação de Trump, eles responderam que Mazin não sabia do que estava falando, apesar de ter criado o programa que eles celebravam. Houve uma troca particularmente bizarra de tuítes que começou com Stephen King. “É impossível assistir Chernobyl, da HBO, sem pensar em Donald Trump”, tuitou o escritor.
É impossível assistir a Chernobyl, da HBO, sem pensar em Donald Trump; como os responsáveis pelo reator russo destruído, ele é um homem de inteligência medíocre com um grande poder nas mãos – econômico, global – que ele não compreende.– @StephenKing
Então Dan Bongino, colaborador da Fox News que concorreu ao Congresso três vezes e perdeu em todas, insistiu que os “elitistas de Hollywood” estavam muito, muito errados.
Por que os elitistas de Hollywood continuam a se humilhar publicamente no twitter? Chernobyl foi um fracasso do socialismo (onde o governo controla os meios de produção), exatamente o oposto da agenda de desregulamentação e corte de impostos de Trump.– @dbongino
Mazin, que tem 130 mil seguidores no Twitter, não hesitou em corrigir o registro. Chernobyl foi um fracasso de seres humanos cuja lealdade para (ou medo de) um partido governista quebrado anulou seu senso de decência e racionalidade”, respondeu ele.
Chernobyl foi um fracasso de seres humanos cuja lealdade para (ou medo de) um partido governista quebrado anulou seu senso de decência e racionalidade. Você é o homem velho com a bengala. Você apenas adora o retrato de um homem diferente.
– @clmazin
Para os críticos da direita, não importou que Mazin tenha dedicado anos de sua vida pesquisando o desastre e fazendo a série, que recebeu uma imensa quantidade de elogios. Mesmo que seus detratores provavelmente tivessem dificuldade em localizar Chernobyl em um mapa, Mazin não tinha direito, em sua opinião, de fazer qualquer afirmação sobre o seu significado. A verdade era o que eles dissessem que era. A revista online The Federalist chegou a publicar uma reportagem que parabenizou o programa por alertar sobre o mal da China e da Coreia do Norte – a manchete era “‘Chernobyl’, da HBO, mostra os perigos mortais do estatismo.
No final, “Chernobyl” não é apenas sobre o custo das mentiras políticas: é sobre a mudança climática e o fato de que não podemos traçar nosso caminho fora das leis da ciência. Foi o que aconteceu na União Soviética. Uma falha de projeto no reator de Chernobyl já havia sido identificada por pesquisadores, mas suas descobertas foram tratadas como um segredo de estado que não podia ser compartilhado com as pessoas que operavam a usina.
Hoje, não há mais dúvidas científicas sobre o fato que nosso planeta está aquecendo e que uma catástrofe se avizinha se não reduzirmos as emissões. Mas a maioria das pessoas encarregadas de operar o planeta – nossos líderes políticos – estão ignorando as advertências, particularmente nos Estados Unidos. Recentemente, o Departamento de Energia descreveu os combustíveis fósseis como “moléculas da liberdade dos EUA” e, claro, o presidente Trump planeja retirar os EUA do acordo climático de Paris.
“Ser cientista é ser ingênuo”, observa Legasov, o herói da série, em sua gravação final. “Estamos tão focados em nossa busca pela verdade que não consideramos quão poucos realmente querem que a encontremos. Mas ela está sempre presente, quer vejamos ou não, quer escolhamos ou não. A verdade não se importa com nossas necessidades ou desejos. … Ela ficará ali, à espera, todo o tempo.”
Tradução: Maíra Santos
Dependemos do apoio de leitores como você para continuar fazendo jornalismo independente e investigativo. Junte-se a nós 

ENTRE EM CONTATO:

Peter Maasspeter.maass@​theintercept.com@maassp
  23 Comentários
16
Foto: Leandro Barbosa/The Intercept Brasil

A LUTA DE UMA GUARANI KAIOWÁ: ‘FUI EXPULSA DA MINHA TERRA SEIS VEZES E PERDI MARIDO, FILHOS E NETO’

QUANDO O CARRO em que eu estava parou à margem da BR-463, no dia 26 de maio, em Dourados, Mato Grosso do Sul, Damiana Cavanha, líder indígena Guarani Kaiowá, ficou apreensiva. Disse à freira do CIMI, que a visitava: “olha lá, é fazendeiro”. Foram muitas as investidas de produtores rurais à aldeia Apyka’i, onde Damiana vive, hoje representada por ela, sua nora, uma neta e dois netos, que resistem, naquela beira de estrada, na esperança de retornarem para o seu tekoha (“lugar em que se é”, em guarani). Qualquer estranho, de início, é um suspeito.
A senhora de 80 anos vive numa casa de sapê com o neto Sandriel, de 13 anos, que adotou após o seu pai, filho dela, morrer atropelado na rodovia. Sem luz, é durante o dia que as tarefas são feitas. À noite, não há mais o silêncio da floresta. Segundo Damiana, o som dos carros em alta velocidade na estrada amenizam por volta de 1h da madrugada, mas nunca para. Há também o som da água vinda de um riacho próximo ao acampamento, que corta parte da plantação ao redor. Quando agrotóxicos são lançados na terra, não é incomum eles passarem mal ao beberem do único lugar acessível para matar a sede. Ela conta que não foram poucas às vezes em que tiveram diarreia, dores de cabeça e enjoo.
A luta dos Guarani Kaiowá, da aldeia Apyka’i, é contra a Usina São Fernando, do Grupo Bertin, um dos maiores frigoríficos produtores e exportadores de carne das Américas, e da Agropecuária JB, ligada ao Grupo Bumlai. Fundada em 2009, a usina arrenda as terras da Fazenda Serrana para o plantio de cana, lugar reivindicado como território dos indígenas. O empreendimento está em processo de falência desde 2017.
Da esquerda para a direita, a neta e dois netos de Damiana posam para foto após brincarem de gol a gol, única diversão possível no pequeno terreno à margem da rodovia, em Mato Grosso do Sul. A criança do meio é o neto criado como filho por ela – o pai da criança morreu atropelado.
Da esquerda para a direita, a neta e dois netos de Damiana posam para foto após brincarem de gol a gol, única diversão possível no pequeno terreno à margem da rodovia, em Mato Grosso do Sul. A criança do meio é o neto criado como filho por ela – o pai da criança morreu atropelado.
 
Foto: Leandro Barbosa/The Intercept Brasil
De acordo com a Funai, o procedimento de identificação e delimitação da terra indígena Apyka’í foi autorizado por meio da portaria nº 560, de 29 de junho de 2016. Desde então, encontra-se em fase de estudos. No que se refere aos atuais ocupantes do território, o órgão afirmou: “que os estudos de natureza fundiária, acerca da ocupação não indígena na TI, ainda não foram realizados, estando previstos para o ano corrente”.
A resposta do órgão vai de encontro às declarações do presidente Jair Bolsonaro que afirmou que, em seu governo, não haverá demarcação de terras. A bancada ruralista tem buscado controlar a Funai e, recentemente, indicou o delegado da Polícia Federal Marcelo Augusto Xavier da Silva, para assumir a presidência do órgão, após a demissão do general da reserva Franklimberg Ribeiro de Freitas, em junho. Conhecido como Delegado Xavier, sua trajetória é marcada por sua proximidade com ruralistas e grupos que fazem lobby pela exploração de mineração em terras indígenas.
Segundo o Ministério Público Federal em Mato Grosso do Sul, a comunidade Apika’i de Damiana já foi atacada algumas vezes por seguranças privados contratados pelos produtores da região. Em 2014, a Gaspem, principal empresa que prestava serviços de segurança de áreas rurais e reintegração de posse informal, teve as suas atividades encerradaspor conta de um processo instaurado pelo órgão. Nos autos, a empresa foi classificada como milícia privada que disseminava “violência contra os Guarani Kaiowá do cone sul do Estado de Mato Grosso do Sul por meio de pessoas brutais nominadas ‘vigilantes’”. Apesar de tudo, os indígenas resistem.
Visitei a Damiana três vezes para ouvir a sua história. Levando em conta sua trajetória difícil, com a autorização dela, escrevi o seu relato com a ajuda dos registros do CIMI, com o objetivo de detalhar os acontecimentos com precisão. A organização presta assistência aos Guarani Kaiowá e acompanhou as entrevistas que fiz com Damiana.
Damiana em frente a casa em que mora.
Damiana em frente a casa em que mora.
 
Foto: Leandro Barbosa/The Intercept Brasil
EU JÁ FUI EXPULSA DA MINHA TERRA SEIS VEZES. Nesse mundaréu de cana e milho que me cercam, já corri de tiros, vi o fogo destruir casas e vi gente morrer. Depois do último despejo da aldeia Apyka’i, fazem quase quatro anos que moro, outra vez, à margem da BR-463, em Dourados. Sempre que me expulsam é pra cá que eu venho. É onde eu aguardo o dia em que voltarei para a minha tekoha.
Aqui não tem luz, pego água em um córrego próximo, mas nem sempre a água é boa. Nos dias que jogam agrotóxicos nas plantações, por exemplo, beber dali é inviável, mas é a única opção. São muitos os desafios e dores que enfrento nessa beira de estrada. Já morreram oito Kaiowá nessa rodovia, seis eram da minha família: marido, nora, três filhos e um neto. As autoridades chamam isso de acidente, mas eu não acredito. Os motoristas nunca prestaram socorro, e os policiais nunca identificaram ninguém, embora o caminho para as plantações tenha sido o lugar de fuga e testemunhas tenham feito a descrição dos carros.
A luta que os Guarani Kaiowá enfrentam é contra poderosos, e eles estão nos matando.
Quando meu neto Gabriel, de quatro anos, morreu atropelado, a força do carro quebrou o seu corpo. Ajudei a juntar as partes dele que se espalharam pelo asfalto, a cabeça dele foi longe. Seu enterro foi cercado pela violência que interrompe os nossos dias. Pistoleiros armados estavam em nosso território. Eles só permitiram a nossa entrada no cemitério quando viram o caixão pequenininho. Tivemos que sair tão rápido de lá, que colocamos ele em uma cova rasa. Aquele dia foi tão angustiante. Eu só pensava que meu neto havia sido enterrado sem todos os seus brinquedos. Como seria a sua passagem? Como ele iria brincar no pós-vida?
É duro contar isso, mas é necessário. A luta que os Guarani Kaiowá enfrentam é contra poderosos, e eles estão nos matando. Nos matam quando nos afastam da nossa tekoha e nos condenam à miséria. Nos matam quando ocupam nossas terras com milho, cana, soja e lançam sobre nós agrotóxicos. Nos matam quando destroem a natureza e todo alimento e bem-estar que ela nos oferece.
Antes de meu pai morrer, ele me disse: “Damiana, minha filha, não deixa a minha luta parar. Seja forte. Lute pela nossa tekoha”. Eu prometi que faria. E morrerei lutando por isso. Essa terra pertence aos Guarani Kaiowá. E nós vamos entrar, vamos voltar. Que o governo, pistoleiros, fazendeiros nos matem nela e nos enterrem ali. Assim, ao menos, estaremos com nossos antepassados e no lugar que nos pertence.
O túmulo do meu pai está no meio do canavial, e não me deixam entrar, não me deixam fazer as rezas. Meus filhos e netos estão em um lugar que, às vezes, consigo entrar escondida, na madrugada, e rezar. Minha parente, Cláudia Benite, foi enterrada na beira da rodovia, porque não nos permitem ir ao nosso cemitério. Nos roubaram tudo, mas ainda tenho esperança de voltar para o meu lugar.
Foto: Leandro Barbosa/The Intercept Brasil
Damiana aponta para o neto Gabriel, atropelado na rodovia. O homem de verde ao lado da criança é o filho dela, que também morreu atropelado.
 
Foto: Leandro Barbosa/The Intercept Brasil

A terra onde se é

karaí só pensa em dinheiro, e por ele mata a terra. Ele ignora que é a terra que dá tudo o que a gente precisa. Para nós, Kaiowá, a terra é o sangue do índio. Ela produz o alimento, ela mata a nossa sede. É nela que somos o que somos. Aprendemos a viver com ela, e ela nos abençoa. Quando acontecem pragas, temos rezas para afastá-las. Os brancos têm venenos que destroem as pragas, mas também a terra, água, além de adoecer e matar as pessoas e os animais.
Invadiram o nosso tekoha para alimentarem a ganância. Vivem pelo dinheiro. Eu cresci aqui, e é impossível não lembrar da mata, dos bichos. Não faltava alimento, porque tinha caça, pesca. Hoje em dia, só existe lavoura. Diante disso, meu povo vive na miséria. Falta comida, água potável. Recebemos cestas básicas da Funai, que nem sempre chegam em dia. Pra cuidar dos meus netos e nora que moram nessa beira de estrada comigo, uso os pedaços de terra possíveis para plantar. Quando a colheita é boa, ainda consigo dividir com algumas famílias. Tem diversos tipos de feijão, mandioca, batata, o espaço é pequeno, mas a gente se vira como pode.
Matam o meu povo para plantarem cana, milho, para ocuparem o nosso território com bois.
Depois do último despejo em 2016, no mesmo dia em que nos expulsaram o fazendeiro fez um portão no lugar onde dava acesso à nossa terra, a partir da BR-463. Fora do lugar que nos pertence, alguns indígenas foram para outras aldeias, em Caraapó, cidade vizinha, também em terras que ainda não foram demarcadas. No Mato Grosso do Sul, um Guarani Kaiowá nunca está de fato seguro. Onde quer ele vá, sempre haverá alguém para dizer que ali não é o lugar dele, embora as terra deste estado sejam o nosso sangue.
Não foram poucas as vezes que eu ouvi da Funai que o processo de demarcação estava para acontecer, que em breve uma solução iria chegar, mas já são mais de 20 anos que meu povo espera. E, neste tempo, fomos imersos em inúmeras situações de violência. Assassinatos, fome, prisões, espancamentos, não faltam notícias para retratar o que o meu povo sofre nas mãos do estado que não age de acordo com a urgência necessária, para acabar com tantas tragédias.
Me entristece lembrar de tudo isso. Contar essa história doí. São meus familiares, é o meu povo, é gente que morreu porque nos arrancaram da nossa terra. E nos tiraram de lá pra quê? Por dinheiro. Matam o meu povo para plantarem cana, milho, para ocuparem o nosso território com bois. Vivíamos bem. Tínhamos tudo o que precisávamos. E agora o que nos resta é aguardar uma decisão judicial, um pedaço de papel que garanta que esse lugar é nosso, enquanto, na verdade, nós, Guarani Kaiowá, somos o documento dessa terra.
Dependemos do apoio de leitores como você para continuar fazendo jornalismo independente e investigativo. Junte-se a nós 

ENTRE EM CONTATO:

Leandro Barbosacomunicacao.leo@​gmail.com@Barbosa_Leandro
  16 Comentários
Trabalho infantil: a menina Michelle, 8, passa roupa na casa da avó em favela da zona sul de São Paulo. (São Paulo, SP, 09.04.2003. Foto: Tuca Vieira/Folhapress
91
Trabalho infantil é aquele que afeta a saúde física, psicológica e priva as crianças da educação. E é a realidade de 200 mil meninas no país – principalmente negras e nordestinas. Foto: Tuca Vieira/Folhapress

NINGUÉM PERGUNTOU ÀS MENINAS QUE TRABALHAM EM CASAS DE FAMÍLIA DO NORDESTE SE ELAS QUERIAM ESTAR ALI

DESDE OS SETE anos de idade, eu e meu irmão mais novo ajudávamos nosso pai na lida com o gado. No tempo da seca, no interior de Pernambuco, a gente andava cerca de 10km para levar os animais da roça até o único lugar onde tinha água para eles beberem. Esse poderia ser mais um texto sobre “eu também trabalhei quando era criança e isso não me atrapalhou em nada”, mas existe uma diferença muito grande entre ajudar os pais e ser explorado por um patrão.
Essa é a realidade cruel do trabalho infantil doméstico que gente como o presidente Bolsonaro, a apresentadora Leda Nagle e a deputada Bia Kicisdesconhecem, ou pelos menos fingem desconhecer, ao falar sobre suas felizes experiências laborais na infância.
Nossas histórias são muito diferentes da história da Ana*, uma jovem que começou a trabalhar aos quatro anos de idade em uma fazenda no interior do Piauí. Entregue pelos pais para outra família, ela cuidava dos animais, plantava e vendia legumes. Também era agredida constantemente. Aos 14 anos decidiu fugir, mas continuou a ser explorada – desta vez em uma casa em um bairro nobre da capital, Teresina.
“Eu aceitei ir porque ela me prometeu que eu seria tratada como filha, ia estudar e que não precisava trabalhar. Era tudo mentira”, me contou Ana*, hoje com 19 anos. Falei com ela ontem, por telefone, após ler o seu processo, que corre na justiça do Piauí.
Entre 2013 e 2018, no segundo trabalho, a menina lavava, passava, cozinhava, fazia faxina e ainda era babá de uma criança com necessidades especiais. Vez ou outra trazia hematomas pelo corpo, provocados pelas agressões que sofria da patroa. Com tudo isso, teve que abandonar os estudos.
Do salário de R$ 500 que lhe foi prometido, Ana recebia apenas uma parte. A patroa descontava valores altos da venda de roupas usadas e perfumes. 

Sem comentários: