Pela integridade (2)
Um dos maiores equívocos no debate é a sua redução a uma questão moral. O argumento básico é que a corrupção manifesta a falta de valores morais. Não é verdade. Ou melhor, não é bem assim. A confusão surge do facto de que muita gente, para sobreviver, não pode prescindir do envolvimento em actos que configuram a ideia geral de corrupção. Também tenho feito esta constatação, mas não é para dizer, como diz o acadêmico brasileiro muito citado entre nós a propósito desta questão, Leandro Karmal, que não há como os governantes não serem também corruptos. A única ilação que se pode tirar desta constatação é a de que ninguém tem realmente muita “moral” para julgar o outro. Só isso. Mas a prática desses actos por muitos não significa a ausência de moralidade. Na verdade, e como já disse num outro contexto, o que caracteriza o nosso País não é falta de moral, mas sim excesso de moral.
Pelo menos do ponto de vista da sociologia, não existe essa coisa de falta de valores morais. As pessoas sempre agem de acordo com um valor qualquer. O que pode acontecer é que esse valor não corresponda ao que um determinado sistema normativo consideraria de bom. Assim, mesmo quando alguém rouba um carro podemos ver nesse acto uma referência moral, nomeadamente aquela que diz que é bom se apropriar daquilo que não nos pertence sempre que tivermos necessidade. Não é o tipo de moral que muita gente aceitaria, mas não deixa de ser moral por isso. A questão, portanto, não é de falta de moral, mas sim do tipo de moral que é dominante num determinado momento.
Ora, entre nós dominam dois tipos de moral. Uma, mais generalizada, é aquela que ratifica tudo aquilo que ajude alguém a sobreviver num ambiente precário, incerto e imprevisível. É por isso que é fácil para qualquer um de nós “justificar” o seu comportamento problemático e achar mau que outros se comportem dentro da mesma lógica. Não é incongruente. É uma moral individualista e, como tal, só aceita a justificação subjectiva. É uma moral que parte do princípio de que todos somos vítimas de algo que é externo a nós e, por isso, todos nós estamos envolvidos numa luta ferrenha com essa coisa. Os governantes fazem parte dessa coisa, mas individualmente, submetem-se à mesma lógica.
A outra, mais restricta, tem a ver com a cultura política. A nossa democracia não é um “acordo de cavalheiros” para que cada um, à sua maneira, contribua para o bem comum. É a continuação da guerra que dilacerou o País durante 16 longos anos. O sentimento mais profundo na nossa cultura política é o de desconfiança em relação aos adversários vistos, essencialmente, como inimigos a abater. Assim, existe no seio das formações políticas uma postura postura que ratifica tudo o que beneficia o próprio partido ou prejudica o adversário. Estando a Frelimo no poder desde que há memória, é normal que ela tenha tido mais oportunidades de praticar esta moral. Os outros partidos, contudo, não são diferentes como a gente vê a partir da maneira como agem nos municípios que eles controlam. O problema, porém, é que nesse ambiente fica difícil fazer a distinção entre aquilo que beneficia o partido e aquilo que beneficia o indivíduo. Muitos dos conflitos que existem no interior dos partidos, sobretudo no interior do partido Frelimo, são reflexo disto. Aqueles que se apresentam como “reserva moral” no fundo manifestam apenas a sua frustração por não estarem no lugar daqueles que podem tirar proveito dos seus cargos. Reagem com aquela moral individualista genérica.
Explicado isto fica claro que o desafio não é de “educar” as pessoas. O desafio é de diminuir a incerteza, a precariedade e a imprevisibilidade para lidar com a moral genérica e aumentar a confiança entre os adversários políticos para que a democracia seja colocada ao serviço do bem-comum. No primeiro caso o desafio é de ser criativo em relação aos problemas que nos assolam, sobretudo em relação à ineficiência do aparelho do Estado. No segundo caso o desafio é de reforçar os mecanismos de controlo da legalidade dos partidos (se respeitam ou não os seus próprios estatutos) e penalizá-los pelas falcatruas dos seus membros. Alguém vai perguntar “como?”. Pois, essa é a pergunta, mas primeiro temos que entender o problema.
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