segunda-feira, 8 de julho de 2019

O equívoco capital


O equívoco capital
Não sei como as nações se desenvolvem. Por isso, não tenho nenhuma receita para o nosso próprio País. Mas se tivesse que me aventurar e propor alguma coisa, iria sugerir que o desafio reside na capacidade de distinguir objectivos práticos dos princípios que a sua prossecução promove. É como na pesquisa. Se eu quero entender a relação entre corrupção e desenvolvimento tenho que procurar saber o que preciso de saber para entender essa relação. Que efeitos tem a corrupção na promoção (ou não) dum bom ambiente de negócios? O que eu quero compreender nunca constitui a minha pergunta de pesquisa. A minha pergunta de pesquisa é sempre uma conversa com as teorias que estudam um determinado tema. Entender significa demonstrar a utilidade duma teoria no esclarecimento de alguma coisa.
Mesma coisa com estas questões do desenvolvimento. Combater a fome, o crime, a corrupção, etc., não são objectivos “úteis” na política. Os eleitores incautos deixam-se enganar por isso. As caixas de ressonância do poder ficam a batucar isto. Combate-se a fome porque se quer promover a justiça social, criar espaços para que os mercados funcionem melhor, fomentar a dignidade humana, responder ao chamamento de algum Deus, etc. É o princípio que o combate à fome protege e promove que diz como ela vai ser combatida, que tipo de instituições são necessárias para o efeito, que tipo de gente com que postura vai fazer isso, etc. Qualquer pessoa pode facilmente dizer que quer combater a fome; nem todos, contudo, conseguem articular esse desiderato com um princípio. As políticas desenhadas para esse combate falham justamente aí. E quando a esfera pública também está perplexa em relação a isto não ajuda a reflectir melhor sobre esse combate.
Esta desarticulação entre fins práticos e princípios está, quanto a mim, na base da nossa perplexidade. Muita gente está cheia de certezas sobre os objectivos práticos, mas tem muita dificuldade em os articular com princípios e, quando o faz, em ser consequente. Nisto somos, na verdade, o reflexo do que os nossos países são em relação à Europa. Sabemos consumir o que de lá vem, mas não temos a mínima ideia de como produzir essas coisas. Aquela divisão internacional do trabalho intelectual sobre a qual falava o filósofo do Benin, Paulin Hountondji, manifesta-se também na maneira como pensamos o desenvolvimento. Concentramo-nos apenas na produção de dados e deixamos para os outros a teorização desses mesmos dados. Eles vêm com aquele papo de combater a pobreza, a corrupção, etc. e nós repetimos isso sem tentar domesticar. Não nos perguntamos: porquê e para quê combater a pobreza? Ecoamos apenas e, com isso, privamo-nos dum instrumento político bastante potente.
Talvez isto explique as notórias dificuldades que muitos têm com a crítica. Como pensam que o compromisso com o objectivo prático é tudo, consideram toda a interpelação crítica que se faz ao nível dos princípios que a prossecução desse objectivo implica uma afronta. Se você diz a alguém que a maneira como o Estado procura salvar vidas em situação de emergência vai contra o princípio da autonomia individual, algumas pessoas concluem que você não se preocupa com a vida humana; se você diz que o combate à corrupção não pode implicar o insulto ao deputado (como foi a campanha do CIP), algumas pessoas acham que você está a defender os corruptos; se você diz que a transparência não pode ser em detrimento da protecção da esfera privada (como a revoltante decisão dum semanário de publicar conteúdos duma conversa privada sem o consentimento dos envolvidos), algumas pessoas acham que você quer esconder roupa suja; se você diz que não se combate o fecalismo ao céu aberto expondo as pessoas (que mesmo assim têm direito à dignidade), algumas pessoas acham que você está a defender atentados à saúde pública; se você diz que a reacção dum membro dum partido ao processo disciplinar que lhe foi movido pode constituir uma oportunidade para que esse partido reveja o seu funcionamento, algumas pessoas dizem que você está a encorajar a indisciplina.
A lista não tem fim e documenta o hiato entre princípios e objectivos práticos. É, no fundo, a incapacidade de abstrair. O problema é que sem essa capacidade, estamos perdidos. Movemo-nos entre dois extremos: um extremo da subserviência total e outro extremo da hostilidade imbecil. As declarações de amor feitas pela OJM ao Presidente do partido Frelimo manifestam muito bem o primeiro extremo. Os “jovens” acham que são chamados a defender o líder e a declarar guerra aos “indisciplinados”. Não veem a reacção de Samito como um convite à reflexão em prol do seu partido. São soldados em prontidão combativa contra um inimigo mal definido. Não têm capacidade de abstracção, mas são as pessoas que num futuro próximo vão receber a estafeta dos que hoje estão no poder para perpetuar a perplexidade.
A publicação de conteúdos duma conversa privada por um semanário é o exemplo da hostilidade imbecil. O jornal viu na fofoca contida nessa conversa uma oportunidade de “atacar” e “expôr” o governo que tanto odeia. Terreno fértil para tal encontrou na credulidade geral que interpreta tudo de forma literal quando dá conforto a convicções. Na presença de tantas evidências de comportamento corrupto, ninguém pára para saber se o ministro e a ex-secretária não tenham combinado “vazar” a conversa com objectivos inconfessos. É sintomático que num País apaixonado por teorias de conspiração ninguém coloque essa hipótese. Não é para lixar ainda mais Chang? Não é para “limpar” a imagem de Guebuza? Não é para comprometer o próprio Presidente (já que um dos participantes é visto como potencial Presidente...)? Mais uma vez, é a incapacidade de abstracção. A publicação não serve outro objectivo senão mesmo “ferir” o inimigo. Um jornal usa o poderoso instrumento da liberdade de expressão para minar a confiança na sociedade, não para a promover.
É um equívoco capital pensar que um País se desenvolve ao nível de objectivos práticos (e imediatos). Se você não faz ideia do que a sua preocupação com os esfomeados, com as vítimas das cheias, com as raparigas que casam prematuramente, etc. promove em termos de valores, você não está em condições de realmente contribuir de forma útil para o debate de ideias. Você é apenas uma caixa de ressonância. E está a atrapalhar, na verdade. Isto não tem nada a ver com formação. É possível ser PhD e estar refém disto. Nem tem a ver com capitalismo ou socialismo. Tem a ver com sensatez.
Comentários
  • Mablinga Shikhani De facto Africa afasta-se de si mesma com esses modelos à la minute que atendem as consequências e não as causas. É uma dinâmica babélica (cada um fala a sua língua e puxa a sua parte). Não haverá desenvolvimento.
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  • Joaquim Sérgio Inácio Manhique ... e tambem, tem a ver com a falta de respeito a "dignidade humana colectiva" (cidadania saa).
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  • Jemusse Abel Profundo isso... Leio os textos e sempre aprendendo...
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  • Bernardo Gonçalves Miguel André Li há já alguns anos uma obra sobre o China ( de um autor francês, o título,se bem me lembro é " O grande Bluff Chinês"). O autor faz referência de que os chineses têm hábito de comprar a tecnologia mais avançada do ocidente só para estudar como funciona e puderem produzir localmente tais artefactos. Na livro há o exemplo de um avião da Boeing que custou muitos milhões de dólares ao governo chinês, mas que, para espanto dos vendedores, nunca levantou voo. O chineses desmontaram o avião por completo e produziram uma réplica muito mais eficiente. 
    Acho que esta reflexão tem alguma relação com isto.
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    • Elisio Macamo Bernardo Gonçalves Miguel André, tem até certo ponto. a ideia é de que a aplicação prática em si não é suficiente. é preciso também saber como se chega lá e que lógica está por detrás. na política também é assim. todo o combate a alguma coisa (fome, pobreza, corrupção, prostituição infantil”...) promove alguma coisa que viabiliza a sociedade e protege-a desses males. só faz sentido participar no debate sobre política se você tiver ideia desse mecanismo.
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  • Gaspar Micolo "Nenhum esclarecimento foi dado até hoje para explicar porque os países pobres são pobres e os países ricos são ricos", Paul Samuelson (1976), citado por David S. Landes, em "A Riqueza e a Pobreza das Nações". Penso que os países (em "transformação", como lhes chama o economista camaronês Martial Ze Belinga) devem olhar os seus problemas por via de estudos endógenos. E procurar os seus esclarecimentos. Cada país deve ter a sua resposta.
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    • Elisio Macamo Gaspar Micolo, já foram dados muitos esclarecimentos. o mais clássico entre nós é o de walter rodney que mostra como a áfrica foi activamente “sub-desenvolvida”. a gente pode tirar uma e outra vírgula, mas o argumento continua a fazer sentido. a questão agora é como, apesar disso, avançar. aí não sabemos. as teses de gente como landes, robinson, acemoglu são circulares. os países ricos são ricos porque são ricos....
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    • Gaspar Micolo Percebi. Obrigado. Vou procurar por esse Walter Rodney.

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