Iémen. Quem ‘alimenta’ a guerra no país com mais fome (e doenças) no mundo /premium
04 Julho 2019380
O Iémen já era o país mais pobre do mundo árabe — e, quatro anos de guerra depois, vive a maior crise humanitária do mundo. Além das bombas, doenças como a cólera matam a um ritmo imperdoável.
Há muito tempo que o Iémen não é um país de vida fácil. Historicamente dividido entre Norte e Sul que se habituou a viver entre o conflito de um lado e do outro, pouco sobra a invejar do seu historial. Já era o país mais pobre de todo o mundo árabe, onde 95% dos produtos consumidos tinham de ser importados, incluindo comida, contribuindo para que ainda antes da guerra quase metade das crianças fossem subnutridas. A juntar a isso, várias previsões apontam para que a capital, Sanaa, onde viviam 2 milhões de pessoas antes da guerra, será a primeira cidade do mundo a viver sem água. E fora das grandes cidades a realidade já tinha contornos de insustentabilidade governativa, com tribos armadas e até grupos terroristas como a Al Qaeda a substituírem-se ao governo.
Agora, imagine o que acrescentou a tudo isto uma guerra de quatro anos.
O que a guerra entre houthis e a Arábia Saudita fez ao Iémen foi afundá-lo ainda mais, levando aquele país que é em todas as medidas um Estado-falhado para uma situação para lá do colapso.
De acordo com as Nações Unidas, o Iémen tem hoje a maior crise humanitária de todo o mundo. Ainda mais do que na Síria, ali há 22 milhões de pessoas a precisar de ajuda humanitária — o que representa mais de 75% da população total. Mais de metade da população não tem acesso a cuidados de saúde (56%) e a água (55%), além de que 8.4 milhões de pessoas não têm a refeição seguinte assegurada — o que leva ao chocante número de 400 mil crianças subnutridas. Para lá de tudo isto, já terão morrido quase 100 mil pessoas desde que a guerra começou.
“O Iémen tem um grande problema de falta de água, mas este ano a época das chuvas chegou muito cedo. Então, tivemos muita água este ano. E isto até podia ser bom, mas na verdade é péssimo, porque essa água o que fez foi arrastar todos os dejetos e lixos desde as montanhas até às cidades e aldeias.”
Frédéric Pelat, chefe de missão dos Médicos Sem Fronteiras no Iémen
No meio de todos estes dados, há ainda outro que assombra a vida de vários iemenitas: a cólera. Sem facilidade de acesso a água potável e com uma rede de saneamento deficiente, são muitos os que se deixam apanhar por esta doença contraída pelo contacto direto com matéria fecal ou os seus micróbios. Basta beber água ou comer algo que esteja contaminado para correr perigo de vida. E isso, no Iémen, é cada vez mais comum.
“O Iémen tem um grande problema de falta de água, mas este ano a época das chuvas chegou muito cedo. Então, tivemos muita água este ano. E isto até podia ser bom, mas na verdade é péssimo, porque essa água o que fez foi arrastar todos os dejetos e lixos desde as montanhas até às cidades e aldeias”, diz ao Observador Frédéric Pelat, o chefe de missão dos Médicos Sem Fronteiras no Iémen, ao telefone.
Entre abril de 2017 e outubro de 2018, o Ministério de Saúde Pública do Iémen já tinha registado 1,2 milhões de casos de cólera, que levaram a pelo menos 2556 mortes. Em 2019, apontam os Médicos Sem Fronteiras, a situação está longe de melhorar. Só nas instalações daquela ONG, passaram cerca de 10 mil casos nos primeiros quatro meses do ano.
Estes, porém, são apenas os casos que ali chegam. Frédéric Pelat lamenta que possam ser muitos mais aqueles que ficam para trás, nas aldeias, onde antes da guerra vivia cerca de 75% da população, por falta de dinheiro para o combustível, cujos preços mais do que triplicaram desde o início do conflito.
“A maior parte das pessoas sabe que está doente mas espera vários dias antes de decidirem vir para os nossos centros”, diz o chefe de missão dos Médicos Sem Fronteiras. “Nesse tempo, têm de pedir dinheiro à família e aos vizinhos, porque uma viagem das aldeias até às cidades custa à volta de 100 dólares. No Iémen, isso é um balúrdio. E depois há a viagem, que são poucas dezenas de quilómetros, mas por causa do mau estado das estradas demora à volta de duas horas.” Muitos dos que conseguem chegar e ser tratados, acabam por ficar em Sanaa ou noutras cidades. Falta-lhes o dinheiro para voltar.
“A maior parte das pessoas sabe que está doente mas espera vários dias antes de decidirem vir para os nossos centros. Nesse tempo, têm de pedir dinheiro à família e aos vizinhos, porque uma viagem das aldeias até às cidades custa à volta de 100 dólares. No Iémen, isso é um balúrdio."
Frédéric Pelat, chefe de missão dos Médicos Sem Fronteiras no Iémen
Conseguir água no Iémen está longe de ser uma questão de sorte ou persistência — é também já uma questão monetária. Para as muitas pessoas que não têm acesso a um poço, a única oportunidade de conseguirem água é a de fazerem filas com bidons e garrafões nos camiões cisterna que circulam pelas cidades. “Mas os preços não são para todos”, atalha Frédéric Pelat. “A água é extremamente cara. Não é que a água em si o seja, porque de acordo com as regras do Islão não se pode cobrar por água. Mas é preciso pagar o transporte, que está muito caro por causa do combustível, o preço fica demasiado alto.”
Um país bloqueado numa guerra sem fim à vista
Arrumada para um canto da Península Arábica, a guerra do Iémen parece ser um conflito da qual ninguém quer saber. Ninguém a não ser, claro, as três grandes potências que ali travam uma guerra por procuração naquele país: a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos de um lado e, do outro, o Irão.
Tudo rebentou com a Primavera Árabe, mas a pólvora já estava a ser amontoada há muito tempo. Em 1990, e após décadas de guerra civil, o sunita Ali Abdullah Saleh conseguiu unir o Iémen do Sul com o Iémen do Norte. Seguiu-se um período de relativa estabilidade — ou, melhor dito, a estabilidade possível num país como o Iémen. Até porque, em 2004, os rebeldes houthis (milícias da seita Zaidi, mais próxima do xiismo) voltaram ao ataque para tentar derrubar o regime.
Há três grandes potências envolvidas na guerra do Iémen. De um lado, está a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos, que apoiam o governo do Iémen. Do outro, estão os rebeldes houthis, que recebem apoio do Irão.
Porém, o maior abanão a Ali Abdullah Saleh foi mesmo em 2011, com a Primavera Árabe. Perante uma vaga de protestos ímpar naquele país, este renunciou ao poder e cedeu o lugar ao seu número dois, Abd Rabbu Mansour Hadi. Mas por pouco tempo: em setembro de 2014, depois de três anos depois fora do poder, Ali Abdullah Saleh juntou-se aos seus inimigos de sempre — os houthis — e lançou uma ofensiva contra o seu antigo número dois para o retirar do poder.
É aqui que entram as potências que até hoje contribuem para a tragédia do Iémen. A Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos saíram em apoio ao exército oficial e passaram, desde então a fazer bombardeamentos aéreos nas zonas ocupadas pelos houthis, como é o caso da capital, Sanaa. Já os houthis, além de serem uma força militar com raízes estabelecidas no Iémen, são também suspeitos de receberem ajuda monetária e militar do Irão. O regime de Teerão sempre negou ter quaisquer ligações aos houthis, mas o facto é que em fevereiro de 2018 o Irão foi alvo de uma resolução do Conselho de Segurança da ONU que acusava aquele país de quebrar o embargo à venda de armas a grupos do Iémen.
Entre aquelas três potências, o Iémen tem servido de ponto nevrálgico de um conflito onde todos procuram assegurar os seus interesses.
Da parte da Arábia Saudita, interessa ter no Iémen, com quem faz fronteira a Sul, um vizinho estável e sem xiitas instalados no poder. Quanto aos Emirados Árabes Unidos, interessa não só um país sem xiitas no governo como também o regresso aos tempos em que havia um Iémen do Norte e o Iémen do Sul — sendo que, nesse caso, este último poderia servir de importante centro para as aspirações militares e comerciais dos emirados. Já no que toca ao Irão, a guerra do Iémen tem sido uma maneira low-cost de desestabilizar a Península Arábica e, dessa forma, pressionar o seu maior rival geoestratégico, a Arábia Saudita.
Mas não é só na região que há interesses nesta guerra. Também a administração de Donald Trump está empenhada em enviar armas para a Arábia Saudita — um tema controverso desde que, em agosto de 2018, se soube que o míssil disparado pela Arábia Saudita que matou 51 pessoas, entre as quais 40 crianças, foi vendido ao regime de Riade pelos EUA —, apesar de no Congresso haver um esforço que junta republicanos e democratas para banir essas vendas.
Em abril, a Câmara dos Representantes, com 247 votos (onde se contam todos os democratas mais 16 republicanos) e 176 contra aprovou, o War Powers Act, um instrumento legal raramente usado que permite aos congressistas impedir que os EUA se envolvam numa guerra sem a sua autorização. A esse voto, juntou-se ainda o do Senado, onde os republicanos estão em maioria — mas onde, ainda assim, a mesma medida foi aprovada por 54 votos contra 46.
A partir desse momento, os EUA foram obrigados a suspender a venda de armas ao regime da Arábia Saudita, seu rival na região. Porém, no final de maio, Donald Trump contornou esta decisão ao declarar uma emergência nacional relativa ao Irão — o que permitiu, automaticamente, que os EUA voltassem a vender armas à Arábia Saudita, sob o pretexto de estas serem utilizadas para combater o regime de Teerão.
O cessar-fogo de Estocolmo mal se sentiu no Iémen
Depois de mais de quatro anos deste conflito atado num nó górdio, em dezembro de 2018 surgiram alguns sinais para otimismo. Depois de meses de negociações que envolveram os países do Conselho de Segurança da ONU e também representantes do governo do Iémen e dos houthis, todas as partes chegaram a um acordo que, mesmo estando longe de pôr um fim à guerra, podia aliviar a crise humanitária. Fundamental para isso foi o acordo em torno do fim do bloqueio do porto de Hodeida, sob controlo. Num país que chegou a importar 95% da sua comida, cerca de 70% entrava por ali. Com a guerra, tudo isso passou a ser limitado, bloqueando em grande medida a entrada não só de comida como de medicamentos no país.
Porém, apesar de a entrega daquele porto às Nações Unidas ter sido prometido pelos houthis em dezembro do ano passado, só em maio é que este anunciaram o início da sua retirada daquela cidade costeira. Segundo o acordado em Estocolmo, seria também imposto um cessar-fogo que permitisse a entrada de ajuda humanitária no Iémen.
Porém, se em meados de maio a situação parecia promissora, em junho caiu parece ter caído por terra, quando os houthis atacaram com mísseis o aeroporto de Abha, no sul da Arábia Saudita. O ataque foi justificado por Mohamed Abdul Salam, chefe da equipa de negociações dos houthis, como uma retaliação pela “agressão” da Arábia Saudita no iémen. “É imperativo que o povo do Iémen se defenda”, disse.
Ainda assim, segundo Frédéric Pelat, ainda não há resultados visíveis dessa suposta retirada.
“Nós temos uma equipa em Hodeida, que está a gerir um hospital lá desde setembro do ano passado. E também temos outros hospital a 40 quilómetros de Hodeida. O que posso dizer é que, até agora, não vemos alterações nenhumas”, diz o chefe de missão dos Médicos Sem Fronteiras naquela cidade. “Não há nenhuma mudança palpável desde esse anúncio.”
“Nós temos muitas dificuldades em conseguir que entrem medicamentos e outras coisas no país, há constrangimentos dos dois lados da guerra. Só no aeroporto de Sanaa, às vezes temos de esperar quatro meses para que eles desbloqueiem um carregamento.”
Frédéric Pelat, chefe de missão dos Médicos Sem Fronteiras no Iémen
Porém, Frédéric Pelat sublinha que não é só o bloqueio do porto de Hodeida que está a asfixiar o Iémen — para isso, contribui também em grande parte o facto de o aeroporto de Sanaa. Apesar de estar controlado pelos houthis, o aeroporto da capital do Iémen está a ser alvo de um bloqueio por parte da coligação entre sauditas e os emirados, que controlam grande parte do espaço aéreo do país. Desta forma, são poucos os medicamentos e mantimentos que conseguem ser transportados para Sanaa. E, explica o chefe de missão os Médicos Sem Fronteiras, até para conseguir tirar de lá esse quase nada que lá chega há dificuldades.
“Nós temos muitas dificuldades em conseguir que entrem medicamentos e outras coisas no país, há constrangimentos dos dois lados da guerra. Só no aeroporto de Sanaa, às vezes temos de esperar quatro meses para que eles desbloqueiem um carregamento”, diz. “Quanto a nós, nos Médicos Sem Fronteiras… Nós conseguimos dar a volta. Mas a população não consegue.”
No terreno, é como se tudo continuasse na mesma — isto é, a piorar dia após dia.
A escassez é tamanha que, mesmo em situação de guerra, a maior parte das pessoas que são vistas pelos Médicos Sem Fronteiras não têm ferimentos resultantes de tiros ou de explosões, mas antes de doenças que resultam de subnutrição ou de falta de condições higiénicas ou saneamento. “São tudo coisas que em situações normais seriam facilmente tratáveis”, diz.
Mas o Iémen não é uma situação normal e, por isso, é quase uma missão impossível. As crianças que chegam a conta-gotas aos hospitais estão, muitas delas, subnutridas. Os adultos com sintomas de cólera chegam assustados, porque na aldeia deles alguém já morreu “com aquela doença”. Por ser tão cara a viagem e perigoso o caminho, as grávidas aparecem à frente dos médicos já quase em trabalho de parto ou mesmo já depois de o terem feito, sem condições ou assistência. “Há pessoas que nos chegam ao hospital já a morrer”, diz Frédéric Pelat. “Por isso, não, não me parece que as coisas tenham melhorado por aqui. Até agora, só pioraram.”
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