O artigo que ontem publicámos acerca da libertação Jean-Claude levantou um debate intenso. Nele defendemos que a libertação foi feita à margem da lei e que, apesar de o Estado angolano ter recuperado milhares de milhões de dólares, o combate à corrupção saiu derrotado, porque, mais uma vez, a lei não foi respeitada e o criminoso não vai ser julgado. Muitos se opõem ao nosso ponto de vista, defendendo que a lei prevê a extinção de procedimento penal em caso de devolução dos valores roubados ou que o importante é que o Estado angolano tenha recuperado o dinheiro. A uns e a outros respondemos aqui.
por PAULO ZUA
por PAULO ZUA
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O artigo que ontem publicámos acerca da libertação Jean-Claude Bastos de Morais levantou um debate muito intenso.
Que se tenha gerado uma tal discussão entre a comunidade jurídica e a sociedade civil angolanas só pode ser bem-vindo: trata-se, acima de tudo, de um sinal de que o poder político se tornou sindicável em Angola. A apatia e o medo começam a desaparecer e a ser combatidos.
No texto que deu origem à celeuma, defendemos que a libertação de Jean-Claude foi feita à margem da lei e que, apesar de o Estado angolano ter conseguido recuperar milhares de milhões de dólares que lhe tinham sido roubados por Jean-Claude, o processo de combate à corrupção saiu derrotado, porque, mais uma vez, a lei não foi respeitada e o criminoso não vai ser julgado.
Várias vozes se opuseram ao nosso ponto de vista, invocando diferentes argumentos, dos quais destacamos os seguintes:
Os efeitos do artigo 57.º da Lei n.º 3/14, de 10 de Fevereiro, com epígrafe “Restituição ou reparação de crimes de furto ou abuso de confiança”;
O peso da decisão do Tribunal Superior de Londres de Julho de 2018 e os factos referentes à assinatura de contratos entre o Fundo Soberano e Jean-Claude Bastos de Morais;
A dicotomia moral entre cadeia e recuperação do dinheiro.
Comecemos pelo primeiro argumento. Há quem considere que o artigo 57.º da Lei n.º 3/14 de 10 de Fevereiro permite a extinção do procedimento criminal em relação a Jean-Claude Bastos de Morais. Determina o n.º 1 desse artigo 57.º que sejam extintos os procedimentos criminais para os casos previstos nos artigos 421.º a 425.º e 453.º do Código Penal, desde que tenha havido “restituição da coisa furtada ou ilegalmente apropriada”. Esta norma apenas diz respeito a dois crimes específicos – furto e abuso de confiança – e não expressa referência a qualquer outro tipo de crime. Poderia existir outra legislação extravagante (ou seja, fora das codificações principais) onde o artigo 57.º fosse estendido a outros tipos de crime, porém não encontramos semelhante legislação em Angola.
Assim, os dois únicos crimes específicos onde a restituição de bens e valores gera extinção do procedimento criminal são o furto e o abuso de confiança. Note-se que a norma não inclui sequer o furto qualificado, previsto e punível no artigo 426.º do Código Penal, nem o roubo, punível pelo artigo 432.º do mesmo Código. A lei é clara ao restringir o benefício da extinção a crimes específicos e concretos.
A verdade é que, no direito criminal, o princípio da legalidade implica respeitar a “definição do crime” realizada pelo legislador, e o legislador “define o crime” através da utilização de palavras, então, daqui resulta lógico que esse respeito implica a obediência às palavras utilizadas nessa mesma definição, donde se conclui que o artigo 57.º apenas e estritamente se aplica a crimes de furto e abuso de confiança.
Aliás, basta ler o artigo 60.º da Lei n.º 34/11, de 12 de Dezembro, sobre o combate ao branqueamento de capitais para se perceber a existência de diferentes regimes. Na realidade, no que tange ao crime de branqueamento, a lei expressamente estabelece que, quando houver lugar a reparação integral, a pena aplicada será especialmente atenuada (artigo 60.º, n.º 9 da Lei n.º 34/11) mas não será extinto o procedimento criminal.
Ora, quanto a Jean-Claude, segundo se entende através da leitura do acórdão formalmente publicado pelo Tribunal Supremo, que o manteve em prisão preventiva, datado de 14 de Dezembro de 2018, as suspeitas que sobre ele incidiam configuravam os crimes de associação criminosa, recebimento indevido de vantagem, corrupção, participação económica em negócio, peculato e burla, pelo menos. Nalgumas destas situações, poderia, findo o julgamento, existir dispensa de pena, mas não conseguimos identificar, em nenhum dos crimes imputados a Jean-Claude, a possibilidade de imediata extinção de procedimento criminal, a não ser por arquivamento por falta de provas… o que seria bizarro, depois de o terem mantido preso durante seis meses…
Em resumo, com o devido respeito para com os que o avançaram, o primeiro argumento não colhe.
O segundo argumento, como referimos, liga-se ao peso da decisão do Tribunal Superior de Londres de Julho de 2018 e aos factos referentes à assinatura de contratos entre o Fundo Soberano de Angola e Jean-Claude Bastos de Morais. Este argumento é simples e forte.
Um tribunal em Londres decidiu, em Julho de 2018, que Jean-Claude não tinha agido ilegalmente nas suas actividades com o Fundo Soberano de Angola, porque estava estribado em contratos legitimamente assinados e validados. Assim, o problema não seria dele, mas quando muito de quem assinara os contratos por parte do Estado. Este argumento, embora respaldado na célebre jurisprudência inglesa, não tem muito relevo para a extinção do processo criminal em Angola. Em primeiro lugar, quando, em finais de Setembro de 2018, decidiu prender Jean-Claude, o Ministério Público já conhecia há dois meses a decisão britânica e certamente ponderou-a, antes de decretar a prisão de Jean-Claude. Não pode vir invocá-la seis meses depois! A isto acresce que não conhecemos os factos concretos que eram imputados a Bastos de Morais, alguns poderiam estar ligados à decisão inglesa, outros não. Possivelmente, haveria mais factos além dos constantes no processo britânico. Finalmente, uma decisão cível não é uma decisão criminal. Podemos ter um contrato assinado e válido civilmente, mas depois de uma investigação criminal descobrir que para a assinatura desse contrato foram usados meios astuciosos e enganosos que levaram a que tal acontecesse. Uma investigação poderia ter concluído que José Filomeno dos Santos e Jean-Claude se tinham conluiado para fazer documentos válidos e defraudar o Estado. Obviamente, essa possibilidade era real, e esvaziaria de conteúdo a decisão britânica, que se limitou a ler um contrato, a aferir que as assinaturas eram verdadeiras e a constatar o que lá estava escrito.
Em suma, este argumento sobre o tribunal de Londres é ultrapassável.
O último argumento a que estivemos atentos sai da esfera do Direito e entra na Política e na Moral. Várias pessoas afirmaram que João Lourenço esteve bem porque seguiu uma razão de Estado fundamental: recuperar o dinheiro. E vale mais recuperar o dinheiro do que ter Jean-Claude na cadeia, sendo que se esse era o preço a pagar para reaver 3 mil milhões – libertar um homem – foi bem pago.
Este argumento é poderoso e merece ser ponderado, até porque a liberdade deve-se sempre sobrepor-se à prisão. Todavia, no presente contexto angolano, é um argumento muito frágil. O magistério de João Lourenço tem assentado num chamamento acima de tudo moral e político: melhorar o que está bem, corrigir o que está mal. Bem e mal são os supremos valores morais. Contudo, com a libertação de Jean-Claude, a mensagem passada não foi de bem, mas sim que os fins justificam os meios e que Angola continua a não privilegiar as regras e o direito. Vale a pena “roubar”: se formos apanhados, devolvemos o dinheiro e ficamos livre; se não formos apanhados, ficamos com o dinheiro e em liberdade. É esta a moralidade que, no final de contas, fica estabelecida.
O que estava em jogo era a criação de um Estado com regras iguais para todos, em que cada cidadão pudesse usufruir de uma sociedade livre, igual e pacífica. Não nos interessa a antinomia entre dinheiro e cadeia, mas sim o estabelecimento de uma comunidade política com procedimentos justos.
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