Uma das coisas que rouba «cientificidade» às ciências sociais é a dificuldade que têm de abordar coisas que não existem sem ao mesmo tempo conferir existência a essas coisas. É um paradoxo muito complicado. Existe o famoso teorema de Thomas da autoria dum casal americano de sociólogos, segundo o qual se as pessoas acreditam que certas situações são reais elas são reais nas suas consequências. É uma solução, mas se é a melhor não sei. Como é que um agnóstico, por exemplo, pode participar numa discussão sobre a existência de Deus sem implicitamente aceitar o que contesta? Já a própria ideia de “agnóstico” coloca-o numa situação logicamente difícil, pois ela se define pela relação que a pessoa tem com essa coisa cuja existência ele põe em causa.
Estes pensamentos vieram-me à cabeça a propósito dos recentes incidentes em Charlottesville nos EUA. O que chamou a minha atenção não foi a manifestação em si, mas a discussão em seu torno, sobretudo a exigência de alguns para que esses indivíduos sejam chamados de racistas. Volto a confessar a dificuldade que tenho com este termo, isto é com “racismo”, e sua utilidade para as ciências sociais. O caso de Charlottesville ajuda-me a perceber melhor as minhas próprias reticências. Têm a ver com o desafio de falar sobre coisas que não existem. Parece ponto assente que “raça” é algo que biologicamente não faz sentido pelo menos quando aplicado à espécie humana. Aliás, não existe. Existe pigmentação diferente, mas ela não produz diferenças biológicas e cognitivas essenciais que poderiam servir para isolar a espécie humana em compartimentos “raciais”.
Agora, o facto de “raças” não existirem biologicamente não impede que a espécie humana faça uso dessa ilusão para imaginar diferenças essenciais e, pior ainda, para tratar certos grupos de forma diferente, violenta e injusta. Racismo, então, seria a crença na realidade dessas diferenças essenciais como licença para se ser violento e injusto. Quando essa crença se manifesta em forma de solidariedade intrínseca entre os que são vítimas da injustiça dos outros a nossa tendência é de achar que este tipo de racismo não seja realmente racismo. Mas o problema está aí mesmo. Em princípio, nada impede que essa crença solidária se transforme na crença agressiva que todos nós condenamos se as condições estiverem reunidas. Há algo de irracional nisto, algo pelo qual eu próprio passo quando numa multidão “multi-racial” sinto simpatia imediata pelos que têm a minha pigmentação. Só depois de descobrir que esse outro “negro” é adepto do Madrid, Benfica ou Manchester (ou que é economista ou combatente contra a corrupção...) é que a hostilidade nasce e me solidarizo com “brancos” que partilham as minhas paixões.
Mas o essencial é que a partir do momento em que aceito o “racismo” como categoria conceitual viável vejo-me obrigado tacitamente a aceitar a existência da “raça”, mesmo que saiba que ela não existe. O “racismo” produz a “raça” e a forma como combatemos o “racismo” consolida a existência da “raça”. Este é que é o paradoxo sobre o qual falava na abertura do texto. Insistir no “racismo” como descrição do que os auto-intitulados “suprematistas brancos” fazem e acreditam parece-me contraproducente, pois confirma a existência daquilo que rejeitamos e confere, até certo ponto, legitimidade ao que em seu nome se faz. Eu acho que do ponto de vista das ciências sociais podíamos fazer melhor do que isto, só que o argumento não é apenas metodológico. É também político.
É metodológico quando interiorizamos que a possibilidade de falar de algo que não existe é função da nossa capacidade de explicarmos o que é verdade nessas coisas. Quando um agnóstico diz que Deus não existe está a dizer que aquilo cuja existência os crentes reclamam não existe. No mesmo diapasão, portanto, quando eu descrevo uma atitude ou uma acção como sendo “racista” não estou a admitir a existência da “raça”, mas sim a rejeitar o conteúdo da crença que legitima a acção ou atitude em questão. Esta é, digamos, a solução mínima para este paradoxo. Em condições normais, na verdade, o único que precisaríamos para dissuadir um “racista” seria mostrar com casos concretos que, por exemplo, há “negros” inteligentes ou seja o que for que é negado a esse “grupo racial”. Contudo, sabemos também que pessoas ideologicamente motivadas dificilmente aceitam factos que estejam em contradição com as suas crenças.
Mas se for esse o caso, então torna-se evidente que o problema é outro. Não é o “racismo”. E também não é apenas dissonância cognitiva. É rejeição de algo bem maior que nos EUA, para voltar ao caso de Charlottesville, está resumido na sua constituição: a dignidade humana. A gente pode naturalmente insistir que o “racismo” rejeita a dignidade humana, mas é como se estivéssemos a dizer que se não fosse por causa do “racismo” essas pessoas defenderiam e protegeriam a dignidade humana. Duvido. Você precisa de não respeitar a dignidade humana para ver no “racismo” uma opção ideológica viável. E você pode ser “anti-racista” e mesmo assim ser contra a dignidade humana. O que quero dizer é simples: não me parece útil combater o “racismo” usando o aparato conceitual do “racismo”. O combate mais eficaz, quer me parecer, é aquele que identifica algo bem maior e concentra a sua atenção nele.
Recentemente, interpelei Chandra Talpadi Mohanty, uma intelectual indiana, nestes termos mesmo. Numa palestra pública que ela deu na minha universidade sobre o assunto da migração na Europa e nos EUA ela falava da “extrema-direita”, das “minorias raciais”, etc. Perguntei-lhe porque insistia nesse tipo de terminologia e não falava da “extrema-direita” como os inimigos dos valores da democracia liberal e das “minorias raciais” como as vítimas dos inimigos dos valores da democracia liberal. Não chegamos a nenhum acordo porque ela insistia que era importante chamar as coisas pelos seus próprios nomes, o que até pode ser verdade, mas politicamente imprudente e talvez até contraproducente.
Eu posso não ser fã do barbudo alemão do Marx – até porque sou fã da sua escrita, só não sou fã da maioria dos seus seguidores – mas a sua identificação do proletariado com a força histórica que iria verdadeiramente emancipar o mundo é dum valor eticamente incalculável. Não me refiro à imbecilidade da ditadura do proletariado que serviu para justificar regimes totalitários. Refiro-me à capacidade de identificar no próprio sofrimento a violação de princípios mais abrangentes em nome dos quais se deve procurar transformar a sociedade. Só que o problema que um bom número de “anti-racistas” têm é que não acreditam assim tanto na democracia liberal. São iguais ao Trump. A única diferença é que Trump é “racista”...
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