Por: Barnabé Lucas Ncomo
“Os homens eminentes têm
a terra por túmulo. (...) Invejai, pois, a sua sorte, e dizei a vós próprios
que a liberdade se confunde com a felicidade, e a coragem com a liberdade. E
não olheis com desdém os perigos da guerra (...), pois para um homem pleno de
brio, a vergonha causada pela cobardia é bem mais dolorosa do que a morte que
se enfrenta com coragem, animada por uma esperança comum”.
-Péricles-
Comemorou-se no passado dia 17 de Outubro mais um
aniversário do passamento físico de um homem. Passaram então 26 anos desde o
dia em que André Matsangaíce, bandido para uns, herói nacional para outros, de
pés firmes na terra que o viu nascer, caía em combate por uma causa.
Passados que são estes 26 anos, à nós, nada nos resta
senão “ensinar” aos homens de amanhã:
Na história da humanidade jamais existiu bandido
ou terrorrista algum que vergou um regime político de um estado soberano.
Existiram, sim, homens munidos de ideais políticos, que lutaram contra alguns
regimes políticos até a queda destes. É que, longe de ser um atributo
político, o conceito de bandido ou terrorista é sempre uma atribuição
política.
A curta trajectória política
de André Matsangaíce está ainda por escrever. Tem a particularidade de ser uma
trajectória singular na história política da humanidade inteira, apenas
comparável ao heroismo de alguns filmes de Hollywood. Longe de ser verdade o
que se diz em torno deste homem, contra todos os que no início não acreditaram
no seu plano, André Mathadi Matsangaíce Dyuwayo, de seu nome completo, poderá
ter sido dos poucos homens que, apostado em combater um sistema político então
vigente no seus país, pretendeu (re)iniciar uma verdadeira guerra de armas
completamente sozinho, contando apenas com a sua coragem e uma pistola do
género daquelas que os assaltantes de carros usam para amedrontarem as suas
vítimas. A estratégia, inicialmente concebida na sequência de uma mágoa pessoal
(e mais tarde tendo em conta o desespero dos demais no mesmo espaço social),
consistia em libertar os prisioneiros do Centro de Reeducação de Sacuze na
Gorongosa; treiná-los militarmente, por forma a que se constituísse, assim, o
primero embrião de um novo exército guerrilheiro que fizesse frente ao
totalitarismo político então instalado no país.
De início, embora o plano
não tenha logrado sucessos naquele Dezembro de 1976, a sua ousadia não deixou de ilustrar a sua
bravura. Estava (re)instalada nele a semente de luta. Seus actos subsequentes
demonstrariam a dimensão de homem que ele era. É que, embora funcionando em
regime de prisão aberta, tal como outros Centros prisionais em Moçambique,
jamais Sacuze deixou de ter condições logísticas precárias e de absoluto
desprezo pela legalidade e pelos direitos humanos, mesmo segundo o crivo do
governo do dia. Daí a intenção de Matsangaice de pôr fim a tal estado de
coisas, libertando-se a si e aos seus companheiros de infortúnio.
Face
ao malogro de uma outra tentativa (em Janeiro de 1977) de libertar os detidos
daquele Centro prisional, desta feita empreendida por uma unidade de
ex-militares do exército português e alguns ex-combatentes da FRELIMO[1],
sob comando de Pedro Marangoni, Matsangaíce voltaria à carga, desta vez com
sucesso, a 6 de Maio de 1977, na companhia de apenas duas pessoas, Manuel
Mutambara e Marcos Amade (ambos ex-combatentes da luta de libertação nacional
nas fileiras da FRELIMO).
A
pergunta que qualquer alma atenta faria perante isto é: o que movia um homem,
inicialmente só, e depois acompanhado apenas de outros dois, a fazer frente a
uma “instituição de um Estado soberano”? O simples saciar de uma vontade
animalesca? Um simples acto de banditismo? Pois, uma vez fugido de Sacuze, porque
é que Matsangaíce não se embrenhou na procura de exílio e paz na terra que o
acolheu?
As
respostas a estas perguntas poderão ser matéria de reflexão individual de cada
um, e as conclusões que cada um tirar também pouco importariam para esta
reflexão. O que nos importa dizer é que, naquele dia 6 de Maio, a despeito de,
durante a confusão que Matsangaice instalou naquele Centro um dos prisioneiros
ter sido atingido mortalmente pela guarda prisional, desbaratadas que foram
pelos três homens as forças de segurança daquele Centro, mais de meia centena
de detidos marchariam de livre e espontânea vontade com Matsangaice em direcção
à fronteira rodesiana. Durante a retirada, frente aos amedrontados guardas em
debandada, em jeito de aviso, Matsangaíce ainda se pôs a gritar em sua
direcção: “ai daquele que tentar perseguir-me!”.
No
penoso percurso de 150 quilometros que separa Gorongosa de Odzi (na então
Rodésia, hoje Zimbabwe), juntar-se-lhes-ia ainda Oliver Matsangaíce (irmão de
André), pois lembrou-se, o homem, que ainda tinha mãe em Chirara e devia por lá
passar (com a sua coluna) para visitá-la e matar saudades.
E a despeito de pouco antes da travessia da
fronteira entre Moçambique e a Rodésia, Matsangaice e a sua coluna ter
igualmente deparado com uma unidade das forças do ZIPA, do que resultou a fuga e o aprisionamento de alguns
dos detidos de Sacuze[2], ao pôr do sol do dia 7 de Maio, de corpo amassado pelo
cansaço, pela fome e por uma díficil caminhada, Matsangaíce e a coluna de
homens que encabeçava atravessava então a fronteira rumo a Odzi.
Mas,
quem foi este homem que virou lenda viva no seio dos moçambicanos do Rovuma ao
Maputo?
Matsangaíce foi uma das gotas-de-água mais
visíveis num oceano prenhe de dores. O seu nome soou como um tambor em todo o
espaço geográfico de Moçambique, sulcou mares e atravessou montanhas, num grito
colectivo de milhares de almas unidas por uma esperança comum. Terá sido dos
poucos revolucionários no mundo cujo nome se confundiu com todo um movimento
humano. E matsangas ficaram todos os que o seguiram de arma em punho ou
no espírito. Ficou lenda viva.
Contrariamente ao que o poder político em Moçambique
propalou a respeito deste homem, aliando-o às forças racistas rodesianas na
concepção da estratégia de luta contra o totalitarismo político em Moçambique,
Matsangaíce provinha das fileiras da própria FRELIMO. Terá apenas sabido pôr em
prática a estratégia militar guerrilheira adquirida naquele movimento. Nascido
em 1950 em Chirara, na província de Manica, Matsangaíce juntou-se à FRELIMO em
1970, tendo feito os treinos militares em Nachingwea, na Tanzania. Era,
portanto, camarada dos “camaradas”, e tanto Samora Machel como muitos outros
naquele movimento conheciam-no bem.
Na vaga da descida guerrilheira para o sul de
Moçambique em 1972/73, Matsangaice é
enviado para o 2º Sector do DD (Departamento de Defesa) em Manica e Sofala, na
época, sob o comando de Fernando Matavele (então conhecido pelo nome de guerra
de Dique Tongane). Conquistada que foi a independência nacional e incumbido de
chefiar a secção de construções na Base do Sector então sob comando dos
senhores Johan Jehova e Bernardo Mathimba, no distrito do Dondo, em Sofala,
Matsangaíce acabaria prisioneiro no campo de reeducação de Sacuze em Setembro
de 1975, na sequência de um imbróglio envolvendo desvios de materiais de
construção então sob sua responsabilidade. Segundo relatos da época, o
infortunado homem terá sido apenas uma vítima visando salvar a “honra do
convento”, pois três casas de três destacados quadros séniores do exército
(então em Maputo e muito próximos ao poder central na Ponta Vermelha), estavam
sendo erguidas na vila do Dondo com base em materiais desviados do quartel de
engenharia militar na cidade da Beira.
Evadido
do Centro de Reeducação de Sacuze em Outubro de 1976, Matsangaíce dirigiu-se à
Rodésia, país que conhecia desde os tempos de escola, em virtude de seu pai ter
aí vivido longos anos. Ia apostado em pedir apoio para uma luta séria contra o
regime da FRELIMO em Moçambique, pois para além da dor pessoal de ter sido
detido de forma injusta, Sacuze viria a ser, a seus olhos, a prova viva da
injustiça social instalada no país. Centenas de cidadãos estavam naquele Centro
prisional sem culpa formada, a maioria dos quais por futilidades. Era preciso
então ir à luta, pois se a liberdade de um povo alguma vez se confundiu
com detenções sem culpa formada; se a independência de um povo alguma vez
significou “aturar” impotentemente os caprichos dos mandantes, estava mais que
provado que a liberdade dos outros homens no país estava ainda por conquistar.
Matsangaíce apercebe-se então da pesada missão que o esperava.
Chega a Ródesia numa altura em que já existia a
chamada Voz da África Livre[3],
uma emissora clandestina que difundia para Moçambique, na esperança de
consciencializar os militares e o povo a revoltarem-se contra a conduta do
regime moçambicano. Na época, existiam ainda naquele país algumas forças
residuais de um exército português vencido em gabinetes de conversações em
Lusaka e outros bastidores diplomáticos. Com a excepção de uns poucos, muitos
destes viviam de blufs nos cafés de Salisbúria na esperança de reporem o
respeito pela vida humana na terra perdida. Era só muita bravata e pouca acção.
Nunca se passou disso. Incapaz de encontrar homens que imprimissem uma dinâmica
nas aspirações dos verdadeiros oprimidos na então “terra liberta”,
imediatamente após a sua chegada em Outubro de 1976, Matsangaice entra em rota
de colisão com muitos. Afirma com convicção, porque conhecia o inimigo a
combater, que o que pretendia naquele momento era apenas apoio em treinamento e
equipamento militar de moçambicanos para constituir um novo movimento
guerrilheiro em Moçambique. Homens, para a sua empresa, iria, ele próprio,
trazê-los de Moçambique. Matsangaíce é citando como tendo afirmado que se devia
pôr de parte a ideia de que se iria demover a FRELIMO das suas posições
autoritárias apenas com propagandas radiofónicas, como o fazia a Voz da
África Livre, e blufs nos cafés, como o faziam outros. Embora fosse
uma poderosíssima arma para a consciencialização das pessoas, à propaganda
radiofónica que se fazia – entendia Matsangaice – tinha que se aliar uma
pressão guerrilheira capaz de impôr-se em Moçambique, pois só assim é que seria
possível mudar o quadro social e político no país.
Poucos acreditaram
nele. Poucos acreditaram na possibilidade de encontrar-se em Moçambique um
número razoável de homens dispostos a recomeçar uma guerra de guerrilha. Mas Matsangaíce conhecia as linhas com que se
cozia o regime então instalado em Maputo. Apenas uma luta armada séria iria
ditar as regras do jogo em Moçambique.
Na época, as
autoridades rodesianas tinham um outro programa. Embuídos no seu projecto de um
comando militar sob seu total controlo, apenas para conter as incursões do ZIPA
(Zimbabwe
People’s Army), declinam qualquer apoio ao plano de
Matsangaíce ( que era, igualmente, secundado por homens como Orlando Cristina,
Pedro Marangoni, Rui Silva e poucos mais).
Perante este quadro
sombrio, Matsangaice partiu para a sua guerra por outras vias. Apercebeu-se
então que antes de qualquer apoio material, tanto as autoridades rodesianas
como outros que tinham interesses económicos em Moçambique e amavam o país,
queriam provas de existência de capital humano para a sua empresa. Sabia
Matsangaíce que, longe dos seus objectivos, a CIO (Central Inteligence
Organization) naquele país estava empenhada não em apoiar a criação de um
movimento guerrilheiro genuinamente moçambicano, dirigido por moçambicanos, mas
sim um comando tampão por eles dirigido para conter possíveis incursões dos
nacionalistas zimbabweanos a partir do território moçambicano. Era preciso
então pesar as condições de confrontação e provar a viabilidade do seu
projecto. Mas para isso, era igualmente imperativo não espantar a fera,
pois, uma vez que as autoridades rodesianas descartavam qualquer hipótese de
patrocinar a constituição de um movimento guerrilheiro genuinamente
moçambicano, qualquer tentativa de contrariar frontalmente aquela intenção
atiraria por água abaixo todo um futuro de ver moçambicanos de armas na mão
contra a FRELIMO. O importante, naquelas condições, era jogar a cartada no
sentido de driblar tudo e todos. E Matsangaíce fê-lo com destreza, pois uma vez
que os homens por si idealizados estariam instalados definitivamente na terra a
libertar, sabia que poderia abrir e fechar as portas da Rodésia a hora que
quisesse, prescindir do campo de treino de Odzi e imprimir uma dinâmica no
teatro das operações em Moçambique, de forma a que não só não lhe faltassem armas
e munições, que certamente os seus homens arrancariam das próprias forças
governamentais, como também que novos combatentes fossem treinados no próprio
terreno das operações no interior de Moçambique. Se havia alguma coisa com que
se preocupar, longe de ser Smith, CIO ou ZIPA, era com homens como Orlando
Cristina, Jacob Chinhara e Janota Luís que detinham o comando da Voz da
África Livre na Rodésia, pois somente aqueles senhores é que poderiam
tratar da imagem do movimento no seio das populações em Moçambique, e ninguém
mais. A CIO e Ian Smith que se entendessem, eles próprios, com os seus irmãos
do ZIPA.
Orlando Cristina e a
sua equipa na Voz da África Livre terão sido dos poucos que cedo se
aperceberam da viabilidade do raciocínio de Matsangaíce. Tratariam então de ir
entretendo os chefes da CIO e alguns radicais portugueses que, de prantos em
prantos nos cafés de Salisbúria, iam-se afogando em whiskys sem nenhuma
acção de força viável. Garantiriam ainda de assegurar a Voz da África Livre,
impondo nele uma linha editorial favorável ao projecto, pois estava-se numa
luta de sobrevivência num confronto em que estavam em jogo dois interesses
completamente distintos, todos os meios justifificavam os fins. Mas antes,
Matsangaice teria que igualmente provar-lhes a sua capacidade de encontrar
homens em Moçambique dispostos a combater, pois desde sempre Cristina e os seus
colegas naquela centro emissor igualmente vinham acreditando que o simples
apelo à revolta, através daquela emissora, era suficientemente bastante para
que o povo e os militares em Moçambique depusessem Machel e o seu
totalitarismo.
Matsangaíce
empenha-se então:
Sozinho, parte em
Dezembro de Odzi munido apenas de uma pistola em direcção a Gorongosa. Ao todo,
eram 150 quilomentros de terra acidentada e prenhe de feras. O homem já estava
em guerra, mas faria a distância na “paz do combatente”, debaixo de todas as
intempéries, pois era preciso renascer, como diria Marangoni trinta anos mais
tarde. É que “um combatente se sente renascer quando, afastado finalmente de
tudo o que não seja a situação de guerra, caminha através da mata, arma em
punho, cantil na cintura, olhos e ouvidos aguçados. Naqueles momentos ele é
rei, é lei, é vida e é morte. E perto desta, a vida passa a ter mais valor,
mais sabor”.
A proeza não surtiu
efeito. Matsangaice cai de novo nas mãos dos guardas de Sacuze que,
inicialmente, apenas o acusam de ter saido do Centro sem autorização.
Apercebendo-se de que o homen tinha intenções de resgatar os prisioneiros
naquele Centro, como medida gravosa tentam conduzí-lo para a cidade da Beira
(certamente com destino a Niassa). Durante o percurso para aquela cidade,
aproveitando-se de uma distraição dos que o guarneciam, Matsangaice
desenvencilha-se para fugir, atirando-se da ponte do Pungué para o leito deste.
A despeito de todo o esforço dos guardas, foi completamente impossível
recapturá-lo.
Sob todo o perigo
naquele matagal onde serpenteia o Pungué, ferido e só, Matsangaice mantém-se
firme. Rasteja que nem um réptil em fuga de um incêndio na mata. Reza a Deus e
aos seus antepassados que o protejam; até que o breu da noite se instala na
zona. Retoma a posição vertical e reinicia a caminhada em direcção a Rodésia.
Jura para si mesmo que voltaria para aquele Centro de morte lenta. Desta
feita viria munido de uma AK-47 e um autêntico arsenal de granadas
ofensivas. Nem que fosse preciso roubá-las algures por aí, os guardas de Sacuze
não perderiam por esperar, pois feito louco naquele matagal de Gorongosa, iria
mostrar-lhes, à eles, e a Machel, que tal como eles, simples passantes neste
espaço geográfico, também estava em Moçambique por “empréstimo” divino, e não
por favor ou graça de qualquer líder dos novos tempos.
Dias depois, estava
André Matsangaíce recompondo-se nas terras de mbuya Nehanda. Mas não
desiste.
Abortada que foi
então a invasão sob o comando de Marangoni acima aludida, numa missão que se
pretendia de reconhecimento das novas condições no terreno, cinco meses mais
tarde, na companhia de outros dois, Matsangaíce regressa então à Sacuzi para
ajustar contas com “Machel e seus guardas”. O homem levava consigo o arsenal
“prometido”.
O resto é o que está
narrado acima.
Consolidado que
estava o que queria, em menos de um ano, André Mathadi Matsangaíce tinha sob
seu comando cerca de um millhar de novos guerrilheiros em Odzi, pois outros
valentes lhe seguiriam para fazer a história. A partir de Agosto de 1979,
demonstrando as suas capacidades na matéria da concepção de guerra de
guerrilha, para surpresa das próprias autoridades rodesianas, Matsangaice
instala-se com os seus homens definitivamente em Moçambique. O projecto de
comando tampão fica confuso. Matsangaíce pega nos seus homens para a terra a
libertar. Divididos em batalhões de 300, 250 homens, etc., etc., foi
espalhando-os entre Chinete, Mucuti, Mabate, Sitatonga, Muxungue e Chidoco em
Manica e Sofala. A direcção do movimento sob seu comando instala-se, ela
própria, na serra de Gorongosa. A verdadeira guerra recomeça. Emergem frente a
companhias de combate homens como Jone Magurende, Vareia Manje, Afonso
Dhlakama, João Fombe, Lucas Muchanga, Paulo Tobias, Mário Franque e muitos
outros. Muitos se juntariam ao movimento já no terreno das operações.
Matsangaice lançava assim a semente da liberdade que idealizava. Para traz ficava
Odzi e os famosos biltongs (carne seca rodesiana, muito apreciada). Com
o denodado apoio da emissora Voz da Africa Livre, que passou a difundir
os comunicados de guerra da RENAMO e a tratar da imagem do movimento junto das
populações citadinas em Moçambique, a autonomia na concepção da guerra do
movimento começa a solidificar-se. A guerra instala-se no âmago do regime e
de todos no país. Nenhuma estratégia
militar governamental a contém. O país começa a cortar-se aos bocados. Quando
deram por ela, aqueles que entendiam ter forjado André Matsangaíce, tinham
perdido o controle dele. Agora, André Matsangaíce era o rei; era a lei nas
selvas de Moçambique. Longe de ser a barreira que se pretendia para conter os
inimigos de Smith instalados em Moçambique, Matsangaíce tranformava-se numa
outra coisa que, a plenos pulmões, Cristina, Chinhara, Janota e outros na Voz
da África Livre espalham por Moçambique e mundo fora. E o sangue foi
jorrando regando a terra martirizada; e o sangue foi anunciando a hora do
entendimento entre os homens... até que, a 17 de Outubro de 1979, de arma em
riste e em pleno combate, André Mathadi Matsangaice é mortalmente ferido.
Os homens endurecem. Não há
tempo para amar e ser amado, o tempo é de guerra. O desaparecimento fisico do
homem passou despercebido para muitos, inclusivamente para alguns daqueles que
o combatiam. Mas a guerra, esta, não morre com o seu líder. Outro estratega lhe
sucede e intensificam-se os combates. A coisa complica-se. As autoridades do
país não têm mãos a medir. Farto das falsas vitórias forjadas pelos seus
próprios generais (que tudo fazem para merecer a admiração da suprema corte
instalada em Maputo), o detentor do poder na Ponta Vermelha grita por socorro.
Hastea-se nas matas de Moçambique a bandeira do “internacionalismo”:
zimbabweanos, tanzanianos, cubanos e russos entram, deseperadamente, no teatro das operações. O
quadro torna-se sombrio, pois a progressão dos matsangas não era
enganadora. Alguns oficiais do exército tanzaniano começam a reclamar: “afinal,
os senhores chamaram-nos para ajudar-vos a correr com uns bandidos ou para a
guerra? Disseram-nos que era uma coisa de dois tempos. Vocês chamam bandido a
isto? Isto é guerra, senhores. Não existe bandido algum que faz isto”.
De facto, nem a Cosa
Nostra siciliana, nem os barões da droga da Colómbia se assemelhavam
aos bandidos de Moçambique. O problema não era o dinheiro. Estes eram bandidos
especiais, temperados na dor colectiva:
Em Novembro de 1981,
o matsanga Mário Franque e a sua coluna atravessam o Rio Save numa
incontida descida para o sul. Nove meses depois, outro, Abel Tsequete, comanda
uma coluna de dezenas de guerrilheiros que atravessam o rio Zambeze,
instalando-se em Pinda na província Central da Zambézia. Nas matas daquela
província começa a dançar-se ao folclore das AK-47. De Milange, Rocha
Paulino e a sua coluna, deixando para trás um terreno com uma ocupação
consolidada, ruma para Muacanha na província do Niassa. Era a abertura de uma
nova frente de combate. Antes, porém, a partir de Abril, Issufo Momad espalhava
a lenda a partir de Metaveia na província de Nampula. Era a progressão de “andré
mathadi matsanhaice dyuwayo”: consolidada a presença em Niassa, Paulino
atravessa o rio Lúrio para baixo,
entrando em Nampula. Em Maio de 1984, desdobrando-se, volta a atravessar o
mesmo rio para cima, instalando-se em Muikho com os homens sob seu comando.
Cabo Delgado estava alcançado. Enquanto isso, a “dança” nas restantes partes do
país é toda ela macabra; funesta.
A par dos estragos
que a TVM e os jornais estatizados vão monstrando ao sabor da publicidade e
propaganda governamental, em data imprecisa dos fins de 1989, na companhia de
um destacado escritor moçambicano, o autor destas linhas, pela primeira vez na
história da sua vida, vê, dos degraus da escadaria principal da Associação dos
Escritores Moçambicanos em Maputo, um camião militar com a carroçaria apinhada
de cadáveres de militares. Todos bem fardados e inertes. Perante o espanto do
autor, Panguana exclama: “eh, pá! Olha para aquilo! Não podiam ao menos tapar
aqueles infelizes?”.
Era o sinal: André
Mathadi Matsangaice Dyuwayo estava às portas da Capital da República. Numa
incontida descida para o sul, anunciava a sua chegada aos citadinos de Maputo.
Terá sido uma longa caminhada para o homem. Mas chegou.
...
CONCLUSÃO
Como “fim da história”, importa cogitar. Mas cogitar longamente:
Existem duas formas de análise que permitem olhar para
o sentido de um determinado fenómeno político. As duas formas não chegam
necessariamente às mesmas conclusões. A uma, podemos denominá-la de análise
estanque, e a outra, de análise aberta. Enquanto que na análise
estanque (fechada), o público contenta-se e sacia-se com o oficialmente
difundindo e popularmente consumido, na análise aberta, fundada numa
destemida preocupação de confrontar as fontes (e concluir de forma aproximada
ao real vivido) a verdade apresentada na análise estanque ressurge
sempre com outro sentido. Esta última forma tem o condão de pôr meio mundo
pleplexo, pois habituados a consumir o oficialmente traçado, as pessoas são
apanhadas em contrapé.
Para a alegria dos
que nós dividem para reinar-nos, vendemos, nós, à nós próprios, a ideia de que
jamais somos um povo inteligente, capaz de superar no raciocínio e na destreza
um Voster, um Ken Flower ou um Smith por terem sido pessoas cujas riquezas
derivaram da exploração e opressão dos nossos irmãos do Zimbabwe e África do
Sul. Insultamos, nós próprios, a nossa própria inteligência, sustentando a
reducionista ideia de que, junto a um racista, nada mais se pode ser senão um
servente e eterno submisso aos interesses do poder racista. Sustentamos, por
via das nossas próprias bocas, nossos jornais e nossas rádios que somos uma
raça incapaz de idealizar os nossos objectivos e criar meios para atingí-los,
superando, na destreza e nos actos, os outros. Sem darmos por isso, para a
alegria daqueles que nos aldrabam diariamente, pondo-nos em confronto uns
contra os outros, fomos assumindo, perante os olhos destes, que somos inaptos
congénitos, incapazes de sobreviver sem o apoio dos seus “nobres”
aconselhamentos. Todos nós, para a infelicidade dos nossos filhos,
empreendemo-nos nessa pobre tarefa, que se resume na técnica de uns, de nos
dividirem, para reinarem, porque nada explica que jornalistas, académicos,
analistas e toda a espécie de intelectuais do país, não tenhamos visto o que
estava a nossos olhos.
Poucos perceberam, ou
fizeram-se de despercebidos, que no seio dos refugiados idos de Moçambique para
a Rodésia, a partir de 1974, havia um problema que se levantava, e que qualquer
análise do comportamento daqueles, não devia discurar: o jogo de interesses dos
deversos grupos.
Na verdade, havia na
Rodésia um grupo de uma maioria negra e um grupo de uma minoria branca. O grupo
de minoria branca estava, por sua vez, dividido em portugueses assumidos
e moçambicanos de origem portuguesa. Estes dois, dividiam-se em detentores de
capital (tanto financeiro como fixo) e simples empregados. Enquanto que os
brancos da classe média naquele grupo minoritario (os que consideramos
aqui de empregados) se dividiam entre os interesses dos detentores do capital e
os interesses da maioria negra, os detentores de capital deparavam com dois
inimigos a partir daquele país, isto é, a FRELIMO em Moçambique e o ZIPA no
Zimbabwe. Na tentativa de combater os dois inimigos ao mesmo tempo, perderiam
então toda a guerra acabando por desaparecer do xadrez político da zona.
Sobreviveriam então os empregados que se aliaram a maioria negra, pois de mãos
dadas com estes, identificaram o projecto que vingaria. Embora tenham-se
sujeitado aos interesses do capital, Matsangaice e os que o acompanharam no
raciocínio (sejam brancos, amarelos, negros, etc) sobreviveriam porque cedo
descobriram que estavam na Rodésia por causa do totalitarismo da FRELIMO e não
de uma ZANU ou ZAPU. Daí que mesmo sem estar no poder em Moçambique hoje,
atingiram o objectivo principal, isto é, o fim do totalitarismo politico país.
Na verdade, André
Matsangaice tinha mil e uma chances de progredir pessoalmente na Rodésia depois
da sua primeira fuga de Sacuze em Outubro de 1976. Conhecia a terra e o seu
povo, para além de aí ter estudado. Facilmente se inseriria socialmente naquele
país, pois da etnia shona (maioritaria naquele país), também ele era.
Não-o fez. Escolheu a luta. E a sua empresa está aqui, aos olhos de todos, com
outros homens à altura da causa que sempre defendeu. Para a nossa própria
surpresa, chegado que foi a hora da paz, a voz de “andré matsangaice” se
fez ouvir pelo país inteiro. De forma disciplinada, todos os seus seguidores,
num ápice, recolheram as armas aos ombros. Assistimos todos a desmobilização de
centenas de milhares dos seus homens pela UNOMOZ. Vimos jovens esfarrapados e
famintos da etnia tsonga, shona, nhungue, sena, macua,
etc., etc., provenientes dos dois exércitos em intermináveis filas recebendo kits
e dinheiro das mãos dos funcionários daquela organização. Jamais nos foi
exibido filho de Voster, Ken Flower, ou Smith algum. Vimos filhos de
“Chissano”, “Machava”, “Machel”, “Dhlakama”, “Moiane”, “Sithole”, “Muchanga”,
“Nalyambipano” etc., etc., naquelas filas. Não nos foi exibido, boer
ou português algum a ser desmobilizado, partindo das fileiras, nem do movimento
concebido por André Matsangaice, nem do exército governamental. Pelo contrário,
“consolidada” que estava a paz de armas, assistimos ao honrar de tanzanianos
supostamente internacionalistas que morreram na pátria moçambicana em defesa de
coisas que nem sequer sabem. Assistimos famílias zimbabweanas em choros
incontidos por filhos que não mais regressaram a casa. E, mau grado o
maquiavelismo em torno do incipiente processo democrático moçambicano, tudo
indicava que “andré mathadi matsangaice” estava disposto a mostrar ao
mundo que não era um bandoleiro qualquer. Ia cumprir com o preceituado nos
acordos de Roma, entregando outros 15.000 jovems macuas, tsongas,
senas, etc., etc., para a formação do exército único de 30.000 que se
pretendia. E o que é mais estranho é que a despeito de o terem rotulado de
assassino, terrorista, bandido, etc., milhares de pessoas que se dizia serem
suas vítimas votam nos seus seguidores, a ponto de transformar as vitórias de
uns em vitórias suspeitas.
Como é que toda uma camada pensante de um país sente
prazer de se aldrabar a si própria, pactuando durante anos com inverdades,
negando o que está claro a seus olhos?
Este lendário homem, André Matsangaíce, de facto,
morreu. Morreu tão pobre tal e qual como quando se foi juntar à luta de
libertação de Moçambique na Tanzania. Não deixou casa para a sua mulher e
filhos, nem na praia de Bilene, Baía de Ostras ou em Harare. Tal como muitos
outros que morreram pela liberdade dos homens no mundo, a sua maior riqueza se
confunde com a moral política. Durante o seu tempo de vida jamais se beneficiou
de um “vintém” dos dinheiros que outros amealhavam pelo mundo fora, em nome da
organização por si dirigida. Está sepultado algures por aí, como qualquer
anónimo. Foi um homem de acção no terreno e não de gabinete. Jamais em vida
exigiu que se lhe chamasse presidente ou herói nacional, e muito menos que o
sepultassem no panteão destinado aos nobres da casa, pois tal e qual é o
conceito de bandido ou terrorista na política, o conceito de
herói também é uma atribuição politica.
A fotografia que se publica junto a este artigo foi-nos
gentilmente cedido por Pedro Marangoni, o tal homem que comandou o grupo que
infrutiferamente tentou resgatar os prisioneiros de Sacuze em Dezembro de 1976.
Segundo Marangoni, imediamente após tomar conhecimento do regresso triunfal de
Matsangaice a Odzi, tratou de ir vê-lo com os seus próprios olhos. Matsangaíce
estava estafado, com o corpo dorido e impossibilitado de calçar os pés, de tão
inchados que estavam, pois acabava de fazer uma caminhada de 300 quilometros de
ida e volta a Odzi. Não sabemos se ao longo dessa caminhada toda Matsangaíce
foi recitando os versos do we shall overcome. Sabemos apenas que depois
de libertar os prisioneiros de Sacuze ficaria cerca de quatro dias sem poder
calçar os pés, por inchados que estavam. E terá sido com prazer que foi
sentindo na palma dos pés o sabor da terra que foi dos seus avós durante esses
quatro dias – pensamos nós. A despeito do cansaço e pretendendo repousar para
recuperar as forças, gentilmente, Matsangaíce ainda acedeu ao pedido de
Marangoni de tirar esta fotografia para que, na posterioridade, os que não o
conheceram, o “conheçam”.
Eis então, no seu estado de pobreza absoluta, a
lenda de que se fala.
[1]
Marangoni e os seus homens não lograram alcançar Sacuze. Dias depois de entrarem no território moçambicano viriam a
colidir com uma unidade de guerrilheiros do ZIPA, na época, braço armado
surgido das forças do ZANU e ZAPU. Do confronto resultou o grave ferimento e
captura do cidadão português Rui Nunes da Silva. Rui Silva viria assim a ser
passado ao Estado Moçambicano pelas forças zwimbabweanas e, mais tarde (em
Abril de 1979), a integrar o primeiro lote dos sentenciados a pena de morte por fuzilamento pelo Tribunal
Militar Revolucionário em Moçambique.
[2]
Destes, alguns
voltariam ao Centro, tendo outros desaparecido para sempre, não se sabendo se
fuzilados, se novamente fugitivos.
[3]
Concebido pelas autoridades rodesianas, no início, as transmições em português para Moçambique, iniciados em Abril
de 1976 pela RBC (Rhodesia Broadcasting Corporation), tinham uma linha
editorial um tanto ou quanto racista e contra a independência de Moçambique.
Surpreendidos pelos teores das transmições daquela rádio, terá sido graças aos
esforços de Orlando Cristina, Jacob Chinhara e Janota Luís que, junto às
autoridades rodesianas demonstraram a inviabilidade daquela linha editorial,
nasceria assim a Voz da África Livre. Este passou a transmitir para
Moçambique com uma linha editorial completamente diferente da RBC, realçando a
heroicidade dos moçambicanos na luta pela independência e condenando a FRELIMO
pela traição aos princípios que nortearam os moçambicanos para essa luta.
OUTRAS FONTES CONSULTADAS:
Nembo Camacho. Maputo, 15 de
Setembro de 1998, entrevista com o autor.
Guedes Gonsalves. Maputo, 8
de Abril de 2002, entrevista com o autor.
Pedro Marangoni, Carta ao
autor, Outubro de 2005.
CABRITA, J. M., Mozambique , The Tortuous Roar to
Democracy, Palgrave, 2000.
MARANGINI, P., A Opção Pela
Espada, Editora Alcance, 2004
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