Outubro de 1917: o golpe de estado bolchevique significou bem mais do que a queda do czarismo e a subida ao poder de um grupo de políticos idealistas. A revolução liderada por Lenin tornou-se o ícone que representaria o começo de uma nova era para a humanidade, anunciando uma sociedade mais justa e um homem mais consciente de sua relação com seu semelhante.
Novembro de 1989: a queda do Muro de Berlim e a consequente abertura dos arquivos dos países comunistas apareceram para o mundo como a derrocada final do sonho comunista.
O LIVRO NEGRO DO COMUNISMO traz a público o saldo estarrecedor de mais de sete décadas de história de regimes comunistas: massacres em larga escala, deportações de populações inteiras para regiões sem a mínima condição de sobrevivência, expurgos assassinos liquidando o menor esboço de oposição, fome e miséria provocadas que dizimaram indistintamente milhões de pessoas, enfim, a aniquilação de homens, mulheres, crianças,
soldados, camponeses, religiosos, presos políticos e todos aqueles que, pelas mais diversas razões, se encontraram no caminho de implantação do que, paradoxalmente, nascera como promessa de redenção e esperança.
Os autores, historiadores que permanecem ou estiveram ligados à esquerda, não hesitam em usar a palavra genocídio, pois foram cerca de 100 milhões de mortos! Esse número assustador ultrapassa amplamente, por exemplo, o número de vítimas do nazismo e até mesmo o das duas guerras mundiais somadas. Genocídio, holocausto, portanto, confirmado pelos vários relatos de sobreviventes e, principalmente, pelas revelações dos arquivos hoje acessíveis.
PS: Sobre Moçambique veja a partir da página 353
Em 25 de setembro de 1974, os militares portugueses ainda não tinham instituído o pluripartidarismo em
Lisboa quando confiaram os destinos de Moçambique exclusivamente à Frente de Libertação de Moçambique
(Frelimo). Fundada em junho de 1962, a Frente soubera, sob a autoridade do doutor (em antropologia) Eduardo
Chivambo Mondlane, conquistar as simpatias da comunidade internacional e beneficiar-se do apoio militar tanto da
China como da URSS. Ao contrário do que acontecera em Angola, a Frelimo havia conseguido, antes da "revolução
dos cravos" portuguesa (25 de abril de 1974), colocar em dificuldade as tropas coloniais, aliás majoritariamente
compostas por africanos. Agrupando uma parte notável das elites intelectuais nacionalistas, a Frente reflete as divisões
ideológicas que a atravessam. Em 1974, porém, já não é possível ocultar a impregnação marxista-leninista da sua dire-
ção. Depois do seu II Congresso (1968), o significado do combate antiimpe-rialista, desenvolvido por Samora Machel
segundo a lógica chinesa das "zonas libertadas", aparecia cada dia mais conforme à afirmação feita, pouco antes do seu
desaparecimento (1969), pelo próprio Mondlane: "Concluo hoje que a Frelimo é mais socialista, revolucionária e
progressista do que nunca e que a nossa linha é diariamente mais orientada para o socialismo marxista-leninista". E,
interrogando-se sobre as razões dessa evolução, explicava: "Porque, nas condições de vida em Moçambique, o nosso
inimigo não nos deixa escolha".
Em seguida à independência, o inimigo pareceu querer conceder uma certa pausa aos novos senhores. Esses
últimos, em que o elemento urbano assimilado, branco, mestiço ou indiano era hegemónico, lançaram-se com
entusiasmo na obstetrícia nacional. Num país rural, a invenção da nação pressupunha, a seus olhos, um enquadramento
do Partido-Estado, única forma de garantir uma política de "aldeamento", consequente, capaz, além disso, de engendrar
o homem novo, tão caro ao poeta Sérgio Vieira. Já iniciada no começo dos anos 70 nas "zonas libertadas", com
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resultados diversos, essa política foi sistematizada no conjunto do território. Todos da população rural, a saber 80% do
total, deveriam supostamente abandonar o seu habitat tradicional, a fim de se reagruparem em povoados. No
entusiasmo da independência, as populações responderam favoravelmente às solicitações da administração, cultivando
campos coletivos rapidamente abandonados nos anos seguintes, participando por vezes na edificação das construções
exigidas, sem contudo concordarem em residir no local. No papel, porém, o país estava coberto por uma administração
hierarquizada, teoricamente sob controle das células de um partido que, em 1977, tinha claramente reivindicado a
herança bolchevique e apelado ao desenvolvimento da coletivização das terras e ao reforço dos laços com o movimento
comunista internacional. Haviam sido assinados diversos tratados com o Leste, e o fornecimento de armamento e de
instrutores parecia autorizar um apoio acrescido aos nacionalistas rodesianos do Zimbabwe African National Union
(ZANU).
Em um momento em que Moçambique se associava ao bloqueio que ameaçava estrangulá-la, foi como
represália que a Rodésia branca de lan Smith decidiu dar o seu apoio à resistência que começava a aparecer nos
campos. Sob a direção de Afonso Dhlakama, a Resistência Nacional Moçambicana (Renamo) beneficiou-se de um
apadrinhamento estreito dos serviços especiais rodesianos até a independência do Zimbabwe, data a partir da qual a
tutela logística passou a ser assegurada pela África do Sul (1980). Para surpresa de numerosos observadores, a adesão à
resistência das populações dos povoados foi crescendo, a despeito dos métodos bárbaros da Renamo, cuja ação
assustava até os seus protetores rodesianos. Os fugitivos dos "campos de reeducação" que se multiplicaram a partir de
1975 sob a férula do Serviço Nacional de Segurança Popular (SNASP) não eram os menos violentos. Na falta de
adesão, o controle das populações tornava-se uma questão vital para ambas as partes, e os raros estudos no terreno
confirmam as observações da Human Rights Watch quanto à amplitude e à bestialidade das exações cometidas pelos
dois campos contra as populações civis. Menos enquadrada do que a violência de Estado da Frelimo, a exercida pela
Renamo não se resumiu em ações contra as "grandes companhias", a partir de então entregues a si mesmas depois da
deserção dos seus responsáveis. O apoio que apesar de tudo lhe é concedido exprime um ódio ao Estado cuja dimensão
testemunha violências que a Frelimo procura justificar, numa linguagem estrangeira, como feita em nome da luta contra
o "tribalismo", contra um apego às práticas religiosas qualificadas de "obscurantistas", e contra uma fidelidade
continuada e relativa às linhagens de chefias tradicionais que foram rejeitadas em bloco — sob o rótulo de
"feudalismo" - pelo regime depois da sua independência.
As prerrogativas do SNASP tinham sido bastante aumentadas antes mesmo de a amplitude da ameaça
constituída pela Renamo ter sido percebida pelas autoridades de Maputo. Criada em outubro de 1975 a Segurança
Popular estava efetivamente habilitada a prender e deter qualquer pessoa suspeita de "ataque à Segurança do Estado",
noção que incluía os que cometessem delitos econômicos. O SNASP fora fundado para levar essas pessoas a tribunal e,
nesses casos, encarregava-se da instrução. Podia igualmente enviá-las diretamente para um "campo de reeducação".
Negado aos detidos pelo artigo 115 do Código de Processo Penal, o habeas-corpus era só uma recordação (admitindo
que a sua aplicação tenha sido efetiva nos tempos salazaristas...) quando o primeiro ataque de envergadura da
Resistência visou, em 1977, o campo de reeducação de Sacuze. As "ofensivas pela legalidade", periodicamente
conduzidas por Samora Machel, não limitaram as prerrogativas do SNASP. Visavam pôr em concordância o fato com o
direito; tal foi a lógica da Lei 2/79, de 28 de fevereiro de 1979, sobre os crimes contra a segurança do povo e do Estado
Popular, restabelecendo a pena de morte, abolida em Portugal e em todas as suas colónias desde 1867. O castigo
supremo não era, aliás, sempre aplicado dentro das regras, e principalmente quando se tratava de eliminar os
dissidentes da Frelimo. Foi esse em especial o destino de Lázaro Nkavandame, Joana Simaião e Uria Simango,
liquidados na ocasião da sua detenção em 1983 e cujo destino foi mantido secreto até que o Partido riscou o marxismoleninismo
da sua agenda. Esse mesmo ano de 1983 foi igualmente marcado, no plano jurídico, pelo fechamento da
Faculdade de Direito Eduardo Mondlane, em Maputo; acreditando-se nas considerações apresentadas pelo governo, era
efetivamente claro que esse estabelecimento não preparava os juristas para defenderem os direitos do povo, mas
unicamente os dos exploradores. De um modo geral, a intelligentsia caiu muito rapidamente num desencanto discreto,
tingido de servilismo em relação à Associação dos Escritores Moçambicanos, entregando-se em privado a comparações
iconoclastas entre KGB, CIA e SNASP. Mais raros foram aqueles que, como o poeta Jorge Viegas, pagaram a sua
dissidência com o hospital psiquiátrico e depois com o exílio.
O recrudescimento político então verificado andava a par, segundo uma lógica já comprovada quando dos
primeiros passos da Rússia soviética, de uma abertura económica. Indubitavelmente, essa não tinha necessidade de uma
maior abertura em face do estrangeiro, uma vez que os investimentos ocidentais foram sempre bem recebidos, como
convém a um país de "orientação socialista" ao qual a URSS recusou a entrada no Comecon. O IV Congresso (1983)
voltou a sua atenção para a população rural, pondo fim à política de coletivização, de efeitos desastrosos. Ao fazer uma
das denúncias de que tanto gostava, Samora Machel deixou as coisas muito claras: "Não esqueçamos o fato de que o
nosso país é, antes de mais nada, constituído por camponeses. Nós persistimos em falar da classe operária e relegamos
para segundo plano a maioria da população." Cada incêndio de palhoças pelas milícias governamentais, por ordens
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(teóricas) de superiores hierárquicos preocupados com as quotas de aldeamento, reforçava automaticamente a Renamo.
Além disso, a desestruturação dos sistemas de cultivo, a degradação das condições de troca de bens de
consumo/culturas alimentares e a desorganização do comércio concorriam para um agravamento das dificuldades de
alimentação. Não parece que a arma da fome tenha sido utilizada de forma sistemática, tanto pelas autoridades como
pela Renamo. No entanto, o controle do auxílio alimentar representou para a Frelimo um trunfo essencial para o reagrupamento
das populações que os dois campos disputavam. Por esse fato, a concentração improdutiva de agricultores
colocados de frente com a impossibilidade de regressarem às suas terras era ela mesma geradora de dificuldades
alimentares futuras. No total, segundo a Human Rights Watch, a insuficiência das rações globalmente disponíveis
durante o período de 1975-1985 esteve na origem de uma quantidade de mortos superior à causada pela violência
armada. A avaliação é confirmada pela Unicef, que estima em 600 mil o número de vítimas da fome no decorrer da
década em questão e não hesita em esboçar uma comparação com a Etiópia. A ajuda internacional traduziu-se, para
muitos, na sobrevivência das populações expostas. Em janeiro de 1987, o embaixador dos Estados Unidos em Maputo
enviou ao Departamento de Estado um relatório que quantificava em 3,5 milhões o número de moçambicanos
ameaçados pela fome, desencadeando um auxílio imediato de Washington e de várias organizações internacionais. No
entanto, as zonas mais isoladas e expostas às instabilidades climáticas foram vítimas de fomes brutalmente mortíferas
de amplitude dificilmente estimável, como a região de Memba, onde, segundo as organizações humanitárias, oito mil
pessoas morreram de fome na primavera de 1989 Nas áreas abrangidas pela solidariedade estrangeira, o mercado
retomou rapidamente os seus direitos. É, em todo o caso, uma das ilações de um relatório da Comunidade Europeia de
1991,76 do qual ressalta que somente 25% da ajuda alimentar eram vendidos ao preço acordado, ficando 75% nas mãos
do aparelho político-administrativo, o qual, depois da punção de rigor, negociava os excedentes no mercado paralelo. O
homem novo que Samora Machel e os seus teimavam em construir era bem "o produto patológico desse compromisso,
o qual, no sujeito individual, é vivido como desonra, mentira, loucura esquizofrênica. Ele quer viver, mas para isso tem
de dividir-se, levar uma vida escondida e verdadeira e uma vida pública e falsa, querer a segunda para proteger a
primeira, mentir incessantemente para guardar em algum lugar um caminho de verdade".
O repentino desmoronamento dos Partidos-Estado do Leste levou, num movimento muito natural, a prestar
mais atenção à sua fraqueza e a acentuar a resistência das sociedades civis. Embora, no decorrer dos 15 anos
considerados, a caracterização pública do comunismo africano como "legitimação política moderna" pudesse ter tido
consequências dolorosas para um universitário autóctone, essa percepção nem por isso deixa de conservar a sua carga
explicativa. A pouca duração da experiência africana, conjugada com a percepção dominante de uma África
tautologicamente votada à violência em razão da sua própria africanidade, poderia levar a atenuar - a despeito das
nossas precauções iniciais - os contornos do nosso tema. A fim de resistir à tentação, não é, sem dúvida, inútil inverter
a perspectiva. Se é verdade que a especificidade da violência observada nos Estados de obediência marxista-leninista
dificilmente sobressai num continente marcado pelo partido único, os massacres e a fome não serão devidos, como
escrevia A. Mbembe, ao fato de que, embora os países africanos "tenham sido colonizados e conduzidos à
independência pelas potências ocidentais, foram definitivamente os regimes de tipo soviético que lhes serviram de
modelo", não tendo os esforços de democratização "modificado a natureza profundamente leninista dos Estados
africanos"?