Lourenço Marques é a mais nova das cidades e vilas históricas, moçambicanas. Quase três séculos separam a sua fundação da de Sofala e da de Moçambique. E quando, em 1761, a carta régia de 9 de Maio promovia a outorga do estatuto de vila às praças, feitorias e feiras da Capitania Geral, Lourenço Marques não existia ainda. No entanto, a baía da Lagoa foi conhecida logo nos primeiros anos da navegação da índia. Ia já desenhada, com os três rios que nela desaguam, no famoso mapa que Alberto Cantino levou clandestinamente de Lisboa para Génova, de presente ao duque de Ferrara. Isto quer dizer que por fins de Setembro, princípios de Outubro de 1502, o mais tardar, havia já em Lisboa informação segura do Bio da Lagoa. Foi por aqueles dias que Cantino, subornando um cartógrafo a quem pagou doze ducados, conseguiu obter a preciosa carta. Partindo deste facto e argumentando que «Vasco da Gama não tocou ali na sua primeira viagem à índia, nem tão-pouco qualquer dos navios da armada de Pedro Álvares Cabral», o comandante Fontoura da Costa concluiu: «portanto, foi o Eio da Lagoa descoberto por João da Nova em 1501 ou 1502» O. A armada de João da Nova, terceira que foi à índia, saiu de Lisboa em 5 de Março de 1501 e
(') Comunicação à Academia das Ciências de Lisboa. Publicada em vários lugares, designadamente no documentário trimestral Moçambique, n.o 18.
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estava de volta em 11 ou 13 de Setembro de 1002. É certo que, quando foi subtraída, a carta de Cantino registava já informação fornecida por essa armada. Prova-o a figuração nela da ilha da Ascensão, descoberta por João da Nova. Mas a conclusão do comandante Fontoura da Costa não deixa de ser singular. Na verdade, o argumento negativo para as armadas do Gama e de Cabral é igualmente negativo para a armada de João da Nova. Se não há nos cronistas e relatores das viagens qualquer indicação de que as duas primeiras armadas tenham tocado nesta altura da costa, também a não há quanto à terceira. A afirmação, pois, de que esta entrou na baía é puramente gratuita. A simples especulação sobre os vagos e tantas vezes contraditórios textos dos cronistas levar-nos-ia, antes, a admitir a probabilidade do descobrimento por alguém da armada de Cabral. João da Nova teve uma viagem feliz e a sua armada navegou sempre, na ida e na volta, regularmente reunida. Com Cabral, porém, não sucedeu assim. A tempestade destroçou a frota. Umas naus afundaram-se; outras andaram perdidas da conserva e só voltaram a reunir-se ao almirante, seis delas, por altura de Sofala; Diogo Dias tresmalhou-se, andou aventurosamente pela costa e Madagáscar, e regressou a Portugal. Assim, e embora a armada de Cabral não tenha tocado no Rio da Lagoa, a hipótese de que algumas dessas naus errantes tenha vindo à baía não é de desprezar. A questão permanece em aberto — e, provavelmente, ficará para sempre ignorado quem foi o descobridor de Lourenço Marques. Em todo o caso, o descobrimento da baía da Lagoa parece não ter suscitado qualquer interesse e não .passou, por então, de mero episódio das navegações e
da cartografia. Até à exploração por Lourenço Marques, quarenta anos mais tarde, não há notícia de relações com a baía nem, mesmo, de simples frequência dela pelos capitães da carreira da índia. Os casos de António do Campo e de João de Queirós foram puramente incidentais e, ainda assim, há dúvidas sobre se ocorreram ou não na baía da Lagoa. António do Campo (que, transviado da segunda armada do Gama, só em 1503 passara à índia e se reunira à armada dos Albuquerques) regressava ao Reino, em 1504, e surgiu algures na costa africana, para aguada. Os indígenas deram-lhe boa hospitalidade. Campo pagou-a mal: ao retirar, cativou alguns deles e levou-os para Portugal. No ano seguinte João de Queirós, um dos da armada de Pêro da Nhaia, saltou em terra com uma vintena de homens, na mira de tomar algum gado. Os indígenas atacaram-no e mataram-no — a ele e quase toda a sua companhia: dos vinte homens , só qua t r o ou c i nco puderam voltar para bordo, “bem feridos». João de Barros é, se não estamos em erro, o único dos cronistas que estabelece relação entre os dois sucessos e os dá corno passados no mesmo lugar. Explicando o ataque a Queirós, observa: «Parece que não foi tanto este dano, polo que João de Queiroz ia fazer, quanto polo que [os indígenas] tinham recebido de António do Campo». Onde, justamente, se passaram estes acontecimentos ? Barros situa-os “aquém do Cabo das Correntes obra de sessenta léguas, onde chamam o Rio da Lagoa», numa “ilheta a qual os nossos chamam das Vacas, por algumas que ali viram andar». É, não há dúvida, uma indicação precisa da baía, com a sua ilha da Inhaca.
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Gaspar Correia limita-se a contar que o episódio de Queirós se passou numa ilha. Castanheda, porém, e com ele o bem informado Manuel de Mesquita Perestrelo indicam a Baía das Vacas — o que situa os acontecimentos em Fish Bay. O caso de Queirós ter-se-ia passado no continente, não numa ilha. Queirós internara-se meia légua pelo sertão, quando os Negros deram nele. Preferimos a versão de Castanheda e Perestrelo, a despeito da aparente precisão de Barros. Este podia ter sido induzido em erro pelo nome de Lagoa, transportando para a baía deste nome, a sessenta léguas do Cabo das Correntes, o que se teria passado, mais a sul, numa outra baía do mesmo nome: Plettenberg Bay, apenas a doze-quinze minutos de latitude da baía e cabo das Vacas — cabo que, diz Perestrelo, «até estar muito perto parece ilhéu, não o sendo». Esta outra baía da Lagoa estava em muito melhor posição que a nossa baía para estação de aguada — e, realmente, nos primeiros anos da navegação da índia era frequente as naus tomarem aguada nos portos do sul. A baía de Lourenço Marques ficava fora da linha normal de navegação que entre Moçambique e o Cabo procurava afastar-se da costa. . Por outro lado, não sabemos que a Inhaca fosse alguma vez conhecida como ilha das Vacas. A título de curiosidade, contaremos certa tradição indígena que presume de memória do primeiro contacto dos Rongas da baía com os Brancos (1) . Um dia. o príncipe Mantimana, filho de Maromana, filho de Mpfumo, filho de Nlharúti que foi o invasor
(') António Albasini recolheu, há alguns anos, várias tradições dos Rongas. São os seus apontamentos manuscritos, que ele teve a amabilidade de nos facultar, que aqui utilizamos.
(vindo de Psatine, Suazilândia) das terras da baía, andava a passear na praia de Cá-Mpfumo e viu uma estranha coisa: um grupo de seres que vinham pela praia, com gestos como de gente — mas brancos! Mantimana cuidou que seriam bichos e correu à povoação. Juntou-se gente, discutiu-se e, por fim, aceitouse que tais seres eram, realmente, homens, embora brancos. Levaram-nos ao rei que lhes deu agasalho. Dias depois, gente do Tembe veio reclamar os homens brancos, os quais tinham morto Ncoro, rei do Tembe. Os de Mpfumo, porém, negaram-se a entregar-lhos. Tal é a história. Infelizmente, as contradições e as falhas das tábuas genealógicas da casa de Mpfumo, recolhidas por vários investigadores, não nos permitem fixar, com suficiente aproximação, a data do acontecimento. A historieta pode reflectir (mas, então, Barros teria errado quanto à ilha) a recordação, já muito esfumada, dos sucessos de Campo e de Queirós. Mas pode, também, reportar-se a facto da visita de Lourenço Marques e de António Caldeira. Ou, ainda, à chegada dos náufragos do galeão grande S. João, em 1552. Um destacamento desses náufragos, capitaneado por Pantaleão de Sá, auxiliara, dias antes, o, régulo da Inhaca numa guerra contra outro régulo — o que poderia ser a explicação da diligência feita em Mpfumo pela gente do Tembe. Em certo passo da relação das aventuras destes náufragos, há outra possível coincidência com a história indígena: o encontro na praia, os cafres perguntando «aos nossos que gente era, ou o que buscava» e, depois, conduzindo-os ao lugar em que se achava o rei. Repetimos, porém: ainda que passados na baía, os sucessos de António do Campo e João de Queirós não foram mais que fortuitos episódios da navegação. Numa das Memórias apresentadas pelo Governo
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português à arbitragem de Mac-Mahon, as quais foram elaboradas por Paiva Manso, afirma-se que em 1505 Pedro Quaresma esteve na baía. A carta de Quaresma a El-Rei, diz, apenas (o que é pouco para a afirmação de Paiva Manso): «[...] e tãto avante como apomta de santa luzia numa noyte se perdeo a caravella da náo e eu com a náo fuy aver amtre o cabo das corretes e de santa maria, e daly fuy sempre ao llongo da costa até sofalla [...]» (1) Como quer que fosse, esta vinda à baía não passou, também, de mera circunstância. Pedro Quaresma e Cid Barbudo haviam sido despachados do Reino para levar socorro a Sofala e procurarem Francisco de Albuquerque e Pedro de Mendonça, dados por perdidos no mar. O mesmo terá sucedido com Diogo Botelho Pereira que em 1527 foi mandado explorar a costa entre os cabos da Boa Esperança e das Correntes, à procura de D. Luís de Meneses que naufragara na volta da índia, em 1525. Ã margem destes episódios, a baía de Lourenço Marques não foi, no período 1500-1545, objecto de interesse e teatro de actividade regular dos Portugueses ou, sequer, simples escala da navegação. Assim o testemunha, na relação do naufrágio da nau S. Bento, Manuel de Mesquita Perestrelo, «que se achou no dito naufrágio». Descrevendo a baía, em 1554, diz ele:
«O segundo [rio] se chama Santo Espírito, ou de Lourenço Marques, que primeiro descobriu o resgate do marfim, que ali vem ter, por cuja causa é frequentada a navegação dele de alguns anos a esta parte, que dantes muitos passaram, que ali ninguém foi.» Natural era que assim sucedesse. O ouro do Monomotapa fixava todos os sonhos e cuidados dos Portugueses de então. O acesso às minas e a defesa do monopólio do tráfico do ouro constituíam todo o programa da capitania de Sofala e Moçambique. Por seu turno, a carreira da índia tendeu a afastar-se da costa, quer seguindo em linha directa entre a ponta sul de Madagáscar e o Cabo, quer pelo golfão, passando «por fora» de Madagáscar. Sendo assim, mais de estranhar é que num dado momento, em 1544-1545, o capitão de Moçambique ou quem quer que foi (1) tivesse mandado Lourenço Marques, numa fusta, «descobrir dois rios que estavam além do Cabo das Correntes», como diz a conhecida carta de D. João de Castro a El-Eei. Que motivo teria subitamente despertado tal interesse por essas paragens, desprezadas durante quase meio século ? Podem tentar-se duas explicações: Uma, a de que, no entretanto, tendo o negócio do marfim ganho vulto e prosperidade, como efectivamente sucedeu, alguma notícia de abundância de mar-
(1) É possível, de resto, que este Cabo de Santa Maria não fosse o da baía de Lourenço Marques, também chamado Cabo Colato. De facto, para norte do Cabo das Correntes houve, também, um .cabo ou ponta de Santa Maria, como se vê de algumas cartas antigas. Os Holandeses estabelecidos em Lourenço Marques denominavam as terras de Inhambane também como terras de Santa Maria. A carta de Quaresma sugere, realmente, que o cabo de Santa Maria ficasse para além, no rumo que ele levava, do das Correntes — isto é, a norte deste.
(1) A verdade é que não sabemos quem foi. O único documento sobre a questão nomeia apenas D. Jorge. Supõe-se que fosse o capitão de Moçambique mas os capitães conhecidos de Moçambique, entre 1530 e 1550, são: Vicente Pegado, Aleixo de Sousa Chichorro, João Sepúlveda e Fernão de Sousa de Távora. A identificação de «D. Jorge» com D. Jorge Teles de Meneses, feita pelo comandante Fontoura da Costa, não parece muito creditável. D. Jorge de Meneses foi, realmente, capitão de Moçambique, mas entre 1586-1590 ou seja quarenta anos mais tarde.
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fim na baía tivesse chegado a Moçambique ou à índia. Outra, a de que já então tivessem começado a aparecer na baía navios de outras nações. Henri Alexandre Junod recolheu, nos fins do século passado, tradições indígenas segundo as quais os primeiros Brancos com quem os Rongas entraram em contacto e estabeleceram comércio eram Ingleses. A esse comércio chamavam eles godji — e ainda hoje o termo Bá-Gôdji é empregado para designar a gente inglesa. É indubitável que nesta tradição se confundem e se transpõem cronologicamente diversos factos de que a baía foi teatro, e que nela se estampam, planificadas no tempo, figuras e cenas que, ao longo de quase três séculos, se desenrolaram aos olhos dos indígenas. De 1500 aos princípios de 1800, concorreram desordenadamente na baía muitas e desvairadas gentes — Portugueses, Ingleses, Franceses, Holandeses, Austríacos e Americanos. Ora, se a precedência dos Portugueses no descobrimento não sofre contestação, não é inadmissível que entre 1500-1545, enquanto os Portugueses deixavam abandonada a baía, estrangeiros a tivessem visitado e estabelecido trocas com os indígenas. Justamente por 1545 já os Portugueses se não sentiam senhores seguros e indisputados destes mares. D. João de Castro declarava a Torre de Moçambique (primeira fortificação da ilha, levantada em 1507) insuficiente para garantir a soberania de Portugal e recomendava a construção (iniciada treze anos mais tarde) do que viria a ser a praça de S. Sebastião. Assim, o aparecimento de navios estrangeiros nas paragens do Cabo das Correntes, com liberdade de navegação e de relações com os indígenas, sem dúvida constituiria uma ameaça ao monopólio português do
ouro de Sofala — razão mais- que todas premente para se colocarem essas paragens sob o signo da Coroa de Portugal. Nada mais se sabe da expedição, além do pouco que dizem as duas cartas trocadas entre D. João de Castro e El-Rei(1). Já vimos a dúvida sobre quem ordenou a viagem. O próprio Lourenço Marques é uma figura evasiva. Se a atribuição, pelo comandante Fontoura da Costa, da data de 1514 à referência feita por João de Lisboa a um Lourenço Marques piloto ou capitão de navio está certa, não é muito provável que esse Lourenço Marques, que em 1514 tinha já idade e prática de navegação bastantes para aconselhar João de Lisboa, fosse o mesmo que trinta anos mais tarde descobriu a baía e a quarenta e três anos de vista recebeu a mercê da escrivaninha da feitoria de Cochim. Não é provável, posto que, realmente, não seja impossível. Firmin Didot, na Nouvelle Biographie Générale, 1860, apresenta-nos Lourenço Marques como «navegador português nascido na primeira metade do século XVI, negociante acostumado a fazer o comércio do marfim nas costas da África oriental». De positivo, só sabemos que nos princípios de 1554 Lourenço Marques partiu da índia para uma viagem à baía, onde não chegou por naufragar na costa (2).
(') Publicadas, na parte que interessa, em vários lugares, por exemplo, na Memória apresentada pelo Governo Português, 1870, à arbitragem de Mac-Mahon, documentos n.os 667. (2) Na Nota sobre a baía e rio de Lourenço Marques (tomo V das Obras Completas), o Cardeal Saraiva diz que «no ano de 1554, vindo Lourenço Marques da índia com direcção a estes seus rios, fez naufrágio na costa, antes de neles entrar, e naquelas ondas ficou sepultado, como consta da Relação do naufrágio da nau S. Benton. Na Relação lê-se, apenas: «na costa se perdeu, antes que se pudesse recolher ao rio». Perdeu-se o navio mas não o homem, que vivia ainda em 1557.
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A carta régia de 11 de Fevereiro de 1557 (*) apresentano-lo como cavaleiro da casa de El-Eei. Em respeito aos serviços prestados, Sua Majestade proveu-o no ofício de escrivão da feitoria de Cochim, com este favor: «por tempo de seis anos, posto que pelo regimento houvessem de ser três». A data da expedição à baía é, também, incerta: 1544 ou 1545? A carta em que D. João de Castro comunica a El-Rei o descobrimento diz apenas: «Os dias passados mandou D. Jorge Lourenço Marques em uma fusta a descobrir dois rios, que estão além do Cabo das Correntes [...].» Esta carta foi escrita em Moçambique, provavelmente nos primeiros dias de Agosto de 1545 e já então Lourenço Marques ali estava, ou estivera, de volta da baía. Ora, do quadro da navegação que adiante esboçamos, recolhe-se a sugestão de que, ao menos nos primeiros tempos da carreira Moçambique-Baía da Lagoa, os navios chegavam à baía por Novembro, demoravam uns cinco meses e saíam, de regresso a Moçambique, em Março. Assim, pode presumir-se que Lourenço Marques tivesse partido de Moçambique em Setembro-Outubro de 1544 e regressado em Março ou Abril de 1545. Não temos, porém, nenhuma certeza. Em resultado da exploração, abriram-se cobiçosas perspectivas de comércio na baía. Num rio, Limpopo, havia cobre e a promessa dos indígenas de que «venderiam quanto quisesse». No outro rio, a baía, avistavam-se grandes manadas de elefantes. O marfim abundava. E, por umas contas que valeriam três vinténs, os indígenas davam um bar de marfim — que na índia pagariam, mais ou menos, a cem cruzados!
Em face desta liberalidade, D. João de Castro comunicou a El-Eei que tanto a ele como ao vedor da Fazenda parecia bem mandar, logo que chegasse à índia, «uma fusta a descobrir, saber muito bem como isto se passa; porque seria grande proveito da fazenda de V. A. se aqui pudesse haver cobre, maiormente sendo tão bom como este homem, que lá foi, afirma». El-Rei, em resposta, encomendou-lhe muito que assim.fizesse e, caso lhe parecesse conveniente, mandasse no navio ou fusta mercadorias para resgatar as da terra «e saber verdadeiramente as que há nela».
Desta vez, a baía fora, efectivamente, «descoberta» — descoberta política e economicamente. Para a geografia, Lourenço Marques não foi o seu descobridor. Mas, para a história, foi-o e não é sem justiça que o seu nome se perpetua na cidade que germinou nas praias e pântanos de Cá-Mpfumo.
(') Comunicação à Academia das Ciências de Lisboa. Publicada em vários lugares, designadamente no documentário trimestral Moçambique, n.o 18.
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estava de volta em 11 ou 13 de Setembro de 1002. É certo que, quando foi subtraída, a carta de Cantino registava já informação fornecida por essa armada. Prova-o a figuração nela da ilha da Ascensão, descoberta por João da Nova. Mas a conclusão do comandante Fontoura da Costa não deixa de ser singular. Na verdade, o argumento negativo para as armadas do Gama e de Cabral é igualmente negativo para a armada de João da Nova. Se não há nos cronistas e relatores das viagens qualquer indicação de que as duas primeiras armadas tenham tocado nesta altura da costa, também a não há quanto à terceira. A afirmação, pois, de que esta entrou na baía é puramente gratuita. A simples especulação sobre os vagos e tantas vezes contraditórios textos dos cronistas levar-nos-ia, antes, a admitir a probabilidade do descobrimento por alguém da armada de Cabral. João da Nova teve uma viagem feliz e a sua armada navegou sempre, na ida e na volta, regularmente reunida. Com Cabral, porém, não sucedeu assim. A tempestade destroçou a frota. Umas naus afundaram-se; outras andaram perdidas da conserva e só voltaram a reunir-se ao almirante, seis delas, por altura de Sofala; Diogo Dias tresmalhou-se, andou aventurosamente pela costa e Madagáscar, e regressou a Portugal. Assim, e embora a armada de Cabral não tenha tocado no Rio da Lagoa, a hipótese de que algumas dessas naus errantes tenha vindo à baía não é de desprezar. A questão permanece em aberto — e, provavelmente, ficará para sempre ignorado quem foi o descobridor de Lourenço Marques. Em todo o caso, o descobrimento da baía da Lagoa parece não ter suscitado qualquer interesse e não .passou, por então, de mero episódio das navegações e
da cartografia. Até à exploração por Lourenço Marques, quarenta anos mais tarde, não há notícia de relações com a baía nem, mesmo, de simples frequência dela pelos capitães da carreira da índia. Os casos de António do Campo e de João de Queirós foram puramente incidentais e, ainda assim, há dúvidas sobre se ocorreram ou não na baía da Lagoa. António do Campo (que, transviado da segunda armada do Gama, só em 1503 passara à índia e se reunira à armada dos Albuquerques) regressava ao Reino, em 1504, e surgiu algures na costa africana, para aguada. Os indígenas deram-lhe boa hospitalidade. Campo pagou-a mal: ao retirar, cativou alguns deles e levou-os para Portugal. No ano seguinte João de Queirós, um dos da armada de Pêro da Nhaia, saltou em terra com uma vintena de homens, na mira de tomar algum gado. Os indígenas atacaram-no e mataram-no — a ele e quase toda a sua companhia: dos vinte homens , só qua t r o ou c i nco puderam voltar para bordo, “bem feridos». João de Barros é, se não estamos em erro, o único dos cronistas que estabelece relação entre os dois sucessos e os dá corno passados no mesmo lugar. Explicando o ataque a Queirós, observa: «Parece que não foi tanto este dano, polo que João de Queiroz ia fazer, quanto polo que [os indígenas] tinham recebido de António do Campo». Onde, justamente, se passaram estes acontecimentos ? Barros situa-os “aquém do Cabo das Correntes obra de sessenta léguas, onde chamam o Rio da Lagoa», numa “ilheta a qual os nossos chamam das Vacas, por algumas que ali viram andar». É, não há dúvida, uma indicação precisa da baía, com a sua ilha da Inhaca.
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Gaspar Correia limita-se a contar que o episódio de Queirós se passou numa ilha. Castanheda, porém, e com ele o bem informado Manuel de Mesquita Perestrelo indicam a Baía das Vacas — o que situa os acontecimentos em Fish Bay. O caso de Queirós ter-se-ia passado no continente, não numa ilha. Queirós internara-se meia légua pelo sertão, quando os Negros deram nele. Preferimos a versão de Castanheda e Perestrelo, a despeito da aparente precisão de Barros. Este podia ter sido induzido em erro pelo nome de Lagoa, transportando para a baía deste nome, a sessenta léguas do Cabo das Correntes, o que se teria passado, mais a sul, numa outra baía do mesmo nome: Plettenberg Bay, apenas a doze-quinze minutos de latitude da baía e cabo das Vacas — cabo que, diz Perestrelo, «até estar muito perto parece ilhéu, não o sendo». Esta outra baía da Lagoa estava em muito melhor posição que a nossa baía para estação de aguada — e, realmente, nos primeiros anos da navegação da índia era frequente as naus tomarem aguada nos portos do sul. A baía de Lourenço Marques ficava fora da linha normal de navegação que entre Moçambique e o Cabo procurava afastar-se da costa. . Por outro lado, não sabemos que a Inhaca fosse alguma vez conhecida como ilha das Vacas. A título de curiosidade, contaremos certa tradição indígena que presume de memória do primeiro contacto dos Rongas da baía com os Brancos (1) . Um dia. o príncipe Mantimana, filho de Maromana, filho de Mpfumo, filho de Nlharúti que foi o invasor
(') António Albasini recolheu, há alguns anos, várias tradições dos Rongas. São os seus apontamentos manuscritos, que ele teve a amabilidade de nos facultar, que aqui utilizamos.
(vindo de Psatine, Suazilândia) das terras da baía, andava a passear na praia de Cá-Mpfumo e viu uma estranha coisa: um grupo de seres que vinham pela praia, com gestos como de gente — mas brancos! Mantimana cuidou que seriam bichos e correu à povoação. Juntou-se gente, discutiu-se e, por fim, aceitouse que tais seres eram, realmente, homens, embora brancos. Levaram-nos ao rei que lhes deu agasalho. Dias depois, gente do Tembe veio reclamar os homens brancos, os quais tinham morto Ncoro, rei do Tembe. Os de Mpfumo, porém, negaram-se a entregar-lhos. Tal é a história. Infelizmente, as contradições e as falhas das tábuas genealógicas da casa de Mpfumo, recolhidas por vários investigadores, não nos permitem fixar, com suficiente aproximação, a data do acontecimento. A historieta pode reflectir (mas, então, Barros teria errado quanto à ilha) a recordação, já muito esfumada, dos sucessos de Campo e de Queirós. Mas pode, também, reportar-se a facto da visita de Lourenço Marques e de António Caldeira. Ou, ainda, à chegada dos náufragos do galeão grande S. João, em 1552. Um destacamento desses náufragos, capitaneado por Pantaleão de Sá, auxiliara, dias antes, o, régulo da Inhaca numa guerra contra outro régulo — o que poderia ser a explicação da diligência feita em Mpfumo pela gente do Tembe. Em certo passo da relação das aventuras destes náufragos, há outra possível coincidência com a história indígena: o encontro na praia, os cafres perguntando «aos nossos que gente era, ou o que buscava» e, depois, conduzindo-os ao lugar em que se achava o rei. Repetimos, porém: ainda que passados na baía, os sucessos de António do Campo e João de Queirós não foram mais que fortuitos episódios da navegação. Numa das Memórias apresentadas pelo Governo
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português à arbitragem de Mac-Mahon, as quais foram elaboradas por Paiva Manso, afirma-se que em 1505 Pedro Quaresma esteve na baía. A carta de Quaresma a El-Rei, diz, apenas (o que é pouco para a afirmação de Paiva Manso): «[...] e tãto avante como apomta de santa luzia numa noyte se perdeo a caravella da náo e eu com a náo fuy aver amtre o cabo das corretes e de santa maria, e daly fuy sempre ao llongo da costa até sofalla [...]» (1) Como quer que fosse, esta vinda à baía não passou, também, de mera circunstância. Pedro Quaresma e Cid Barbudo haviam sido despachados do Reino para levar socorro a Sofala e procurarem Francisco de Albuquerque e Pedro de Mendonça, dados por perdidos no mar. O mesmo terá sucedido com Diogo Botelho Pereira que em 1527 foi mandado explorar a costa entre os cabos da Boa Esperança e das Correntes, à procura de D. Luís de Meneses que naufragara na volta da índia, em 1525. Ã margem destes episódios, a baía de Lourenço Marques não foi, no período 1500-1545, objecto de interesse e teatro de actividade regular dos Portugueses ou, sequer, simples escala da navegação. Assim o testemunha, na relação do naufrágio da nau S. Bento, Manuel de Mesquita Perestrelo, «que se achou no dito naufrágio». Descrevendo a baía, em 1554, diz ele:
«O segundo [rio] se chama Santo Espírito, ou de Lourenço Marques, que primeiro descobriu o resgate do marfim, que ali vem ter, por cuja causa é frequentada a navegação dele de alguns anos a esta parte, que dantes muitos passaram, que ali ninguém foi.» Natural era que assim sucedesse. O ouro do Monomotapa fixava todos os sonhos e cuidados dos Portugueses de então. O acesso às minas e a defesa do monopólio do tráfico do ouro constituíam todo o programa da capitania de Sofala e Moçambique. Por seu turno, a carreira da índia tendeu a afastar-se da costa, quer seguindo em linha directa entre a ponta sul de Madagáscar e o Cabo, quer pelo golfão, passando «por fora» de Madagáscar. Sendo assim, mais de estranhar é que num dado momento, em 1544-1545, o capitão de Moçambique ou quem quer que foi (1) tivesse mandado Lourenço Marques, numa fusta, «descobrir dois rios que estavam além do Cabo das Correntes», como diz a conhecida carta de D. João de Castro a El-Eei. Que motivo teria subitamente despertado tal interesse por essas paragens, desprezadas durante quase meio século ? Podem tentar-se duas explicações: Uma, a de que, no entretanto, tendo o negócio do marfim ganho vulto e prosperidade, como efectivamente sucedeu, alguma notícia de abundância de mar-
(1) É possível, de resto, que este Cabo de Santa Maria não fosse o da baía de Lourenço Marques, também chamado Cabo Colato. De facto, para norte do Cabo das Correntes houve, também, um .cabo ou ponta de Santa Maria, como se vê de algumas cartas antigas. Os Holandeses estabelecidos em Lourenço Marques denominavam as terras de Inhambane também como terras de Santa Maria. A carta de Quaresma sugere, realmente, que o cabo de Santa Maria ficasse para além, no rumo que ele levava, do das Correntes — isto é, a norte deste.
(1) A verdade é que não sabemos quem foi. O único documento sobre a questão nomeia apenas D. Jorge. Supõe-se que fosse o capitão de Moçambique mas os capitães conhecidos de Moçambique, entre 1530 e 1550, são: Vicente Pegado, Aleixo de Sousa Chichorro, João Sepúlveda e Fernão de Sousa de Távora. A identificação de «D. Jorge» com D. Jorge Teles de Meneses, feita pelo comandante Fontoura da Costa, não parece muito creditável. D. Jorge de Meneses foi, realmente, capitão de Moçambique, mas entre 1586-1590 ou seja quarenta anos mais tarde.
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fim na baía tivesse chegado a Moçambique ou à índia. Outra, a de que já então tivessem começado a aparecer na baía navios de outras nações. Henri Alexandre Junod recolheu, nos fins do século passado, tradições indígenas segundo as quais os primeiros Brancos com quem os Rongas entraram em contacto e estabeleceram comércio eram Ingleses. A esse comércio chamavam eles godji — e ainda hoje o termo Bá-Gôdji é empregado para designar a gente inglesa. É indubitável que nesta tradição se confundem e se transpõem cronologicamente diversos factos de que a baía foi teatro, e que nela se estampam, planificadas no tempo, figuras e cenas que, ao longo de quase três séculos, se desenrolaram aos olhos dos indígenas. De 1500 aos princípios de 1800, concorreram desordenadamente na baía muitas e desvairadas gentes — Portugueses, Ingleses, Franceses, Holandeses, Austríacos e Americanos. Ora, se a precedência dos Portugueses no descobrimento não sofre contestação, não é inadmissível que entre 1500-1545, enquanto os Portugueses deixavam abandonada a baía, estrangeiros a tivessem visitado e estabelecido trocas com os indígenas. Justamente por 1545 já os Portugueses se não sentiam senhores seguros e indisputados destes mares. D. João de Castro declarava a Torre de Moçambique (primeira fortificação da ilha, levantada em 1507) insuficiente para garantir a soberania de Portugal e recomendava a construção (iniciada treze anos mais tarde) do que viria a ser a praça de S. Sebastião. Assim, o aparecimento de navios estrangeiros nas paragens do Cabo das Correntes, com liberdade de navegação e de relações com os indígenas, sem dúvida constituiria uma ameaça ao monopólio português do
ouro de Sofala — razão mais- que todas premente para se colocarem essas paragens sob o signo da Coroa de Portugal. Nada mais se sabe da expedição, além do pouco que dizem as duas cartas trocadas entre D. João de Castro e El-Rei(1). Já vimos a dúvida sobre quem ordenou a viagem. O próprio Lourenço Marques é uma figura evasiva. Se a atribuição, pelo comandante Fontoura da Costa, da data de 1514 à referência feita por João de Lisboa a um Lourenço Marques piloto ou capitão de navio está certa, não é muito provável que esse Lourenço Marques, que em 1514 tinha já idade e prática de navegação bastantes para aconselhar João de Lisboa, fosse o mesmo que trinta anos mais tarde descobriu a baía e a quarenta e três anos de vista recebeu a mercê da escrivaninha da feitoria de Cochim. Não é provável, posto que, realmente, não seja impossível. Firmin Didot, na Nouvelle Biographie Générale, 1860, apresenta-nos Lourenço Marques como «navegador português nascido na primeira metade do século XVI, negociante acostumado a fazer o comércio do marfim nas costas da África oriental». De positivo, só sabemos que nos princípios de 1554 Lourenço Marques partiu da índia para uma viagem à baía, onde não chegou por naufragar na costa (2).
(') Publicadas, na parte que interessa, em vários lugares, por exemplo, na Memória apresentada pelo Governo Português, 1870, à arbitragem de Mac-Mahon, documentos n.os 667. (2) Na Nota sobre a baía e rio de Lourenço Marques (tomo V das Obras Completas), o Cardeal Saraiva diz que «no ano de 1554, vindo Lourenço Marques da índia com direcção a estes seus rios, fez naufrágio na costa, antes de neles entrar, e naquelas ondas ficou sepultado, como consta da Relação do naufrágio da nau S. Benton. Na Relação lê-se, apenas: «na costa se perdeu, antes que se pudesse recolher ao rio». Perdeu-se o navio mas não o homem, que vivia ainda em 1557.
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A carta régia de 11 de Fevereiro de 1557 (*) apresentano-lo como cavaleiro da casa de El-Eei. Em respeito aos serviços prestados, Sua Majestade proveu-o no ofício de escrivão da feitoria de Cochim, com este favor: «por tempo de seis anos, posto que pelo regimento houvessem de ser três». A data da expedição à baía é, também, incerta: 1544 ou 1545? A carta em que D. João de Castro comunica a El-Rei o descobrimento diz apenas: «Os dias passados mandou D. Jorge Lourenço Marques em uma fusta a descobrir dois rios, que estão além do Cabo das Correntes [...].» Esta carta foi escrita em Moçambique, provavelmente nos primeiros dias de Agosto de 1545 e já então Lourenço Marques ali estava, ou estivera, de volta da baía. Ora, do quadro da navegação que adiante esboçamos, recolhe-se a sugestão de que, ao menos nos primeiros tempos da carreira Moçambique-Baía da Lagoa, os navios chegavam à baía por Novembro, demoravam uns cinco meses e saíam, de regresso a Moçambique, em Março. Assim, pode presumir-se que Lourenço Marques tivesse partido de Moçambique em Setembro-Outubro de 1544 e regressado em Março ou Abril de 1545. Não temos, porém, nenhuma certeza. Em resultado da exploração, abriram-se cobiçosas perspectivas de comércio na baía. Num rio, Limpopo, havia cobre e a promessa dos indígenas de que «venderiam quanto quisesse». No outro rio, a baía, avistavam-se grandes manadas de elefantes. O marfim abundava. E, por umas contas que valeriam três vinténs, os indígenas davam um bar de marfim — que na índia pagariam, mais ou menos, a cem cruzados!
Em face desta liberalidade, D. João de Castro comunicou a El-Eei que tanto a ele como ao vedor da Fazenda parecia bem mandar, logo que chegasse à índia, «uma fusta a descobrir, saber muito bem como isto se passa; porque seria grande proveito da fazenda de V. A. se aqui pudesse haver cobre, maiormente sendo tão bom como este homem, que lá foi, afirma». El-Rei, em resposta, encomendou-lhe muito que assim.fizesse e, caso lhe parecesse conveniente, mandasse no navio ou fusta mercadorias para resgatar as da terra «e saber verdadeiramente as que há nela».
Desta vez, a baía fora, efectivamente, «descoberta» — descoberta política e economicamente. Para a geografia, Lourenço Marques não foi o seu descobridor. Mas, para a história, foi-o e não é sem justiça que o seu nome se perpetua na cidade que germinou nas praias e pântanos de Cá-Mpfumo.
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