Tombou a (última) pedra angular da nossa moçambicanidade* |
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Escrito por Inocêncio Albino em 02 Novembro 2012 |
Se no nosso país não se vivesse de amnésias – em relação ao passado sociocultural e político – neste momento de grande perda, no mínimo, como um povo, ia-se ter a consciência de que, em João Mendes, se foi uma pedra angular da nossa moçambicanidade.
A morte, uma eterna meretriz, sempre inoportuna, mais uma vez surpreendeu-nos ao devorar um dos nossos irmãos. Foi-se João Mendes. E desta vez, é definitivo. Estamos perdidos. Ficámos sozinhos. “Só nós podemos gritar e revoltar-nos/ porque fomos roubados”, considera Noémia de Sousa – outra figura singular que se foi – ao mesmo tempo que reitera a sua indignação: “Porque nos roubaram o nosso irmão mais velho/ aquele que conhecia todos os trilhos abertos na mata/ – os melhores e os piores...”.
Melancólico e irreparável, o facto é que faleceu, no passado 15 de Outubro de 2012, João Marques de Almeida Mendes (um dos fundadores dos movimentos nacionalistas da libertação nacional). Aquele que também foi um dos primeiros presos políticos pelo sistema português, por causa do seu envolvimento nos movimentos nacionalistas moçambicanos na luta pela liberdade do nosso povo.
No período colonial, João Mendes lutou pela liberdade dos moçambicanos, dos angolanos, dos cabo-verdianos (...). “Ele foi um homem pacífico, mas lutou. No passado, poucos, como João Mendes, lutaram pelo conjunto. A razão da sua ideologia, expressa há meio século, era o bem-estar do povo. No entanto, como não pegou em armas, não tirou o maior bem dos seres humanos, a vida, para eles João não foi nacionalista”, lamenta Camilo de Sousa, um dos célebres cineastas de que Moçambique se orgulha.
Neste país em que “eles não sabem/ que a verdade incompleta/ inocente/ é arma da mentira criminosa”, ou, pior que isso, ainda que João Mendes tenha lutado por todos, “eles não sabem/ que para salvar o ente querido – como aconteceu, agora, a Mendes – morreram os ente queridos/ de tantos outros”. Ninguém (re)conhece João?
Reagindo a este eterno e inconveniente acontecimento, a morte de João Mendes, mas, acima de tudo à indiferença manifesta por parte de algumas entidades nacionais, em artigo intitulado “Faleceu o pró nacionalista João Mendes”, publicado no semanário Savana do dia 26 de Outubro de 2012, em jeito de crítica, Abdul Sulemane considera: “Embora tenha sido uma figura preponderante no pró- nacionalismo moçambicano, na cerimónia fúnebre não estiveram presente membros da Frelimo, do Ministério da Cultura, nem da Associação dos Escritores Moçambicanos”. Então, quem foi João Mendes?
João é Moçambique
Uma forma de responder à questão de forma resumida e, provavelmente, adequada seria admitir (como escreveu Noémia de Sousa na obra Sangue Negro, em que lhe dedica o Livro do João) que “João e Moçambique confundiam-se/ João não seria (...) sem Moçambique”.
Num prefácio assinado por Francisco Noa, na obra “Ser” – da autoria do perecido – revela-se que “Mais do que contemporâneo dos grandes inspiradores da consciência nacionalista em Moçambique, João Mendes foi seguramente o grande mentor dessa gloriosa geração onde pontificam Noémia, Craveirinha, Ricardo Rangel, Rui Knopfli, João Fonseca Amaral e Rui Guerra”.
Sendo, por essa razão, que só num “país em que se vive de amnésias” (como em certa ocasião o escritor moçambicano, Nelson Saúte, que falava à margem de uma cerimónia de homenagem a Noémia de Sousa, realizada em Maputo considerou) se pode manifestar tamanho desconhecimento ou indiferença – se é que assim se pode classificar o aludido comportamento – em relação a João Mendes. Ele, como tem acontecido com poucos, foi/é personagem de Noémia de Sousa na obra Sangue Negro.
Uma sociedade (que sofre) de amnésia
É verdade que fazendo face a um país cuja crónica oficial sublima unicamente o passado bélico sob o ponto de vista militar, o que faz com que António Sopa refira que “Também nós, no nosso país, tivemos o nosso Ano I, iniciado após a independência nacional, e a nossa história começava apenas com o surgimento da Frente de Libertação de Moçambique e do combate contra a presença estrangeira no território. Nada mais existia, já que não tinha qualquer importância para a gesta heróica que levou à libertação nacional”.
Será, portanto, essa narrativa oficial que se encarregará – com impacto em João Mendes – de engendrar um fenómeno fatal para a história. “Personalidade e acontecimentos foram simplesmente ignorados ou rasurados ao serviço bem-intencionado desta causa maior”.
Remando contra esta tendência, o historiador António Sopa (que os imortaliza) afirma que “O meu amigo João Mendes e os seus companheiros, que integraram o Movimento dos Jovens Democratas de Moçambique, presos em 1949, merecem, por isso, ser resgatados do esquecimento. Não só por um acto de justiça, que urgentemente se impõe, mas por representar ainda um momento radicalmente diferente na actividade nacionalista neste território, manifestando-se através da constituição de uma estrutura verdadeiramente partidária, bem organizada, funcionando num quadro de clandestinidade, que a realidade política de então obrigava”.
O que Sopa pretendia explicar, de forma mais resumida e talvez objectiva, é que “alguns de nós sabiam que esta história – a do nacionalismo moçambicano –, era muito mais complexa e rica, cujos contornos ainda hoje não estão verdadeiramente estudados e conhecidos. Durante bastante tempo tivemos que conviver com a amnésia que nos foi imposta, numa altura que pensávamos que se poderia fazer justiça a esses homens e mulheres, que militaram generosamente contra a presença estrangeira, exigindo o fim do sistema colonial”.
Lutar por África
Várias vezes preso, por causa dos movimentos contestatários em que estava envolvido, o nacionalismo de João Mendes não somente se restringiu à luta pela liberdade do povo moçambicano. Ele lutou por Angola, São Tomé e Guiné-Bissau. Mas como decorreu a sua prisão?
“Na colónia, após as manifestações públicas de satisfação pela vitória dos aliados na 2ª Guerra e da agitação provocada pelos comícios da oposição democrática a favor do general Norton de Matos, em 1949, tudo parecia ter regressado à normalidade habitual”, explica António Sopa.
A prisão de João Mendes, a par de Ricardo Rangel que o acompanhava, ocorreu numa situação em que se encontravam a distribuir panfletos – assinados sob a orientação de Os Humanos, (...) pela calada da noite, pelos quintais das residências ou eram metidos, porta a porta, nos estabelecimentos comerciais e repartições públicas –, nos actuais armazéns da Delta Trading, no cruzamento das avenidas 25 de Setembro e Guerra Popular.
António Sopa explica que se tratou de uma ocorrência, a prisão de Mendes, “que teve um profundo impacto entre os jovens de Lourenço Marques, sobretudo entre o grupo de amigos `de cor´ com quem confraternizava. Este sentimento foi dolorosamente expresso nos poemas que Noémia de Sousa lhe dedicou, no seu livro Sangue Negro”, como se pode ler.
“E perguntamos:/ Mas por que nos levam João,/ João que eram jovem e ardente como nós,/ João sedento de vida,/ João que era irmão de todos nós?/ (...) João que tinha sempre um alojamento para qualquer de nós,/ João que era nossa mãe e nosso pai,/ João que seria Cristo por nós,/ João que é tão nosso?/ Oh por que nos roubaram João?”. Ao que tudo indica, de facto, para os seus contemporâneos, “João era sangue e suor das multidões”, como, muito bem, mais adiante, este sentido de comunidade é expresso por Noémia de Sousa no Poema de João.
“Mas que importa? (...) /Julgam que nos roubaram, mas João está connosco, / está nos outros que virão,/ (...) porque João não é só,/ (...) João, sendo João, também é Joaquim, José,/ Abdula, Fang, é Mussumbuluco, é Mascarenhas,/ Omar, Yutang, Fabião.../João é multidão, sangue e suor da multidão”.
Envolvido em movimentos políticos
Preso, em 1949, João Mendes é embarcado para Portugal, num navio cargueiro, a par do advogado Henrique Beirão, onde conheceu as prisões políticas de Caixias e Aljube, antes de se fixar em Angola.
Em Angola, onde trabalhou como topógrafo – chegou a ser submetido à dura realidade de trabalho forçado (xibalo), como narra António Sopa, – “João Mendes não abandona a sua actividade política, militando na Frente da Unidade Angolana (FUA), até ao assalto das cadeias de Luanda, em 4 de Fevereiro de 1961. Novamente preso e colocado sob residência fixa em Portugal, entrará em contacto com Agostinho Neto para a definição do novo quadro de actuação da FUA, dentro do movimento nacionalista angolano. Já em França, entrará em ruptura com este grupo político, por se pretender afirmar fora daquilo que tinha sido anteriormente definido.
É a partir deste momento que a sua actividade se voltará novamente para Moçambique, actuando como pivot dos ingressos da Frente de Libertação de Moçambique, em França. É já neste ciclo de actividades que regressa clandestinamente a Moçambique, no segundo semestre de 1963, usando um passaporte suíço, para tentar estabelecer em Lourenço Marques uma rede de apoio à FRELIMO.
Faltavam poucos anos para o advento da independência quando João Mendes, ainda que desligado da universidade e sem formação académica específica, resolve escrever um livro, La Revolucione en Afrique: problémes et perspectives, a fim de retratar a realidade africana. António Sopa afirma que o livro que saiu, em 1970, sob edição do autor, “acabou por desmontar um novo conjunto de mitos que se iam criando, ao serviço das novas elites africanas”.
Em resultado disso, como afirma realça o historiador, o dito documento não foi bem recebido pela Frente de Libertação de Moçambique, já que não ia ao encontro das ideias prevalecentes sobre o que se passava no continente. Por essa razão, naqueles anos, usando um passaporte argelino regressa novamente a França, “onde vai trabalhar como medidor de obras num gabinete de arquitectos. A convite de Vasco Cabral, colaborará ainda na elaboração da História da Guiné, sob a coordenação do historiador J. Suret-Canale”.
Por tudo isso, na leitura de Sopa, “Nada do que poderá ter feito posteriormente, no período de transição para a independência do país (onde chegou em Novembro de 1974) e, depois, já no período pós-independência, pode alterar a imagem de cidadão que João Mendes sempre assumiu”.
“Donde para onde”
Além do livro “Ser”, uma obra poética publicada em 2004, dois anos mais tarde, reconhecendo que “temos sido várias vezes e por várias pessoas, lembrando-nos ser um dever, incitados à publicação das memórias. Temos consciência de dispormos de conhecimento para, participando no conjunto plural, contribuir para a determinação, o mais nitidamente possível, da realidade do processo da luta de libertação nacional do nosso país”. João Mendes publica – sob chancela da editora Promédia – a obra “Donde para onde”, na qual sugere “Tópicos para o estudo do movimento de libertação nacional moçambicano”.
Ainda que a publicação de literatura científica sobre a história colonial moçambicana se tenha tornado fecunda no país, a mesma, invariavelmente, é da autoria de analistas e investigadores estrangeiros – muitos dos quais não tiveram uma participação directa no fenómeno da ocupação e dominação colonial nas chamadas “colónias portuguesas” – sendo por essa razão que se apoiam na consulta de documentos oficiais do Governo português, incluindo personalidades que tenham participado.
É nesse contexto que, a par de tudo isso, o mérito da obra de João Mendes se irá traduzir numa realidade em que “sentimos como obrigação de militante, participante activo do nosso Movimento de Libertação Nacional, desde a década 40, tentar contribuir para o mais completo conhecimento da realidade do nosso processo de libertação desde a criação de colónia a país independente e, sempre ainda, em luta pela libertação total”, como o autor refere.
João Mendes é eterno
Reconheçamos então – como está escrito na obra “Ser” – que “quando a realidade mata/ a poesia empunha/ o estandarte do humanismo”, procurando dessa forma demonstrar (numa possível descrição da sua personalidade) que João Mendes é uma entidade que se sublima num processo em que – até à data da sua morte, vítima de doença – se manteve “sem vaidade com personalidade/ sem heroísmo com humanismo/ sem furor com amor”.
Agora, ainda que desta vez – roubado eternamente pelo falecimento –, da sua experiência, personalidade, obra que se tornou uma verdadeira relíquia, se podem aprender valiosas lições, lutando-se contra esse EGOÍSMO social que faz com que eles se comportem de forma imprudente. Afinal, “(...) sabem e não se importam/ que os excessos do seu luxo/ se alimentam da fome, sede e doença/ de milhões de pessoas”.
Sim, fingindo de que se esqueceram dos DIREITOS HUMANOS, “eles/ os autocratas e plutocratas/ enformando democracia/ privatizando liberdade/ nos aprisionam em campo minado/ e nos impõem/ o mais ignóbil direito humano: o de explorar/ e nos interditam/ o mais humano direito: o de viver”. João Mendes nasceu no dia 07 de Julho de 1926, tendo encontrado a morte a 15 de Outubro de 2012, aos 86 anos. Paz à sua alma!
*A produção deste artigo baseou-se, essencialmente, na consulta da obras “Sangue Negro”, de Noémia de Sousa, “Ser” e “Donde para onde – Tópicos para o estudo do movimento de libertação nacional moçambicano”, ambos da autoria de João Mendes.
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