Quando se fala de cartoons em Angola, o seu nome aparece sempre associado. Por isso, há quem o considere o maior entre nós. Mesmo assim tem sido preterido dos festivais de banda desenhada realizados no país. Mas, com o seu Mankiko e outras figuras tem procurado retratar a política, a sociedade, a economia, as relações internacionais e o desporto. Não há nada que passe despercebido da sua caneta mágica e do seu olho clínico. É sobre estes assuntos, acima designados, que O PAÍS conversa com este discípulo de Henrique Abranches e ‘pai biológico’ do célebre Mankiko, o Imbumbável: Sérgio Piçarra
Quando vê o país hoje, o que lhe apetece desenhar?
GE2Desenhar um cartoon. Se calhar, um cartoon muito preocupado, eventualmente com pouca graça. Porque a situação actual não dá graça nenhuma. Mas, mesmo assim, para ser cartoon tinha que ter mesmo alguma piada.
Fez com Lito Silva «Os Prubulemas que estamos com ele»?
Isso foi há 25 anos.
Quais são «Os Prubulemas que estamos com ele» agora no país?
São quase os mesmos.
Quais?
Na altura, estávamos a viver, digamos, um período bom que era o de abertura. Foi exactamente neste contexto em que aparecem os cartoons. Um contexto em que havia as conversações de paz com a UNITA, uma perspectiva de abertura democrática e de democracia. E foi aí que apareceram exactamente os cartoons.
Eles beneficiaram desta abertura. Hoje em dia, estes anos todos passados, e com tudo aquilo que ocorreu. No entretanto, com o regresso à guerra, a morte de Savimbi e tudo o mais que aconteceu, a tal abetura que se tinha iniciado naquela altura começou a esmorecer, a desaparecer, a fechar.
Hoje temos, mais ou menos, o problema como tínhamos antes, que é o da abertura. Para além da água, da luz e do engarrafamento, etc, continuamos a ter preocupantemente este problema da abertura.
Numa entrevista que concedeu ao Mail& Guardian identificaram-no como o «Zapiro angolano». Gosta de ser conhecido assim?
Não. Eu acho que isso é um exagero. É uma simpatia da jornalista que me associou a um cartoonista de quem estou há a anos luz de distância. Zapiro está noutra dimensão. Como disse, não só a nível da qualidade como também daquilo que lhe é permitido exprimir num contexto como o da África do Sul, que é muito diferente do nosso.
Como é o nosso contexto para se ser cartoonista?
Tenho dito que não sou daqueles que se podem queixar muito de pressão ou de ameaças. Aliás, na entrevista anterior já disse que não tenho nada, ou que tenha conhecimento, a reclamar em relação a pressões.
Mas há duas questões que saltam à vista: uma delas é o facto de ter começado a minha carreira de cartoonista no Jornal de Angola e que hoje não me seja possível publicar lá. Posso dizer que não tenho censura, mas tenho subjacente esse problema que implica implicitamente uma censura. E, por outro lado, o facto de ser excluído do Festival de Cartoon que se faz todos os anos no país.
Sabe porque é que tem sido excluído?
Não tenho qualquer conhecimento sobre o assunto. Apenas sou excluído. Eu e outros.
Mas sobre o Jornal de Angola, sabemos que um cartoon seu terá estado na origem da demissão deum ex-director desta publicação. É verdade?
É o que consta. Que o director na altura não viu previamente o cartoon.
Quem era o director?
Victor Silva. Ele deixou passar um dos meus cartoons e no dia seguinte estava demitido.
O que é que o cartoon retratava?
A realidade da altura que não é diferente da actual.
Qual era a realidade que não é diferente da actual?
Promessas. Mas quero aqui fazer um parêntesis: foi um cartoon que depois foi leiloado e se arrecadou cerca de 600 dólares no leilão. Este valor foi depois atribuído ao programa ‘Um Tecto para os Meninos de Rua’, Manuel Dionísio tinha na rádio Luanda Antena Comercial (LAC).
Esse valor depois foi canalizado para este projecto através do falecido Tirso Amaral. O cartoon era, evidentemente, acerca das promessas que eram feitas na altura, os pacotes de medidas económicas que se iriam implementar, mas nunca chegaram de ser implementadas ou, eram implementadas muito deficientemente e o sofredor sempre era o povo.
Quando faz esse cartoon as liberdades diferiam muito das de hoje?
Naquela altura, o clima já estava a começar a fechar, porque se bem me lembro, isso foi em 1995 ou 1997. Aí já tinha-se retornado à guerra, Savimbi já tinha retornado à guerra, e portanto tudo aquilo que já estava aberto tinha começado a fechar-se.
Ainda continua a fechar?
Pelo menos no que diz respeito ao Jornal de Angola, sim em absoluto. Em relação aos jornais privados não posso afirmar com toda a certeza. Tenho uma colaboração com o Novo Jornal, que é privado. É uma colaboração um bocado intermitente.
Dizia-se que estavas em vias de ser despedido também do Novo Jornal. O que se passou concretamente?
Tinham rescindido o contrato através de um e-mail que me foi emitido directamente pela administração do jornal, sem o conhecimento prévio da direcção do jornal. Esta situação durou alguns meses. A directora demitiu-se pouco depois e com a nova direcção fui convidado novamente a fazer parte do projecto.
O académico António Tomáz diz que ‘Sérgio Piçarra faz-nos rir dos nossos políticos e do nosso sistema’. É esse o sentimento que tem das suas obras?
Eu faço os cartoons, agora vocês os leitores é que dizem se se riem ou não.
Não faz uma autoavaliação?
GE1Eu faço um retrato daquilo que é a minha observação das situações, dos contextos. E trato de fazer uma sátira da situação que observo no nosso quotidiano. O resto cabe aos críticos e os leitores analisarem.
Quando coloca o Boss Malaquias e as suas façanhas, sempre para tentar corromper a Fatita, é o retrato fiel que tem do político angolano?
É uma tentativa sim de retratar um certo tipo de indivíduos que conhecemos no contexto em que vivemos. O Mankiko e todo o contexto à volta das estórias é realmente uma forma de retratar de forma satírica a nossa realidade.
Mankiko tenta inúmeras vezes e nada dá certo na sua vida. É o que acontece também com as pessoas e os nossos programas governativos?
A intenção das estórias do Mankiko não é retratar os políticos. É para retratar, num âmbito mais geral, todas as nossas makas e vivências do dia a dia. Repare que ele vive com a mulher em casa da sogra, e ainda por cima não pagou alembamento…quantos de nós está ou já esteve nesta situação?
Mas quando Mankiko está a brincar de diversificação económica, discursa num plenário ou brinca aos partidos políticos para sobreviver à vida, não é um retrato fiel do que vivemos?
É uma tentativa de retrato. Não sei se é fiel, isso você é que vai ter que me dizer. Risos.
Os temas que aborda não lhe têm trazido problemas?
Como já lhe disse anteriormente, exceptuando aquelas duas situações que citei não tenho tido problemas de maior, que tenha consciência. Não sei se haverá alguém na sombra a manobrar, mas até agora ela ainda não se manifestou.
Desde miúdo que mexes em temas complicados, tal como nos garantiste em tempos. Os temas actuais são complicados, porquê?
Por tudo isso que acabamos de referir. A situação política por si só já é um tema complicado de abordar. A realidade em concreto, neste momento é igualmente um tema complicado. Não havendo muita abertura e perante toda uma atmosfera que induz à censura e à repressão, fica ainda mais complicado.
Infelizmente, há uma veia minha qualquer que me puxa para estes temas. O país político está mergulhado em vários cenários e acabaste por introduzir algumas coisas também.
Quem é afinal o «revú, jivú, bajú e medrú»?
Risos. O Dani faz-me perguntas que não devo supostamente ser exactamente eu a responder.
Dou a deixa para que o próprio público interprete. Acho que a mensagem por si só fala por si. Portanto, não tenho que explicar mais nada.
O que acha das reivindicações que estão a ser feitas pelos jovens, identificados como revús, assim como a situação de Luaty Beirão?
Acho justas. O sistema caiu numa ilegalidade muito grande em tê-los presos preventivamente sem provas concretas. Já se passou o prazo de prisão preventiva, está um dos rapazes em greve de fome em risco de vida neste momento, e nesse contexto, tratando-se de vidas humanas que o Estado tem obrigação de proteger, acho que são muito justas as reivindicações.
Especulou-se muito em relação às nomeações dos jovens Luvualu de Carvalho e Norberto Garcia. Quer comentar?
Isso tonar-se difícil de comentar porque não se percebem bem quais são os critérios ao mais alto nível que levam a essas nomeações. Portanto, acho que só o Presidente da República poderá explicar. Mas ele também não deve explicações a esse respeito, porque nomeia e exonera quem ele bem entender.
Vê-se como um dos maiores cartoonistas angolanos?
Não. Lá estás a fazer-me perguntas que era suposto ser o público a dizer. Acho que nesta área específica do chamado cartoon editorial, que é o chamado cartoon editorial, aquele que acompanha a realidade política, social, a um ritmo diário ou semanal, há um grande vazio. Havia o Lito Silva. Mas já deixou. Não me vejo como o grande, nem pouco mais ou menos, onde há grandes cartoonistas eu não sou nada.
Um estudioso moçambicano, dono do blogue «diário de um sociólogo» considera-lhe o melhor. O que pensa?
Se foi a opinião dele, é preciso respeitar. Vale o que vale. Mas agradeço a simpatia.
Não há condições para regressarmos aos anos 90, em que havia muita produção de cartoons?
Acho que a predisposição continua a existir. Não é por aí. A questão não é essa. Eu tenho publicado cartoons no Rede Angola e nos jornais, também através das redes sociais. A aderência é muito grande e as pessoas gostam de ver. Comentam. Há pessoas que não gostam e outras que gostam. Enfim! Mas acho que a aderência por si só é muito positiva. O que faltará pode ser outra coisa.
Quais são as outras coisas?
Por exemplo, que o Jornal de Angola volte a publicar cartoons que sejam genuínos e com liberdade crítica. E eu falo no Jornal de Angola porque ele tem uma responsabilidade acrescida como órgão público e como único diário do país. E tendo sido lá onde eu nasci na verdade. Entrei para o Jornal de Angola como colaborador com 14 anos de idade e fiz-me cartoonista lá. Acho que se o Jornal de Angola abrir para o verdadeiro cartoon, aí sim estaríamos a dar um grande passo em matéria de abertura.
Vê-se que o Jornal de Angola tem feito alguns cartoons. A oposição tem criticado porque se diz visada. Tem alguma opinião?
Eu vejo muito pouco o Jornal de Angola, porque já sei mais ou menos o que vou encontrar. Acho que, enfim, aquilo não me parece ser um trabalho de autor, mas sim de encomenda e de seguimento apenas da linha editorial do Jornal de Angola. O que é triste, porque isso não abona em nada a liberdade de expressão.
Sempre que sai de Angola e cruza-se com outros colegas noutros países, eles têm dado um bom trata-mento ao Sérgio Piçarra?
Nada de especial. Não sou nenhuma estrela. Não sou músico nem cantor. Portanto, nesta área sou relativa-mente desconhecido do grande público. Há coisas que só os músicos é que usufruem normalmente.
Tem noção de que há jovens que compram os jornais só por causa dos cartoons?
Sei que nos anos 90 muita gente só comprava os jornais para ver os cartoons. Actualmente, não sei nem posso confirmar.
Tem tido contacto com jovens que queiram entrar para o mundo da banda desenhada?
Sim, há alguns jovens que procuram entrar. Mas não com a frequência que seria desejável. Hoje em dia sabes que os tempos também são outros e os jovens estão muito direccionados para outras coisas. Como para a informática, animação e design gráfico, excepto aquilo que se faz a nível deste festival, não vejo assim um grande apego a esta arte.
O nome Henrique Abranches diz-lhe alguma coisa?
Certamente que diz, sobretudo por ele ter sido o pai da banda desenhada angolana e por eu ter sido discípulo dele. Acho que isso diz tudo e não há muito mais para acrescentar para além daquilo que já se conhece.
‘Acho que tenho exagerado pouco’
Quando tentamos marcar esta entrevista manifestou alguma preocupação em relação à liberdade de imprensa no país. Quais são as grandes transformações que ocorrem a nível da imprensa ?
GENão sei se tem havido grandes transformações. Acho que houve algumas mudanças não necessariamente para melhor. E é preciso sempre separar os órgãos públicos dos privados. Nos últimos anos, o que se tem visto a nível dos órgãos públicos é que há um défice muito grande a nível do contraditório. São veiculadas notícias, feitos debates e outros tipos de publicação sem contraditório.
Há um bloqueio grande às vozes da oposição e às vozes independentes. Mas isso já acontece há alguns anos. A nível da imprensa privada há mais abertura, naturalmente, mas também não tanta como aquela que seria desejada, porque correm informações segundo as quais muitos órgãos privados foram comprados por empresas de gente de que não temos informação nenhuma, nem sabemos quem são.
São sociedades anónimas e não se sabe com que propósitos terão comprado determinados jornais. Se isso fará parte de uma estratégia de controlo da informação não sei, mas dá para notar que há alguns jornais que perderam qualidade.
Temos ou não liberdade de imprensa?
Há uma liberdade relativa. Porque ao mesmo tempo que temos debates na Zimbo e agora também na TPA, temos estas mesmas emissoras a ignorarem e manipularem noticias sobre as manifestações por exemplo. De um lado há jornais que chegam a insultar determinadas figuras e de outro lado temos um Jornal de Angola que é igualzinho ao que era no partido único. É uma leitura difícil de fazer, onde o partido no poder sai a ganhar, obviamente.
Como cartoonista tem tido a liberdade de desenhar o que pretende?
Até certo ponto sim.
O que significa «até certo ponto»?
Significa que se quiser publicar o mesmo cartoon no Jornal de Angola, não é possível.
Nunca teve impedimentos no Novo Jornal ou num outro órgão?
No Novo Jornal nunca tive. Excepto uma única vez, mas não foi relevante. Agora também se coloca a situação de que é necessário também fazer equilíbrios. A gente também sabe que é complicado tocar em determinados assuntos. Como há um contexto que não apela muito a abertura, aparece fatalmente a auto-censura.
Quais são estes assuntos que não se deve puxar?
Há dias estive a falar com uma pessoa amiga que referiu a auto-censura como grande problema da comunicação social em Angola. Possibilidade da qual discordo completamente. Tive o cuidado de lhe dizer que a auto-censura é filha de pai e mãe da censura.
Está-se a referir a uma jornalista que concedeu uma entrevista recentemente sobre o assunto?
Exactamente. Tive uma conversa cordial com ela, com a qual ela concordou e expôs também o seu ponto de vista. Também percebi que de facto é um problema. Mas é um problema que decorre do outro. Acho que não há auto-censura se não houver o conhecimento prévio de que eu como jornalista, se falar de determinados assuntos, vou ter problemas ou quando sei que o meu colega foi suspenso porque falou sobre determinado assunto. Ou porque perdeu emprego por ter falado sobre determinado assunto. Havendo essa atmosfera a nossa volta, é evidente que devo pensar duas vezes antes de falar nisto ou criticar aquilo. Vou-me auto-censurar. Também me auto-censuro todos os dias.
Quem vê os teus cartoons não tem essa impressão.
Para o nosso contexto podem parecer ousados, mas o cartoon por natureza tem que ser irreverente e ousado. Tem que «chocar» e provocar reacções. Quem conhece cartoon em outras paragens vai perceber que o meu cartoon é muito suave. Aqui bem perto, na África do Sul, o presidente da República é satirizado todos os dias pelos cartoonistas e humoristas em geral. O mesmo acontece em Portugal e no Brasil só para falar de realidades que conhecemos mais ou menos bem.
Em que país democrático do mundo a política e os políticos são os maiores provedores de material para os humoristas?
Entre nós, tocar na figura do Presidente e de outras figuras, ainda é delicado.
Não é muito ousado quando sugere a criação de um Instituto Superior de Bajulação?
O humor é isso, é o exagero. Se estivermos a fazer uma piada sobre o gordo, magro e o feio, vamos dizer, por exemplo, que o gordo tem uma barriga de não sei quantos metros. E ele não tem uma barriga de um ou dois metros. O exagero é um dos elementos fundamentais do humor em geral.
Tem exagerado muito?
GE3Acho que não. Acho que tenho exagerado pouco para aquilo que é a nossa realidade. Já me disseram que a realidade tem ultrapassado muito os meus cartoons. Às vezes, estou atrás da realidade. Por exemplo, há dias fiz um cartoon muito difícil. Dos mais difíceis de se fazer.
Qual?
Foi acerca de inaugurações de estradas que foram feitas sem elas terem sido previamente asfaltadas. Ou seja, inauguraram estradas de terra batida. E queriam que fizesse algo sobre isso.
Como é possível fazer-se um cartoon de um cartoon?
É complicado. Por isso, é que às vezes sinto que estou atrás. O cartoon tem que estar à frente, tem que aludir ao exagero fazendo passar uma mensagem sensata que faça as pessoas pensar. Mas a realidade já é tão exagerada que se for a exagerar mais corre-se o risco de partir para a ofensa.
Acha a nossa realidade tão exagerada a ponto de não se poder descrever num cartoon?
Em determinadas situações, sim. Elas podem ser descritas, naturalmente, só que se calhar haverão consequências depois disso.
Teme por alguma consequência?
Acho que todos nós tememos. Eu não sou nenhum arauto da coragem ou da ousadia. Faço aquilo que acho que posso fazer dentro do nosso contexto específico.
Como é que viu aquele cartoon em que se procura, supostamente, descrever um órgão genital de um presidente sul-africano?
Lá está. Entramos no âmbito do exagero, onde a realidade ultrapassa a ficção, é o cartoon. O presidente (Jacob) Zuma é conhecido por ter várias mulheres e não sei quantos filhos. E há um pintor que fez uma determinada pintura numa posição com o pénis de fora. Depois houve um outro cartoon.
O famoso «Zuma shower»?
Essa é outra estória. O Zapiro desenha sempre o Presidente Zuma com um chuveirinho à cabeça. Isso foi depois daquela estória antiga de que ele eventualmente terá violado uma moça que tinha HIV. Ele quando foi ao tribunal disse que não tinha apanhado HIV porque tomou um banho. A partir dai o cartoonista pegou. Aquilo é tão ridículo, uma resposta destas. Estás a ver o material que os próprios políticos dão aos cartoonistas!
O que lhe pareceu a questão do Charlie Hebdo?
Esta é uma das questões mais delicadas. Estamos a falar de um género
de cartoon que parte mesmo para aquele tipo de ridicularização com a qual não concordo.
Não aderiu ao slogan «Je Sui Charlie»?
É assim: há duas coisas que têm que ser distintas nesta questão. Uma é liberdade de expressão e a outra é o direito a matar alguém. Os cartoonistas não mataram nem matam ninguém. Portanto, acho que ninguém merece ser morto daquela maneira nem de maneira alguma mesmo que tenha ofendido alguém.
Mas um cartoon não pode «matar» também?
Não. Quanto muito pode ofender. O cartoonista não pegou numa arma e matou alguém. Pode ter ofendido, mas acho que a retaliação a isso não pode ser a morte. Não se pode matar alguém por exprimir uma opinião, por mais ofensiva que ela seja. Você processa o indivíduo, tenha um debate com ele ou faz todo o possível para se sentir que você agiu dentro das normas da decência do mundo civilizado. O que aconteceu foi uma barbárie.
‘Não há nada pior para espelhar um país do que ter uma polícia corrupta’
Mankiko completou 25 anos. Qual é a avaliação que faz do nosso «imbumbável»?
Há uma situação que é preciso explicar e é um facto. O Mankiko nasceu há 25 anos, mas ele é tão imbumbável que não esteve este tempo todo no activo. Teve muitas paragens e regressou há pouco tempo. Os 25 anos é relativo a ele sim, mas é também mais relativo à minha pessoa como cartoonista. Iniciei a minha carreira há 25 anos, também com algumas interrupções, mas não foi por falta de vontade de trabalhar.
Por quanto tempo teremos ainda o Mankiko?
Até aonde for possível.
Vai continuar com a Fatita ou vai-se aborrecer dele?
Isso tem que perguntar a ele. Não me meto em maka de casal.
O que é que ainda não retratou com o Mankiko?
Talvez aquilo que ainda falta acontecer. Ainda deve estar para acontecer várias coisas. Portanto, ele como normalmente entra em situações que têm a ver com a actualidade e outras que com certeza já aconteceram. Ele também não acompanha tudo. Deitado à sombra da bananeira, se calhar, não consegue apanhar tudo.
Mas o Mankiko tem andado bem acompanhado nos últimos tempos com o amigo chinês Pim-Plum. A relação entre os angolanos e chineses é assim tão preocupante?
Diante desta crise económica que estamos a viver e com o protagonismo que a China está a ter pelo mundo e em Angola, em particular, acho que é muito preocupante. Porque foi feito agora uma série de acordo dos quais não temos pormenores como cidadãos. Se não me preocupasse não estaria a ser cidadão neste momento.
As artimanhas feitas pelo Mankiko para convencer as outras personagens a entrar nas suas negociatas é o que acontece no nosso dia-a-dia?
Então não é! É só a gente sair com o carro e apanhar aí um polícia para ser já penteado ou gasosado.
Mas o pente é tão grave como aquele enorme pente que retrataste há dias?
Estamos muito mal no capítulo corrupção e não é de hoje. O problema da corrupção na Polícia, na verdade não é um problema da Polícia. É um problema de toda a sociedade, dos exemplos que recebe de cima e da impunidade.
Quando o Sérgio Piçarra desenha um polícia a pedir saldo ao próprio Chefe é sinal de que já não há medo em relação ao pente?
A mensagem é mais profunda. A sátira quer dizer que não é com reuniões e resoluções dizendo que a partir de hoje vamos acabar com a corrupção, que ela vai acabar. É com outro tipo de medidas. Podemos dizer ao agente da polícia que vamos acabar com a corrupção, mas isso vai entrar num ouvido e sair no outro, enquanto o salário dele for aquele.
Com esse cartoon pretendo dizer que o problema da corrupção não é da Polícia, é um problema de quem dá exemplos no país. E se ao mais alto nível há corrupção, é evidente que na Polícia há corrupção e em tudo que vem por aí abaixo. Há dias li alguém que dizia que, no contexto angolano, todos nós somos vítimas e actores da corrupção. Concordo. É muito difícil fugir dela, porque se para uns é um modo rápido de enriquecer, para outros é uma questão de sobrevivência.
A paralisação dos taxistas tem alguma razão da parte deles ou exageraram um bocado?
Eu não tenho muitos detalhes sobre o que aconteceu. Mas sei que neste momento eles devem estar a passar por algumas situações complicadas em relação ao aumento do preço do combustível, que é de quase 100 por cento praticamente. As tarifas não aumentaram e é evidente que devem estar a passar por alguns problemas. Se isso faz parte das reivindicações, parece-me justo.
Mas quando desenhas um sinal de trânsito esquisito, porque não existe no Código de Estrada, quer dizer que os Polícias continuam a ser uma dor de cabeça para os taxistas?
Foi na base daquilo que disse. A polícia é só uma parte do problema e é, por si só, grave. Não há nada pior para espelhar um país do que ter uma polícia corrupta. Mas para se ter um polícia corrupto há todo um contexto que favorece esse estado de coisas.
Não teremos qualquer dia um cartoon onde o Mankiko pratique uma boa acção, sem voltar às suas artimanhas ?
Sim. Nem tudo é mau.
Depende do próprio comportamento da sociedade ou da vontade do Sérgio Piçarra?
Depende sempre de todo um contexto que me pareça que valha a pena ou não valorizar. É preciso explicar que quando se faz sátira ou crítica não significa que tudo esteja mal. Aponto aquelas coisas que estão mal e que para mim são as questões fulcrais e importantes focar na crítica, na tentativa de chamar a atenção para o mesmo. Não é criticar por criticar, nem criticar para destruir. É criticar para chamar atenção e abrir consciências. É assim que deve ser entendido.
Acha que retratou bem a questão do lixo?
Já não me lembro. Qual delas?
O lixo continua a ser inspiração para produzir cartoons?
A questão do lixo é tão preocupante. Aquilo que costumo dizer – e já disse isso numa entrevista – a mim não preocupa o indivíduo que põe o lixo na rua. Preocupa-me porque é que ele está a pôr o lixo na rua. Gosto de procurar as causas. Falar da consequências são coisas que a gente vê no dia a dia.
Uma das causas que tens desenhado é o facto de o próprio Mankiko ter pedido a pessoas amigas e parentes para que criassem empresas e entrassem no negócio do lixo. É assim que vê a forma como se tem tratado a questão do lixo em Luanda?
Tenho ouvido analistas dizerem que a questão do lixo tem a ver com a população que não tem hábitos de higiene e educação cívica de pôr lixo no contentor. Numa tentativa de culpabilizar as pessoas pelo problema, quando sabemos que isso decorre de um problema de gestão interna dos dinheiros públicos, pagamento às operadoras, etc, como a Elisal deveria ter tratado do assunto e não tratou. Chegando ao ponto de não ter havido contentores. E a população vai pôr o lixo aonde? Portanto, são questões de fundo que me preocupam mais e não apenas as consequências.
Porquê que escolheu logo a área de vivência do Mankiko como Bananeira, com a rádio Bananeira e a TV Bananeira?
Risos. Estou contente porque afinal tenho um leitor assíduo e que conhece todos os detalhes e até o Boss Malaquias. A expressão dormir à sombra da bananeira é uma que conhecemos bem aqui e que se coaduna bem com a do imbumbável. Portanto, um indivíduo que não trabalha, estar sentado à sombra da bananeira, logicamente que faz todo o sentido.
Há muitos dirigentes a dormir à sombra da bananeira?
Há pessoas a dormir à sombra de outras coisas, não exactamente da bananeira.
‘Acho que os nossos partidos da oposição são pouco maduros’
O cartão postal para os seus trabalhos é apenas Luanda ou tem retratado outras realidades?
A realidade que melhor conheço é Luanda. Não conheço a totalidade do país, mas também sei que a realidade não difere muito. Não há uma grande diferença de problemas.
Os teus trabalhos estão muito virados para os assuntos sociais e políticos. Como é que tem sido feita a política no nosso país?
Acho que ainda temos muito que aprender, sobretudo enquanto sociedade que se pretende democrática. No que toca aos partidos políticos da oposição, acho que há um grande caminho a percorrer. Acho que os nossos partidos da oposição são muito pouco actuantes, pouco maduros, os seus lideres tem pouca oratória e pouca capacidade argumentativa.
Há também problemas de coerência quando se houve falar que o presidente da UNITA que critica o Presidente da República pelos 36 anos no poder, vai ele também, concorrer a mais um mandato à presidência do seu partido. Compreendo que são dimensões diferentes, mas não é um bom sinal para a alternância do poder que ele diz defender.
E quando ao partido no poder, o MPLA?
O partido no poder também tem um grande caminho a percorrer, no sentido em que ele precisa de se libertar de determinadas amarras e heranças que hoje em dia, em pleno século XXI, já não se justificam.
Que tipo de heranças?
Por exemplo, o coarctar das liberdades e bloqueio do acesso da oposição e de figuras independentes aos órgãos de comunicação públicos. Isso dá a ideia de que têm medo ou que escondem alguma coisa. E sobretudo essa ideia de que quem critíca é inimigo, quem não está connosco é contra nós. Acho que há ainda um grande caminho a percorrer a nível das mentalidades.
A UNITA, que tem um galo negro na sua bandeira, está numa confrontação com um outro partido que tem um embondeiro ao centro. Já pensou retractar isso?
Ainda não, mas é uma ideia.
Porquê não?
Mas isso para mim é focar em assuntos menores. Acho que a UNITA não deveria estar preocupada com uma bandeira que é alegadamente parecida. Eu até não acho parecida. Devia estar mais preocupada com assuntos mais preocupantes que esse.
Quais?
Com a justiça, por exemplo, com o facto de estarmos diante desta ilegalidade de termos esses rapazes presos como estão. Com a denúncia de casos de corrupção, com a denúncia da incompetência. Mas uma denúncia fundamentada, com dados, números, nomes, documentos…
Mesmo que os tais órgãos públicos estejam bloqueados, eles deviam inverter, contornar o obstáculo. Sei que eles têm uma rádio. Não concordo que exista uma rádio partidária, nem que a RNA se comporte como tal. Se fez parte dos acordos de paz a existência de rádios partidárias, o MPLA devia criar a sua e deixar a RNA ser apenas pública.
Tem de haver uma rádio pública onde todo o mundo vai para lá falar, livremente, em directo e sem cortes. Portanto, voltando ao principio, não vejo que esta oposição, tal como a vejo agora, possa ser alternativa ao poder nos próximos tempos.
Qual é a opinião que tem do MPLA?
Ainda há dias li uma frase, acho que é do Pepetela, que diz que o MPLA perdeu muitos daqueles ideais que guiaram o MPLA Movimento, que conduziram a independência do país.
Revia-se no MPLA Movimento?
Sim, em relação aos ideais que o motivaram: independência, sociedade mais justa, liberdade…
Eu acho que é sempre possível. Desde que haja vontade, coragem, pessoas dispostas a isso. A nível da classe da camada mais velha já não vejo coisas no horizonte. Resta a juventude. Mas uma juventude que queira mudar as coisas não apenas seguir orientações partidárias e com intenções materialistas.
Como é que vê os casos dos jovens que até parecem ter ideias mais velhas?
Foi o que disse há bocado. O MPLA precisa de se libertar da herança do partido único, basicamente. O partido único foi durante muitos anos uma ideologia na qual se acreditou e constatou-se que não funcionava. E essa herança impunha uma rádio única, um jornal único e um pensamento único e que está a querer voltar neste momento. Acho que este é o principal problema.
Vivemos uma época de pensamento único?
Há uma tendência que parece nos querer obrigar neste sentido. Felizmente vão havendo vozes em sentido contrário e ainda bem.
Tem acompanhado os debates televisivos feitos pela TV Zimbo?
Tenho com uma satisfação e se constata que começa a haver alguma abertura.
O que lhe diz os debates feitos pela TPA?
Houve um ou dois mais ou menos interessantes. Os restantes foram fracos, sobretudo a nível do painel de intervenientes, que normalmente estão sempre muito desequilibrados. Mas mesmo assim acho que já é um passo positivo a elogiar.
Há uma ideia de que muitos jovens que aderem ao partido estão mais motivados em obter contrapartidas materiais. Qual é a sua opinião?
Eu acho que sim. Acho que se cultivou muito essa onda do ter: ter um grande carro, uma grande casa e uma grande vida. Perderam-se muitos ideais. Já vê, se esse é o exemplo que nos vem de cima, é natural que a juventude os siga.
Pode-se contar com essa nova geração para dirigir o país nos próximos tempos?
Em termos ideológicos eu acho que não. Não vamos dar um grande salto se as ideologias forem as mesmas.
A reconciliação no país está feita?
Claro que não. Há muito mais para se fazer neste sentido. Acho que foram dados alguns passos mas é muito difícil perceber determinados discursos de dirigentes do MPLA que não fazem nenhum sentido neste momento. Sem falar da linguagem usada nos órgãos públicos quando se referem à UNITA acusando-a de retorno à guerra como se esse partido ainda tivesse exército.
O que lhe passa pela cabeça quando no Parlamento desenterram-se coisas do passado em pleno debate sobre a reconciliação nacional?
Isso é consequência do que estava a dizer. Se se pretende fazer de facto um trabalho de reconciliação é uma espécie de pormos uma pedra no passado e partirmos da estaca zero, onde não há inimigos, apenas cidadãos, filhos do mesmo país. Evidentemente, pelo exemplo que estás a dar e outras coisas que temos estado a ver, nos editoriais do Jornal de Angola e noutras coisas que nos brindam, é evidente que não parece haver esta vontade política.
Há deputados que admira?
Que admiro?
Sim.
Deputados e políticos?
Assim de repente não.
Nem na nova geração?
Há dias fiquei bem impressionado no debate da TPA com o senhor Adalberto da Costa Júnior. Com as posições que ele tomou, mas não tenho grandes impressões a assinalar.
Não tem havido muito radicalismo por parte da oposição em não reconhecerem algumas melhorias que estão a ocorrer no país?
Não sei se eles não reconhecem. Não tenho esta impressão. É evidente que aquilo de positivo que for feito tem que ser elogiado. Mas não podemos elogiar, e aí é que está o problema, no sentido de que a pessoa ou instituição nos esteja a fazer um favor. Acho que aquilo que o Governo fizer de positivo faz bem – fica anotado – mas não faz mais do que a sua obrigação. É Governo e é para isso que aí está, para resolver os problemas. Portanto, há pessoas que ficam à espera de reconhecimento só por vaidade, mas é obrigação deles fazerem.
Votou nas eleições de 2008 e 2012?
Não.
Porquê?
Desencanto mesmo.
Não se revê em nenhum partido político?
Não.
Não pensa se filiar?
Não. Gosto muito da minha posição de independente.
O que espera do discurso do Presidente da República sobre o Estado da Nação (entrevista foi feita alguns dias antes)?
É uma pergunta complicada. Já esperei muito de atitudes do mais alto nível, mas têm sido só decepções. Portanto, já não sei se estou em condição de esperar mais muitas coisas. É evidente que a esperança é a última a morrer. Na verdade, espero e gostava muito que fizesse um discurso muito mais positivo e de acordo com o actual momento real do país. E não apenas que expressasse um lado ou uma visão dos acontecimentos.
A Assembleia Nacional tem cumprido com o seu papel?
Como é que vou saber se não transmitem as sessões em directo? Esse é daqueles absurdos que alguns ainda tentam justificar.
O que lhe parece a crise que estamos a viver?
Parece-me que é essencialmente uma crise que tem a ver com a gestão dos recursos do país. Porque dos dados disponíveis facilmente se conclui que se fossem feitos as devidas operações no sentido de acautelar essa crise do petróleo, hoje não estaríamos a viver um período tão apertado como estamos a viver. Basicamente, acho que é um problema de gestão.
Temos um sistema de justiça sério e independente ?
Acho que é complicado falar de Justiça. Oiço alguns comentadores também falarem que vamos esperar que a justiça faça o seu trabalho, etc, etc. E a gente pergunta: que Justiça? Há dias estive a ler que temos não sei quantos mil milionários.
São 4900 milionários só em Luanda, segundo o jornal Expansão. O que pensa?
Cinco mil milionários. Só em Luanda. A justiça algum dia foi tentar perceber de onde é que vieram tais fortunas? Se foram bem ganhas? O escândalo do BESA alguém foi punido? Quando se fala de justiça temos que falar destas coisas todas, que implicam directamente na gestão do país. Porque estes são dinheiros do país. E é por aí onde a justiça deveria actuar. No interesse do país e no da moralização da sociedade. O que eu vejo é a justiça muitas vezes preocupada com questões menores. Quando na verdade poderia actuar em questões muito mais profundas.
Não o fazendo, está a mostrar independência?
Não me parece.

Comentários