OPINIÃO
História social da "cunha"
18/04/2015 - 06:20
A origem das “cunhas” cobre todas as classes sociais e todas as áreas da sociedade.
Nos espólios que tenho organizado relativos ao século XX português há uma constante que os atravessa a todos, sejam de que natureza for, que é a presença maciça de “cunhas”. Literalmente milhares de “cunhas”, que aumentam quanto mais poderosas forem as funções daquele a quem se pede um favor.
Mas esta regra não é assim tão evidente, visto que há também muitas centenas de “cunhas” para pessoas que não tendo altas funções na burocracia do Estado estão colocados numa situação estratégica para concederem favores pessoais de emprego e de carreira. Dada a natureza dos espólios em que tenho trabalhado, a maioria das “cunhas” exerce-se em relação ao Estado e aos seus corpos e, depois do 25 de Abril, aos partidos políticos ou por via dos partidos políticos tendo também como destinatário o Estado. Os partidos políticos tornaram-se com o tempo e a democracia o lugar da “cunha”, com maior enfâse para os que acedem ao poder político central, mas também com grande dimensão ao nível autárquico.
Tendo lido muitas destas “cunhas” em cartas clássicas, notas de telefonemas, notas pessoais, etc. não tenho dúvidas em afirmar que quem não dá um papel central na história social portuguesa à “cunha” não conhece Portugal. Faça-se a justiça de dizer que o nosso país não é caso único, a “cunha” e o patrocinato estão muito mais disseminados pela Europa, mais a Sul do que a Norte, do que se pensa. Acrescento mais: penso que o papel da “cunha” pouco diminuiu na sociedade portuguesa, como alguns pensam. Só mudaram os processos e os destinatários, e com o declínio de muita da nossa economia, em particular na indústria, o Estado tornou-se o verdadeiro centro das “cunhas” e os aparelhos partidários o seu principal veículo.
Trato aqui essencialmente da “cunha” individual, a favor do próprio, quase sempre associada ao emprego ou a movimentos numa carreira, nomeações e retribuições, e nalguns casos recompensas, condecorações, para o próprio ou para os seus próximos, familiares, amigos, correligionários e conhecidos. “Pedidos” de outra natureza implicando benesses, interesses, negócios, também são comuns, mas são em muito menor número e só raramente estão no limite do tráfico de influências ou da corrupção sugerida ou tentada. Tal tem a ver com a natureza dos interlocutores, mas pode também estar sub-representado pelo facto de estarmos ainda num mundo em que o papel, a carta e a correspondência, são quase o meio único de contacto, o mundo antes do email. E há coisas que não se colocam num papel.
Os espólios que tenho em mente, dois são de personalidades de relevo político na vida pública depois do 25 de Abril, um Primeiro-ministro e um Presidente da Assembleia da República, outro é um advogado oposicionista, abastado e de uma família com meios, que também prosseguiu a sua actividade política depois do 25 de Abril e os outros, mais antigos no tempo, um é de um militar de carreira, de patente média, mas colocado no Estado-Maior, outro de um ministro do Estado Novo. Com excepção deste último, que é de menor dimensão, todos incorporam milhares de documentos, correspondência, etc. e cobrem desde a primeira república até ao início do século XXI. E todos estão cheios de “cunhas”
A origem das “cunhas” cobre todas as classes sociais e todas as áreas da sociedade. Há algumas “cunhas” que se percebem ter origem em pessoas muito “humildes” e há “cunhas” vindas de pares do destinatário e nalguns casos de seus superiores. Do mesmo modo, não há uma diferenciação significativa entre as “cunhas” de pessoas quase analfabetas, que lutam com a caligrafia para escrever uma simples carta, e professores universitários e intelectuais: todos exercem a activa tarefa de meter “cunhas”.
No caso do militar referido, que coleccionava meticulosamente a correspondência que recebia atando-a com um cordel, e que atingiu a patente de coronel, há um número significativo de “cunhas” de militares com patente superior, com uma boa representação de oficiais-generais. Ele acelerava os “processos”, autorizava ou impedia transferências e isso tinha muito valor. No caso do advogado é pedida muitas vezes a sua “recomendação” para um colega ou amigo, visto que o meio que frequentava o colocava em contacto com pessoas que eram “dadoras” de emprego.
As cunhas aos políticos de topo ou são “pedidos” de anónimos que pretendem ver rectificada uma situação que pensam ser prejudicial e injusta, ou são, “pedidos “ vindos de personalidades partidárias que usam essa condição para pedirem, ou em muitos casos reivindicarem, lugares como os de deputado, ou lugares tidos como sendo de confiança política, na administração central e local. As “cunhas” para lugares de deputados, associados a muita intriga contra outros pretendentes ao mesmo lugar, são reivindicadas em nome da biografia e fidelidade partidária: eu que fiz isto e aquilo pelo “nosso” partido tenho direito a ter este lugar ou esta nomeação. Outra fórmula muito comum, é “essa” administração (de uma empresa pública, por exemplo) é constituída pelos “outros”, que não fazem outra coisa que não seja prejudicar os “nossos”, pelo que deve ser mudada e aqui estou eu disponível. Para a Caixa, para a CP, para a TAP, para o Porto de Lisboa, para este Hospital, para estes Serviços Municipalizados, etc.
‹ Anterior
Página 1 de 2
Sem comentários:
Enviar um comentário