SÃO JOSÉ ALMEIDA e NUNO RIBEIRO
Miguel Real afirma que Portugal é governado por uma classe política “relativamente medíocre", numa União Europeia que se transformou “numa empresa de negócios” dominada por burocratas que esqueceram o sonho. Acredita que o futuro da Europa está na sua singularidade: a classe média, cujo “esteio” e “grande baluarte” do futuro é a Alemanha.DANIEL ROCHA
Aos 61 anos, o filósofo, ensaísta e romancista Miguel Real lança mais um romance. Agora, em vez de ficcionar sobre a actualidade ou sobre a história, constrói uma utopia ficcional em que projecta o futuro: O Último Europeu, Edições D. Quixote.
Olhando para o que poderá ser o mundo em 2284, Miguel Real questiona e reflecte sobre o presente, as opções, as tendências, as divergências, as diferenças, os conflitos, as contradições. É um retrato duro das sociedades modernas e dos riscos que elas comportam, em especial a Europa, sobre cujo presente este pensador tem um olhar crítico.
Em entrevista ao PÚBLICO, Miguel Real reflecte sobre a situação de Portugalno pós-troika, mas também sobre a crise na União Europeia, a situação na Grécia e o conflito na Ucrânia. Isto sobre o agora, o tempo conjuntural. Mas faz uma análise prospectiva do tempo histórico das vidas presentes, a algumas décadas, assim como do tempo civilizacional, ou seja, o que poderá ser o mundo no início século XXII.
Ao fim de três anos de intervenção da troika o país tem mais condições de futuro?
Não, não tem. E o mais importante é que o país deixou de sonhar. O actual espírito europeu, que transformou a União Europeia numa empresa comercial estável, governada por balancetes, esse espírito contabilístico entrou totalmente na governação em Portugal, não quer dizer que não haja oposição. Nesse sentido, Portugal desenvolveu um imenso sentimento de medo em relação ao futuro, é o que diz o Boaventura de Sousa Santos, o José Gil. Uma insegurança terrível quanto ao futuro. E deixou de sonhar, de criar utopias, o que é absolutamente necessário para nos orientar a longo prazo na política.
Está a referir-se à classe política, criticou-a de forma violenta no passado, como a vê hoje?
A classe política é relativamente medíocre, em geral. Mas os seus principais representantes no Governo não fizeram nada para o merecer, a não ser ganhar eleições porque estavam lá. Não há uma ideia. Cavaco Silva no século XX, nos anos 80, defendeu um pouco o capitalismo popular.
Definiu-o já como o pior Presidente da República.
O pior da democracia. O Américo Thomaz é incomparável, esse era um ditador. Mas sob o comando de Cavaco Silva, que está há trinta anos no poder quase ininterrupto, o país tomou várias decisões que hoje se revelaram nefastas. O país desenvolveu mais o desejo de consumo do que a produção. As estatísticas mostram-no. É mais o consumo do que a produção e a formação. Há mais a formação burocrática, de caneta e lápis, do que uma formação científica de qualificação das pessoas. A prova disso é o aparecimento das universidades privadas, que eram universidades de caneta e papel.
E a classe política?
A classe política é uma classe que não o merece ser, é-o porque teve a ousadia de se apresentar a eleições e, face ao vazio de poder, substituir os anteriores, que era uma classe política extremamente bem formada, os constituintes, os pais da democracia, até meados da década de 80. Houve pessoas que se afastaram voluntariamente da política, como é o caso do professor Jorge de Miranda, para dar um exemplo de uma pessoa do PSD, do arco da governação, que é uma pessoa não só lúcida, como sábia, como honesta. A classe política foi tomada de assalto, sobretudo a governação, por um conjunto de funcionários das jotas que foram servilmente subindo degrau a degrau, limpando tudo em redor como os eucaliptos, até ao momento em que não há alternativa dentro dos partidos. As possíveis grandes alternativas, as alternativas de mérito fogem para a sua profissão, para a ciência, para as artes, para o comércio, para a economia, para as finanças.
Vivemos em democracia?
Há vários tipos de democracia. Do ponto de vista formal não podemos negar que há democracia, nos grandes princípios da Europa a democracia cumpre-se: há alternativas, há alternâncias, há possibilidade de contestação, háliberdade de expressão, de reunião, de manifestação, tudo isso é muito importante. Quem viveu antes do 25 de Abril não pode negar que este é o melhor regime.
Por que é que as pessoas deixam que os que caracteriza como medíocres dominem os partidos?
Creio que a mediocridade se mede pela ausência de princípios éticos, e as pessoas que fazem uma carreira na ciência, na indústria, no comércio, nas letras, na função pública e que são bem formadas têm alguma dificuldade em aceitar, por um lado, o servilismo em relação aos partidos, por outro lado, o maquiavelismo e o oportunismo a que as máquinas partidárias dão ensejo.
Há excepções?
Oferecem-se por vezes, sem dúvida. Lembro a candidatura a Presidente de Fernando Nobre, que imediatamente foi cilindrada por um conjunto de artificialismos políticos. Agostinho da Silva contava uma história da serra da Malcata, onde na década de 1960 havia cinco famílias num povoado. Três dessas famílias emigraram, sem saber a língua, com os costumes rurais que tinham, a mentalidade da Nossa Senhora de Fátima, mas tiveram a ousadia e a coragem de ir a salto para a Alemanha e a França. Quando mais tarde regressaram triunfantes, com uma família, um carro, uma casa, quem dominava a aldeia? Os que não tinham tido a coragem de partir. Dominavam a sacristia, o minimercado, a serração da madeira e também a junta de freguesia. Portugal é um pouco isso. As elites corajosas e ousadas são as que partem. Ficam cá, em parte pois não quero generalizar, os que não têm coragem de partir, ou seja, não têm coragem de inovar. A elite portuguesa reflecte hoje isso.
No actual relativismo ético, idolatra-se o dinheiro e o consumo. Vivemos uma regressão civilizacional e estamos a voltar a um mundo mais desigual?
Socialmente mais desigual, inevitavelmente estamos. A Europa transformou-se numa empresa de negócios, uma grande empresa. As nações, os países são os sócios dessa empresa. A empresa fez-se para trocar, vender, comprar. Troca-se o Fiat italiano pelo Renault francês, este pelo Mercedes alemão. Ao tornar-se uma grande empresa, um grande grupo de negócios a que habitualmente chamamos mercado, a Europa conseguiu, após a Segunda Guerra Mundial, dar um grande impulso à economia, ou seja, à qualidade de vida e ao bem-estar dos povos. Até 1973 e à crise do petróleo, e no caso de Portugal desde a década de 60 até ao fim do século XX. Criou-se um bem-estar na Europa que não existiu nos séculos passados.
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Miguel Real afirma que Portugal é governado por uma classe política “relativamente medíocre", numa União Europeia que se transformou “numa empresa de negócios” dominada por burocratas que esqueceram o sonho. Acredita que o futuro da Europa está na sua singularidade: a classe média, cujo “esteio” e “grande baluarte” do futuro é a Alemanha.DANIEL ROCHA
Aos 61 anos, o filósofo, ensaísta e romancista Miguel Real lança mais um romance. Agora, em vez de ficcionar sobre a actualidade ou sobre a história, constrói uma utopia ficcional em que projecta o futuro: O Último Europeu, Edições D. Quixote.
Olhando para o que poderá ser o mundo em 2284, Miguel Real questiona e reflecte sobre o presente, as opções, as tendências, as divergências, as diferenças, os conflitos, as contradições. É um retrato duro das sociedades modernas e dos riscos que elas comportam, em especial a Europa, sobre cujo presente este pensador tem um olhar crítico.
Em entrevista ao PÚBLICO, Miguel Real reflecte sobre a situação de Portugalno pós-troika, mas também sobre a crise na União Europeia, a situação na Grécia e o conflito na Ucrânia. Isto sobre o agora, o tempo conjuntural. Mas faz uma análise prospectiva do tempo histórico das vidas presentes, a algumas décadas, assim como do tempo civilizacional, ou seja, o que poderá ser o mundo no início século XXII.
Ao fim de três anos de intervenção da troika o país tem mais condições de futuro?
Não, não tem. E o mais importante é que o país deixou de sonhar. O actual espírito europeu, que transformou a União Europeia numa empresa comercial estável, governada por balancetes, esse espírito contabilístico entrou totalmente na governação em Portugal, não quer dizer que não haja oposição. Nesse sentido, Portugal desenvolveu um imenso sentimento de medo em relação ao futuro, é o que diz o Boaventura de Sousa Santos, o José Gil. Uma insegurança terrível quanto ao futuro. E deixou de sonhar, de criar utopias, o que é absolutamente necessário para nos orientar a longo prazo na política.
Está a referir-se à classe política, criticou-a de forma violenta no passado, como a vê hoje?
A classe política é relativamente medíocre, em geral. Mas os seus principais representantes no Governo não fizeram nada para o merecer, a não ser ganhar eleições porque estavam lá. Não há uma ideia. Cavaco Silva no século XX, nos anos 80, defendeu um pouco o capitalismo popular.
Definiu-o já como o pior Presidente da República.
O pior da democracia. O Américo Thomaz é incomparável, esse era um ditador. Mas sob o comando de Cavaco Silva, que está há trinta anos no poder quase ininterrupto, o país tomou várias decisões que hoje se revelaram nefastas. O país desenvolveu mais o desejo de consumo do que a produção. As estatísticas mostram-no. É mais o consumo do que a produção e a formação. Há mais a formação burocrática, de caneta e lápis, do que uma formação científica de qualificação das pessoas. A prova disso é o aparecimento das universidades privadas, que eram universidades de caneta e papel.
E a classe política?
A classe política é uma classe que não o merece ser, é-o porque teve a ousadia de se apresentar a eleições e, face ao vazio de poder, substituir os anteriores, que era uma classe política extremamente bem formada, os constituintes, os pais da democracia, até meados da década de 80. Houve pessoas que se afastaram voluntariamente da política, como é o caso do professor Jorge de Miranda, para dar um exemplo de uma pessoa do PSD, do arco da governação, que é uma pessoa não só lúcida, como sábia, como honesta. A classe política foi tomada de assalto, sobretudo a governação, por um conjunto de funcionários das jotas que foram servilmente subindo degrau a degrau, limpando tudo em redor como os eucaliptos, até ao momento em que não há alternativa dentro dos partidos. As possíveis grandes alternativas, as alternativas de mérito fogem para a sua profissão, para a ciência, para as artes, para o comércio, para a economia, para as finanças.
Vivemos em democracia?
Há vários tipos de democracia. Do ponto de vista formal não podemos negar que há democracia, nos grandes princípios da Europa a democracia cumpre-se: há alternativas, há alternâncias, há possibilidade de contestação, háliberdade de expressão, de reunião, de manifestação, tudo isso é muito importante. Quem viveu antes do 25 de Abril não pode negar que este é o melhor regime.
Por que é que as pessoas deixam que os que caracteriza como medíocres dominem os partidos?
Creio que a mediocridade se mede pela ausência de princípios éticos, e as pessoas que fazem uma carreira na ciência, na indústria, no comércio, nas letras, na função pública e que são bem formadas têm alguma dificuldade em aceitar, por um lado, o servilismo em relação aos partidos, por outro lado, o maquiavelismo e o oportunismo a que as máquinas partidárias dão ensejo.
Há excepções?
Oferecem-se por vezes, sem dúvida. Lembro a candidatura a Presidente de Fernando Nobre, que imediatamente foi cilindrada por um conjunto de artificialismos políticos. Agostinho da Silva contava uma história da serra da Malcata, onde na década de 1960 havia cinco famílias num povoado. Três dessas famílias emigraram, sem saber a língua, com os costumes rurais que tinham, a mentalidade da Nossa Senhora de Fátima, mas tiveram a ousadia e a coragem de ir a salto para a Alemanha e a França. Quando mais tarde regressaram triunfantes, com uma família, um carro, uma casa, quem dominava a aldeia? Os que não tinham tido a coragem de partir. Dominavam a sacristia, o minimercado, a serração da madeira e também a junta de freguesia. Portugal é um pouco isso. As elites corajosas e ousadas são as que partem. Ficam cá, em parte pois não quero generalizar, os que não têm coragem de partir, ou seja, não têm coragem de inovar. A elite portuguesa reflecte hoje isso.
No actual relativismo ético, idolatra-se o dinheiro e o consumo. Vivemos uma regressão civilizacional e estamos a voltar a um mundo mais desigual?
Socialmente mais desigual, inevitavelmente estamos. A Europa transformou-se numa empresa de negócios, uma grande empresa. As nações, os países são os sócios dessa empresa. A empresa fez-se para trocar, vender, comprar. Troca-se o Fiat italiano pelo Renault francês, este pelo Mercedes alemão. Ao tornar-se uma grande empresa, um grande grupo de negócios a que habitualmente chamamos mercado, a Europa conseguiu, após a Segunda Guerra Mundial, dar um grande impulso à economia, ou seja, à qualidade de vida e ao bem-estar dos povos. Até 1973 e à crise do petróleo, e no caso de Portugal desde a década de 60 até ao fim do século XX. Criou-se um bem-estar na Europa que não existiu nos séculos passados.
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