Entrevista a Nataniel Ngomane
O gosto pela literatura de Nataniel Ngomane foi despertado por duas mulheres. Para além de dizer quem elas são, nesta entrevista o professor de literatura da UEM defende que o país deve começar a investir no talento dos escritores.
Tem longos anos de dedicação à literatura. Como descobriu esta paixão e como chegou até aqui?
Como descobri de facto não sei, mas tenho algumas memórias, que costumo associá-las, às vezes. Primeiro a imagem da minha avó materna, que foi a primeira ou uma das primeiras a contar-me histórias dos animais.
Essas histórias ainda estão bem vivas na minha cabeça. Ainda criança, sempre que estivesse de férias, gostava de dormir na cama da minha avó. Depois foi a minha mãe. Ela também me ensinou a ler e deu-me de presente o meu primeiro livro: “Pedro nivangano vayena” (Pedro e os seus amigos). Esses foram os primeiros grandes momentos que me fizeram gostar cada vez maisde histórias e do livro em particular.
Foi locutor de rádio, músico e poeta. Que sonhos tinha naltura?
Costumo dizer que se não fosse professor de literatura seria um músico, mas um bom músico, ou então seria um pintor, mas um bom pintor, ou cineasta, e seria um bom cineasta. Digamos que as minhas escolhas sempre estiveram dentro deste campo das artes, não sei porquê. Nunca me perguntei. Dediquei-me durante muito tempo à música, tendo chegado a ter por aí 45 números, alguns gravados na RM.
Nessa altura tive o privilégio de ter acompanhamento de Fernando de Azevedo, Yana, com quem fiz vários projectos que não andaram. Cheguei a abrir alguns espectáculos, participei em saraus. Gosto de música e continuo a ser um ouvinte assíduo.
Mas a música foi passada para o segundo plano, quando mergulhei profundamente no estudo da linguística. Também escrevi alguns textos. Lembro-me que com 13 ou 14 anos comecei a namorar. Para mim, era bastante agradável pincelar alguns versos para a namorada.
Escrevi por paixão e logo a seguir descobri poetas que me foram estimulando o gosto pelo texto poético. Foi nessa altura que cultivei a poesia. Cheguei a publicar alguns poemas. Também fui locutor de rádio com muito gosto. Lá entrei por via das FADM. Foi uma época de boas experiências.
A literatura teve grande importância na luta pela independência nacional. Se tivesse que ter um papel, actualmente, qual seria?
Seria um papel fundamentalmente catártico e estético. O papel desempenhado pela literatura na Luta de Libertação e mesmo antes da colonização é fundamentalmente social e político. Um papel de criação e demarcação da criatividade das populações autóctones da identidade moçambicana. Hoje em dia, talvez não precisemos de literatura como arma, mesmo porque já conquistamos a independência.
Neste momento, a literatura deve cumprir um papel que qualquer obra de arte: afagar as mágoas, dores, alegrias, representar sonhos, idealizações, passados e o que está à nossa volta, marcando épocas e escrevendo a nossa história de uma forma estética do que propriamente factual.
Por que é que não publica livros?
Se calhar não tenho jeito para isso. Se calhar sou uma pessoa muito atrapalhada para me reter a um trabalho meticuloso quanto é a escrita. Tenho esboços de ensaios e ficção. Era mais cómodo publicá-los a título póstumo.
Quando voltei do Brasil, onde fiz meu Doutoramento, tinha muitos planos bonitos, mas deixei-me abraçar pela correria de Maputo e, quando voltasse a casa, só queria dormir e mais nada. Tenho esboço para escrever cinco livros.
Ora, só quero que me dêem 12 meses de férias num lugar que não tenha de fazer mais nada, senão comer, beber, dormir e escrever. Fora isso, não tenho pressa e nem faz parte do meu objectivo imediato publicar um livro.
É o novo presidente do Fundo Bibliográfico de Língua Portuguesa. O que esta distinção representa para si?
Representa confiança que a pessoa que me indicou deposita em mim, Professor Lourenço do Rosário, com quem trabalhei. Fui assistente dele quando ele voltou de Portugal em 93 ou 94. Aprendi muito com ele no que diz respeito ao pensamento filosófico. Mais tarde, quando volto do Brasil, ele convidou-me a trabalhar com ele numa equipa que tinha no Fundo. Agradeço-lhe bastante e do fundo do coração.
Sendo que a relação entre os moçambicanos e o livro não é das melhores, que desafios se esperam para o Fundo?
Somos um país pobre. Sempre defendi que um dos caminhos para sairmos dessa condição está na educação, que passa pela aprendizagem da leitura e da escrita, porque o saber dos livros não é substituível. Então, um dos grandes desafios do Fundo é colocar o livro à frente, olhando para as bibliotecas públicas, de modo que possam ser mais presentes nas nossas comunidades.
Pouco se fala do papel dos municípios na disponibilização do livro. Em muitos países, quem toma conta dos livros a nível micro são as bibliotecas municipais.
E não me refiro apenas ao edifício, mas a circulantes e itinerantes. Há que disponibilizar o livro, sobretudo nas escolas.
Tenho livros mais que de muitas bibliotecas das escolas, inclusive da ECA. Isso é um absurdo! Precisamos de repensar as bibliotecas escolares para que os nossos estudantes, desde pequenos, saibam ler para escrever bem. Para que isso aconteça, é preciso disponibilizar os materiais.
Há uma tendência de o ensino superior apostar em cursos ligados às artes. O que está a mudar?
Não gostaria de arriscar uma resposta. Arriscando, diria que estamos a entender que as artes são muito mais do que aquilo que se pensava. Sempre se colocou a arte à margem da dinâmica social. Sempre se subalternizou o papel das artes.
Talvez haja agora uma maior compreensão em relação a esse campo do conhecimento. Afinal, um curso de música é tão complexo que um curso de medicina. Isso vai ajudar-nos a crescer.
O Prémio José Craveirinha é o maior do universo literário moçambicano, que já não premeia a obra, mas a carreira. Considerando o número de autores com carreira que o país tem, isto faz sentido?
Faz, sim. A forma anterior era limitada porque teríamos de fazer rotações no mesmo grupo de escritores. Na perspectiva, faz mais sentido porque é todo um trabalho que é premiado.
Concorda com a sua atribuição a Luís Bernardo Honwana em 2014?
Perfeitamente. É autor de “Nós matamos o Cão-Tinhoso”, texto fundador da literatura moçambicana, onde arranca o projecto de se produzir um texto literário moçambicano que fala na sua língua moçambicana.
Honwana arranca com um projecto estético que depois vai ser melhorado por Aníbal Aleluia, Mia Couto e Ungulani Ba Ka Khosa e que, neste momento, já está a ser absorvido de uma forma muito mais compactada por autores como Lucílio Manjate e Aurélio Furdela. Porquê não premiar estes autores?
Luís Bernardo Honwana vale por aquilo que produziu, reproduziu e permitiu reproduzir. E digo mais: há outros autores que precisam de ser resgatados, por estarem à margem. Temos de acabar com a valorização de coisas novas, quando de novo não têm nada. Precisamos de olhar para as referências e tirarmos proveito delas. Não há nada que se invente do nada. Temos de nos apropriar da escrita das referências, assim andaremos mais rápido.
Moçambique já tem dois Prémios Camões. Quem acha que será o próximo?
Prefiro não fazer palpites. Depois sou suspeito porque conheço e converso com todos eles. Não é qualquer um que vai ter o Prémio Camões, mas o que mostrar trabalho. Acho que João Paulo Borges Coelho tem trabalhado muitíssimo, é o escritor moçambicano que me tem satisfeito cada vez mais, sobretudo depois de “Rainhas da Noite”, um livro que por acaso encontrei na Minerva, sem ser publicitado. É um grande livro. De facto, toda a obra de João Paulo Borges Coelho chama atenção pela sua profundidade.
Parece-me que ele e o Khosa, tem a vantagem sobre outros autores por eles próprios serem historiadores. Eles conseguem de forma singular cruzar a história com a ficção. Fazer este tipo de comparação é colocar estes autores muito tranquilamente, sem remorsos nenhuns, ao lado de um outro grande escritor, Jorge Luís Borges, o argentino. Então, qualquer um desses autores tem a possibilidade de ganhar o prémio. Mas nós estamos a precisar de chancelar as nossas próprias obras porque muitas vezes esse é o passaporte para serem chancelados lá fora. Qualquer indivíduo que queiramos pode ganhar o “Camões”. Depende do trabalho que nós fazemos internamente.
Os nossos principais autores são os mesmos que os da década 80. O que dizer dos novos?
É um processo lento, e deve ser, é um processo de maturação. Não devemos ter pressa de produzir escritores e nem de nada, se quisermos ser perfeitos – tenho um pouco este defeito de perfeccionismo. Daqui a algum tempo vai aparecer um outro João Paulo Borges Coelho, outro Ungulani, Mia Couto e Craveirinha, inclusive. Temos apenas 40 anos, não há porquê ter pressa. A literatura não borbulha como cogumelos. Temos de acautelar um pouco a nossa ansiedade e patriotismo literário e ficar à espera que dialecticamente e em função do ciclo de maturação de qualquer fenómeno, se produzam os autores.
Mas temos muito trabalho de casa a fazer. Ensinar a ler, a gostar de escrever. Temos de investir nos nossos escritores. Depois, fruto que é fruto de verdade só se solta da árvore quando está maduro.
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