A justiça social tem sido um dos principais motivos políticos em Moçambique. A Frelimo sempre se definiu dessa maneira. Os outros partidos de certa maneira também o fizerem, ainda que de forma menos explícita. Quando se lê no manifesto eleitoral da Renamo que o povo é que deve mandar, ou no do MDM que o país deve ser para todos está-se a oferecer uma interpretação normativa da política que se apoia numa versão de justiça social. Intuitivamente, portanto, temos consciência da existência dum valor a partir do qual podemos pensar os problemas do país, um valor, isto é, que as nossas decisões e políticas devem procurar defender e promover. O problema, contudo, é que “justiça social” é um conceito/valor algo abstrato. Ele precisa de ser operacionalizado.
Onde a reflexão sobre estas questões registou alguns avanços traduz-se “justiça social” por igualdade de oportunidades. O raciocínio está intimamente ligado ao pensamento dum filósofo americano, John Rawls, o qual na sua obra sobre a teoria da justiça usou um exercício de abstração em que pessoas sem nenhum conhecimento das suas características físicas, religiosas, intelectuais, sociais e políticas são convidadas a imaginar como uma sociedade em que iriam viver devia estar estruturada. Através desse exercício (“o véu da ignorância”) Rawls conclui que as pessoas escolheriam um tipo de sociedade em que haveria liberdade e igualdade. O instrumento para tornar esse tipo de sociedade possível seria a igualdade de oportunidades. O problema destes exercícios abstratos é esse mesmo. São abstratos e por isso não tomam em consideração as circunstâncias reais das pessoas. Por exemplo, qual é o lugar da saúde numa sociedade justa e igualitária? Será que ela faz parte daquilo que Rawls ele próprio chamou de “bens sociais primários” – isto é, bens que satisfazem as necessidades de cidadãos livres e iguais – ou faz parte dum bem maior, nomeadamente da igualdade de oportunidades? Da resposta a esta questão depende, por exemplo, a decisão sobre se a saúde vai ser considerada como um bem em si – portanto, algo que uma sociedade justa deve disponibilizar – ou se ela vai ser vista como resultado de arranjos institucionais dentro do próprio processo político.
Sei que também estou a ser muito abstrato. Vamos pensar sobre a saúde no nosso país. Quando o país ficou independente em 1975 o regime político da época pensou a saúde como um bem social primário para além de qualquer debate político. Era um direito fundamental (continua sendo na constituição embora na prática as coisas sejam bem diferentes). O modelo de saúde que temos hoje reflete esse momento inicial, infelizmente com todas as suas contradições. Na altura, era o estado que devia a partir do orçamento geral financiar as despesas da saúde. O sistema político mudou e com as exigências cada vez mais crescentes das instituições internacionais financeiras que nos “ajudam” o estado viu-se gradualmente limitado na sua capacidade de satisfazer este desiderato. Ao longo do tempo foram-se encontrando soluções “ad hoc” do tipo criar clínicas especiais em hospitais públicos e liberalizar a prática da medicina. Actualmente, o estado continua a cobrir 70% das despesas com a saúde a partir do orçamento geral que é, por sua vez, largamente financiado de fora. Os agregados familiares cobrem 14% e as despesas directas individuais são ligeiramente inferiores a 30%. O grande grito de guerra das instituições de Bretton Woods, isto é a recuperação de custos representa apenas 1% das despesas da saúde. Estou a citar dados da Organização Mundial de Saúde.
A situação da saúde no país podia ser muito melhor. Tal como na educação o princípio é de salve-se quem puder. O acesso à saúde é para uma pequena minoria que pode aguentar com os custos da medicina privada no país e no exterior. Portanto, vivemos num estado hipócrita que define a saúde como direito fundamental ao mesmo tempo que produz condições em que o acesso a ela é elitista. Mas antes de a nossa moral bombástica gritar “fraude” gostaria de dizer que todos nós somos parte do problema, não da solução. Aqui também opera o fenómeno da bicha que, recorde-se, consiste em não ver que nós também somos os autores do problema que reclamamos. Sempre que tomamos a decisão de visitar uma clínica privada estamos a contribuir para cimentar esta hipocrisia. E isto por uma razão simples. Todo o recurso individual que vai para soluções alternativas que só servem uma pessoa (ou uma família), mas não o conjunto da sociedade minam o desiderato duma sociedade justa. Uma parte importante da culpa vai, naturalmente, para os decisores políticos. Sucessivos ministros de saúde nunca (tanto quanto eu saiba) se preocuparam em desenhar modelos de financiamento nacional da saúde. Toda a reflexão foi sempre no sentido de garantir o financiamento através do orçamento do estado. Quando um ministro da saúde foi particularmente activo foi sempre quando andou a correr atrás de serventes para fazerem limpeza nas unidades hospitalares num activismo que foi celebrado pela imprensa saudosista (da Frelimo gloriosa) com rótulos efusivos do tipo “Samoriano”. Nunca ninguém pensou, por exemplo, em desenhar um seguro nacional de saúde sobre o qual poderia assentar o financiamento da saúde. Naturalmente que o problema dum seguro dessa natureza tem a ver com a falta duma base sólida de contribuintes. Pensa-se.
Consultei alguns dados da vizinha África do Sul. A província de Mpumalanga, a mais próxima de Maputo e Gaza, está bem. É normal lá na África do Sul. Mas o que me chamou atenção foram as regiões que mais contribuem para o desempenho económico dessa província. Em quarto lugar está Mbombela (mais conhecida por Nelspruit), cujo sector de serviços (sobretudo comércio e cuidados de saúde) contribui com mais de 20% para o desempenho económico da província. O relatório do governo de Mpumalanga que estou a citar aponta os consumidores moçambicanos como sendo um factor determinante! Isto é, muitos de nós estamos a levar dinheiro moçambicano para sustentar o sistema sul africano de saúde. É legítimo tanto mais que os serviços médicos naquele país são mais baratos e melhores (em alguns casos) do que no nosso próprio país. Não tenho dados mais concretos, mas a minha suspeita é de que uma boa parte dos cuidados médicos que precisamos lá do outro lado da fronteira tem a ver com doenças “civilizacionais” (isto é, cardiovasculares, diabetes, etc.), portanto, doenças do bem-estar, e também preocupações cosméticas (legítimas) do tipo alinhar dentes, inseminação artificial, etc. Não é por causa da malária, disenteria ou tuberculose, algumas das doenças que incapacitam a maioria da população e não lhe permite usufruir do princípio de igualdade de oportunidades. A transição epidemiológica é real no país, isto é as doenças crónicas se sobrepõem cada vez mais às infeciosas, mas isso é principalmente ao nível de quem está bem. Os pobres nos centros urbanos acrescentaram as doenças crónicas às infeciosas.
Quero dizer com isto que todos nós participamos activamente na violação da nossa constituição. O dinheiro que gastamos na nossa saúde individual é o dinheiro que falta ao estado para que ele cumpra com o seu próprio objectivo de garantir saúde a todos os moçambicanos. Posto isto, eis a minha solução radical a propor ao novo governo também por via de assinaturas: abolição total e completa da medicina privada, imposição de altas taxas aduaneiras para todo o moçambicano que se fizer tratar no exterior, sobretudo na vizinha África do Sul, abolição das clínicas especiais no interior de hospitais públicos, redireccionamento de todos os patrocínios de empresas como Vodacom, MCel, HCB, PETROMOC, etc. que vão para coisas como “verão amarelo”, concertos, etc. para um fundo especial que sirva para montar um seguro nacional de saúde. E como no texto anterior, vou considerar hipócrita e incoerente todo o indivíduo que andar por aí a falar de injustiça social, incompetência do governo, etc. mas não explica porque é legítimo termos uma medicina privada num contexto em que a maioria da população não tem acesso aos cuidados mínimos. E não vale dizer que é culpa do estado.
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