Sou tetense. As mortes dos meus conterrâneos me deixam inconsolável. Mas nelas busco forças e coragem para continuar a chamar atenção a lâmina sobre a qual vivemos pendurados. Vivemos em cima de uma lâmina. Cunho o aforismo de Carlos Serra, tetense, sociólogo moçambicano e meu professor, que escrevera em 2003 um livro intitulado "Em cima de uma lâmina, Um estudo sobre precaridade social em três cidades de Moçambique".
Este país vive em cima de uma lâmina. E a tragédia de Chitima tratou mais uma vez de expô-la, principalmente em relação ao nível de preparação da sociedade e do Estado na sua capacidade de lidar com grandes crises.
Até agora morreram 63 pessoas em consequência do envenenamento do pombe. Das 146 pessoas que inicialmente deram entrada nos hospitais de Chitima e Songo, 63 já faleceram, representando 43%. 35 Pessoas estão internadas.
Quero aqui falar da vulnerabilidade, de impreparação das autoridades sanitárias em lidar com surtos epidémicos e tragédias, da nossa pobreza, da esperança e da organização.
ALGUNS DADOS BÁSICOS
Quando as primeiras pessoas se fizeram ao hospital, os médicos que atenderam pensavam que se tratasse de intoxicação alimentar. Só depois de ver a evolução e da gravidade da situação percebeu-se que se tratava da intoxicação por bebida alcoólica. Entre a primeira fase e a segunda, tiveram que morrer pessoas.
O tratamento que se dá em Chitima é um procedimento básico que consiste na administração do leite, "um comprimido" e soro. Chamam isso de desintoxicação. Entretanto, estão a "desintoxicar" algo que não conhecem porque os resultados dos exames seguiram a Maputo no Domingo, dia 11 de Novembro quando as primeiras mortes se verificaram no sábado. O que está acontecer em Chitima são primeiros socorros. Primeiros socorros de 72 horas!
A Polícia da República de Moçambique, PIC e SIZE estão "no terreno" mas de mãos atadas porque também estão a espera dos "resultados" das suas análises para iniciar as suas investigações.
A equipa médica que o governo diz ter expedido vem de regiões circunvizinhas e cidade Tete. Portanto, esta equipa médica está lá para trabalhar com os meios encontrados no local: apoio técnico e primeiros socorros.
Quando as primeiras vítimas se fizeram ao hospital local, foram administrados papacetamol e soro. Alguns que apresentaram "sinais de melhoria" foram imediatamente dispensados para casa. Mas regressaram na mesma noite e graves. Alguns morreram quando tentavam explicar o que estavam a sentir, de acordo com Amos Fernando, o único jornalista que está a cobrir os eventos deste as primeiras horas.
Na visita do Ministro Manguele, disse aos microfones da STV que alguns doentes estavam a recuperar. Mas a história dos que foram dispensados para casa e regressaram graves e morreram deviam obrigá-lo a ser comedido nas palavras tendo em conta que a taxa de mortalidade tende a crescer.
Deixem-me antes de prosseguir, trazer mais dois casos de morte em massa e de resto advinham o que de seguida irei falar.
No ano de 2000, na noite de 22 a 23 de Novembro, 120 reclusos morreram numa cela em Montepuez, Cabo-Delgado, por asfixia. Estes reclusos, em número de 200, foram encarcerados, acusados de terem participado nas manifestações antigovernamentais promovidas pela Renamo-União Eleitoral a 09 de Novembro de 2000.
Em 2009, 12 reclusos morreram numa cela no distrito de Mongincual, Nampula, depois de para lá terem sido conduzidos acusados de promoverem a desinformação em relação a campanha de desinformação sobre a cólera, onde os agentes da cruz vermelha eram acusado de espalharem a cólera.
O que há de comum entre os três episódios por mim relatados é a lentidão que caracteriza as autoridades em agir ou reagir para salvar vidas. E, aliado a crónica “falta de meios” e preparação, não somos capazes de evitar mortes quando esta afigura-se tarefa principal.
Nos casos de Mongincual e Montepuez, os comandantes das esquadras por ignorância, abuso de poder e ou negligência, permitiram que numa cela coubessem 20 vezes mais reclusos que o previsto, dificultando a respiração dos seres vivos lá encarcerados. Levou muito tempo para perceber isso. 120 dos aproximadamente 200 reclusos tiveram que morrer para que o comandante percebesse que aquela cela era pequena. No caso de Mongincual também a situação foi a mesma, 12 dos aproximadamente 50 reclusos tiveram que morrer. Entre o primeiro e o segundo episódio passaram nove anos, o suficiente para nos recordar.
Em Chitima, as autoridades sanitárias esperam 36 horas para enviarem as amostras para os exames; 24 hora para entenderem que não se tratava de intoxicação alimentar e 72 horas para receber resultados "vindos de Maputo" ou provavelmente da África do Sul. Os resultados vindos de Maputo provavelmente não serão acompanhados de respectivos medicamentos.
Mas o grave mesmo é que até agora não temos informação de quantas pessoas devem andar por aí intoxicadas e que estão em casa uma vez que potencialmente TODOS que consumiram aquela bebida devem ser considerados envenenados.
Ademais, os resultados, quando chegarem, segundo o protocolo das autoridades, serão primeiro comunicados aos familiares das vítimas já falecidas e só depois a imprensa. Ou seja ainda ficaremos a espera que a partir de Chitima, nos seja comunicado as razões da morte. Os 35 que estão internados, os que foram dispensados para casa e os que potencialmente não manifestam sinais de intoxicação deverão ainda esperar por mais horas para que finalmente saibam do que aconteceu.
Ora, eu tenho quase a certeza que se se tratasse do derramamento de petróleo num poço da Anadarko em Palma ou do rapto de um navio petroleiro, o governo moçambicano não mediria esforços para recrutar especialistas no resgate ou nos engenheiros e respectiva tecnologia para travar o derramamento. O tempo que mediou entre os primeiros sinais, as primeiras mortes até a acção das autoridades governamentais é demasiado longo. E é tão longo para não aceitar que até hoje, terça-feira ainda estejam a espera dos resultados dos exames para se saber de que se trata e a partir dai tratar-se os sobreviventes que até agora estão sob observação a receber os primeiros socorros.
É isto caros amigos que queria vos dizer: nós somos de facto uma sociedade doente, em cima de uma lâmina, proibidos de ficar doente. E ainda bem que a sorte nos acompanha porque falhamos muitos surtos como Ebola e Meningite, pois a cólera ainda nos mata. A malária mata mais que a sida e os ratos continuam a nos transmitir a peste bubónica. Nem sal conseguimos garantir a todos cidadãos. Somos pobres. Mas pior que isso é mesmo a nossa lentidão e a capacidade preventiva. Por defeito, um pobre, proibido de ficar doente, deveria ser muito mais esperto em lidar com susceptibilidades e tal, significa maior aptidão e capacidade reactiva perante surtos ou suspeitas. Dos polícias aos médicos; dos soldados aos políticos, falta-nos a capacidade de antevisão, comunicação, organização e trabalho sincronizado.
Será que da África do Sul, Maputo e Lisboa, EUA, Grã-Bretanha não poderiam sair para Chitima equipas especializadas para pelo menos liderar os processos a partir do local? Mas quando foi o avião que caiu, não se pouparam medidas para mobilizar equipas estrangeiras e peritos nacionais para se inteirar da situação. Atenção, não quero nem estou a comparar. Estou a querer dizer que era possível. Bastava querer. E existem protocolos que regem tais procedimentos.
Imagino que o governo distrital deve andar muito ocupado nestas alturas com a compra de caixões, alimentos e tratamento dos corpos. É muito trabalho para quem não esperava trabalhar em pleno Janeiro.
Maldito povo que “decidiu morrer” nas vésperas do novo governo.
O meu pensamento está em Chitima.
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