Logo a seguir à leitura, pelo presidente do Conselho Constitucional (CC), Hermenegildo Gamito, do Acórdão n. 21/CC/2014, de 29 de Dezembro, Processo n. 17/CC/2014, que valida e proclama os resultados das eleições gerais de 15 de Outubro de 2014, o presidente do partido Frelimo, Armando Guebuza, no seu discurso de vitória, proferido na sede nacional do seu partido, admitiu publicamente, que a vitória atribuída ao seu partido e ao seu candidato, Filipe Jacinto Nyusi, havia sido “arrancada” ao justo vencedor.
Se por um lado a leitura do Acórdão serviu para legitimar o golpe de Estado eleitoral, o acima citado discurso de Guebuza serve para falsificar os factos históricos e visa forjar um adulterado estado de coisas capaz de "harmonizar" a mentira com a verdade, de modo a justificar o crime político cometido: "Esta vitória foi arrancada, porque eles [os da oposição] estavam determinados a não nos deixar sobreviver e nós dissemos, nós somos Frelimo, nós somos fortes......"
Com este discurso, o presidente da Frelimo procura transferir o litígio sobre as eleições de 15 de Outubro de 2014, da questão nacional para a questão partidária. Segundo este discurso, e os outros que vêm sendo proferidos pelos exponentes e simpatizantes do partido no poder, quem denuncia as irregularidades que mancharam o processo das eleições gerais e exige a reposição da legalidade não é o eleitorado ou o povo moçambicano em geral, mas sim os partidos de oposição e, em particular, a Renamo. O presidente do partido no governo fala como se o povo moçambicano fosse uma propriedade privada objecto (não sujeito) do partido Frelimo, e como se os membros da Renamo e as populações que saem às praças para receber o líder da Renamo e protestar contra os resultados proclamados pela Comissão Nacional de Eleições (CNE) e validados pelo CC não fossem moçambicanos.
Se o modelo democrático, introduzido na primeira metade da década Noventa, tiver que ser consolidado em Moçambique, é urgente recuperar o genuíno conceito de partidos políticos e a sua função na dinâmica da questão política. Os partidos políticos - sobretudo os de oposição - tendo embora fins próprios e específicos (como a conquista do poder), nos sistemas democráticos, operam também, e sobretudo, como laboratórios que recolhem as denúncias ou críticas feitas pelos jornalistas, intelectuais, grupos de interesse, comunidades religiosas, e pelo povo em geral, e as transformam em objecto de contestação à acção do governo do dia. Portanto, para atribuir um justo e objectivo tratamento à questão da rejeição dos resultados das eleições gerais de 15 de Outubro, o partido no poder não pode confinar esta questão ao seu restrito relacionamento com os partidos políticos de oposição. De facto, não é só aos partidos de oposição que Filipe Jacinto Nyusi e o seu partido devem uma explicação matemática sobre a própria legitimidade para presidir os destinos da República de Moçambique nos próximos cinco anos, mas a todos os eleitores e a todo o povo o moçambicano. A Renamo ou os partidos de oposição devem ser vistos, neste caso, como simples entidades aglutinadores das várias vozes que contestam os resultados anunciados pela CNE e validados pelo CC.
O discurso, acima citado, além de escamotear a verdade dos factos históricos, intende também coroar o mito da equivalência entre o partido "Frelimo" e o "desenvolvimento" socioeconómico. De facto, muitos homens e mulheres moçambicanos de conceituado prestígio e moralidade comprovada, participaram activamente nas diabólicas manobras da alegada viciação do processo das eleições gerais, convencidos que estavam a cometer um mal "necessário" visto que, segundo o mito acima citado, permitir a ascensão ao poder de qualquer partido de oposição seria abandonar o País nas mãos duma classe dirigente inexperiente e, portanto, comprometer a evolução futura do processo de desenvolvimento, já iniciado. Existem, igualmente, muitos outros moçambicanos para quem as irregularidades registadas no processo das eleições gerais de 15 de Outubro são inadmissíveis, mas preferem deixar as coisas como estão, pelas mesmas razões já mencionadas.
Este foi o cavalo de batalha que Guebuza utilizou em todas as frentes que teve de combater para instaurar o regime autocrático-clientelar, de facto, durante os seus dois mandatos. Os funcionários das instituições públicas e a imprensa do Estado foram obrigados a “fechar os olhos” aos abusos do poder e às violações das leis constitucionais, cometidos pelo presidente e o seu executivo e, em contrapartida, exaltar o presidente e o partido, como motores do desenvolvimento do País.
A questão de "desenvolvimento" socioeconómico realizado, graças ao partido no poder, é uma falácia, não só porque é manipulada para minar, em favor do mesmo partido, o progresso do processo da democratização das instituições políticas do País, mas também porque o próprio sentido que a elite da Frelimo atribui ao termo "desenvolvimento" é traiçoeiro.
Para começar, nos sistemas liberal-democráticos - graças ao princípio da liberalização da economia -, o desenvolvimento económico não é (e não deve ser) refém do governo do dia. A existência de uma dependência do desenvolvimento econômico do partido no governo não é uma virtude, nos sistemas democráticos. Antes pelo contrário, pode ser um claro indício da existência do vício do controle da economia pelos detentores do poder político e, portanto, da existência de uma baixa prática de princípios democráticos.
Em segundo lugar, não obstante se utilize o mesmo termo, o que a maioria dos moçambicanos entende com o termo "desenvolvimento" não é o mesmo que entendem referir os membros privilegiados do partido no poder e todos aqueles que se beneficiam do sistema corrupto-clientelar instaurado por Armando Guebuza.
Para a classe dirigente do partido Frelimo, continuar a desenvolver Moçambique significa renovar a própria possibilidade de controlar e influenciar o processo de licenciamento de pesquisa e exploração de hidrocarbonetos e outros mega-projectos de extração mineraria; renovar a possibilidade de servir-se do capital político – e não o capital de natureza económica – para estabelecer parcerias entre companhias multinacionais e as próprias empresas ou empresas controladas pelos membros das próprias famílias.
Para os funcionários públicos que ofereceram o próprio contributo para a materialização da alegada fraude eleitoral, o termo "desenvolvimento" significa perpetuar o sistema corrupto-clientelar que lhes permite meter as próprias mãos e, tirar tanto quanto lhes apetece, dos bolsos e das carteiras do público que diariamente se apresenta nos seus sectores de trabalho para procurar os seus serviços. De facto é esta classe de moçambicanos que durante os dois mandatos de Guebuza tornou-se rica dum dia para o outro, comprando carros de alta cilindrada e construindo - com o sangue dos seus próprios compatriotas - casas enormes. E são estes ricos que o presidente Guebuza se orgulha de ter criado durante a sua governação.
Contrariamente, para a maior parte dos moçambicanos - aqueles que se sentem representados pelos partidos de oposição no repúdio à atitude da CNE e do CC de fazer "olho grosso" às irregularidades que caracterizam o processo das eleições gerais de 15 de Outubro - o termo "desenvolvimento" significa ter a possibilidade de viver numa sociedade onde cada um vive do próprio trabalho honesto; onde cada um pode fazer a previsão dos gastos, a partir da proporção entre as próprias entradas e as despesas regulamentadas pela lei; onde o próprio contributo enquanto cidadão serve, não para financiar o luxo, as mordomias e as regalias dos governantes e suas famílias, mas para financiar as obras de interesse público.
A leitura entrelinhas do discurso de vitória do presidente da Frelimo, e do cenário político que caracterizou a nomeação de Filipe Nyusi para candidato do partido nas eleições de 15 de Outubro, não permitem o vislumbrar do último conceito de “desenvolvimento”, anteriormente exposto: "Esta vitória foi arrancada, porque eles [os da oposição] estavam determinados a não nos deixar sobreviver e nós dissemos, nós somos Frelimo, nós somos fortes......"
Ao definir a Frelimo pela força e, não pelo direito – “...nós dissemos, nós somos Frelimo, nós somos fortes - Armando Guebuza deixa claro, neste discurso, que o governo que vai presidir os destinos da vida pública dos moçambicanos foi, efectivamente, imposto pela força e contra a vontade dos eleitores. Mas o mais grave não é o simples facto que a inércia da CNE e do CC em relação às irregularidades que caracterizaram o processo eleitoral tenha tido como consequência a imposição da Frelimo na presidência da República de Moçambique. O pior é que tal inércia colocou à frente dos destinos de Moçambique a parte pior do partido Frelimo.
Não nos esqueçamos que a impugnação dos fins de Janeiro de 2014 – A Grave Situação do País – depositada no Comité de Verifica do Comité Central do partido Frelimo, por alguns membros seniores do mesmo Comité Central, em contestação e repúdio à posição da direcção do partido de limitar a lista de pré-candidatos a Alberto Vaquina, José Pacheco e Filipe Nyusi, apontava como principal razão de insatisfação o facto que os “interesses do partido” que deviam ser os dos seus ideais e do povo”, tinham dado espaço aos “interesses de pessoas, grupos de pessoas ou de membros individuais do partido”. O outro argumento que deu corpo à impugnação foi o facto que, para os signatários, “a escolha do candidato da Frelimo às eleições presidenciais não era apenas assunto eleitoral do partido, mas devia ser conduzido de forma a consagrar a melhor escolha do País”.
Ora se, por um lado, pode-se considerar que a nomeação de Nyusi para candidato da Frelimo, pelo Comité Central do partido, tenha respeitado o princípio que faz coincidir os interesses do partido com os “ seus ideais e do povo”, e tal nomeação tenha sido também “conduzida de forma a consagrar a melhor escolha do país”, por outro lado, a explícita falta de transparência nos dados numéricos que atribuem vitória à Frelimo e ao seu candidato, Filipe Nyusi, faz pensar que o País tenha sido ilegitimamente entregue, não nas mãos da Frelimo enquanto tal, mas nas mãos da parte pior da Frelimo, a qual vinha sendo já combatida por alguns membros do Comité Central.
Ironicamente, a continuidade da parte pior da Frelimo no comando dos destinos do País é uma prova contra os signatários da impugnação, e é como se fosse uma demonstração que o recurso à desonestidade era o único modo para salvar o partido e salvar o capital político e a riqueza ilicitamente acumulada, inclusive a riqueza daqueles que impugnaram as decisões da direcção do partido. Tal vitória da desonestidade no seio do partido no poder faz temer que o ciclo de governação que está para ser inaugurada venha a ser distinto por práticas desonestas.
Todavia, em todo o cenário, até aqui apresentado, Filipe Nyusi aparece como um fantoche garante da continuidade dos que têm um forte interesse de manter tudo como tem estado. Mas ele não poderá desempenhar o papel a ele confiado antes de combater a própria batalhar para conquistar a legitimidade que não lhe foi dada pelo processo eleitoral. Se os protestos contra a sua ilegitimidade e a ilegitimidade do seu governo crescerem, poderá ser forçado a marchar contra os que o colocaram no poder para construir a própria popularidade. Nesse caso os moçambicanos e o mundo inteiro poderia assistir a extração de resultados positivos não intencionalmente previstos das entranhas duma acção perversamente calculada.
Alfredo Manhiça
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