Cidade de porcos
Li “A República” de Platão nos finais dos anos oitenta e ganhei interesse imediato pela abordagem da política como objecto de estudo. Decidi, então, escrever a minha tese de Mestrado sobre a formação duma nação na base dum sistema uni-partidário. Foi nessa altura que perdi todas as minhas ilusões em relação ao projecto “revoluccionário” da Frelimo. Depois de escrever essa tese li, dois anos mais tarde, os dois volumes de Karl Popper sobre a “Sociedade aberta e os seus inimigos” onde para o meu total desespero fiquei a saber que Platão era, na verdade, o percursor do totalitarismo que tanto me assustou no projecto revoluccionário da Frelimo. É verdade que Popper exagerou na crítica, mas as suas reservas eram legítimas e continuam actuais em relação a todo o sistema político que se justifica na base da crença na descoberta do que é bom para todos.
A expressão “cidade de porcos” aparece num dos diálogos do livro de Platão para descrever uma sociedade simples sem dirigentes e sem noção de justiça. Ela passa a precisar disso tudo quando o luxo entra e começa a criar desigualidade. Aí precisa de dirigentes para mandarem, de guardas para proteger o bem comum e de filósofos pelo seu amor pela razão para poderem defender a comunidade do narcisismo dos outros dois. É uma expressão que me tem vindo constantemente à cabeça nos últimos tempos a propósito da forma como muitos de nós temos vindo a lidar com as eleições. Há muito em Platão que faria dele herói de muitos patrícios da Pérola do Índico. Tinha pouco apreço pela democracia por achar que uma sociedade onde a voz de todos tem o mesmo peso não tem nenhuma noção de valor e, por isso, não pode ter nenhuma concepção de justiça. O mesmo tipo de niilismo que leio com frequência no Facebook. Vislumbra-se esse Platão nas vozes daqueles que logo após o anúncio duma possível vitória “asfixiante” da Frelimo começaram a proferir impropérios feios contra o povo que não sabe o que é bom para si. Especialmente o povo de Gaza, claro. Curiosamente, aconteceu a mesmíssima coisa no Brazil onde as regiões que votaram maioritariamente pela continuidade lá foram acusadas de falta de discernimento pelos vencidos.
Mas Platão tinha um programa político interessante, apesar de tudo. Ele escreveu o livro como alerta contra a tirania, um modelo de governação sem lugar para a justiça. Ele achava que quer a democracia, quer a oligarquia (defendidas por Atenas e Esparta) iriam descambar na tirania se a política não ficasse a cargo daqueles que menos interesse revelam por ela, nomeadamente os filósofos, os únicos com capacidade para discernir o bem e governar com justiça. O que é interessante neste programa político de Platão não é a prerrogativa que ele dá aos filósofos, mas sim a sugestão implícita no seu pensamento segundo a qual o fim da política tem que ser a tentativa de definir o bom, isto é a justiça. Há portanto um elemento normativo muito importante no pensamento de Platão, elemento esse que eu interpreto como sendo fundador da política não como fim, mas sim como processo. Acho que Karl Popper não entendeu este aspecto muito bem na sua crítica a Platão. A política não se constitui na resolução de todos os problemas duma vez por todas, mas sim na discussão sobre como resolver os problemas que se vão colocando, algo que o próprio Popper defendeu. Esta é a essência da democracia e é sobretudo neste aspecto que a democracia liberal, apesar de todas as suas imperfeições, leva à melhor sobre todos os outros sistemas políticos. É como Winston Churchill disse: “a democracia é a pior forma de governo exceptuando todas as outras formas”.
Mas é esta concepção de política que faz falta no país, sobretudo da parte da esfera pública. Foi visível durante as hostilidades militares quando muitos acharam justo que um partido político se colocasse acima da constituição para fazer reivindicações. Estamos prestes a presenciar a mesma petulância com os resultados das eleições. Houve irregularidades, ninguém contesta isso. Se elas todas juntas constituem “fraude” é um assunto que só os mecanismos jurídicos que a nossa constituição nos dá podem decidir. Não é o nosso sentimento apenas. As questões levantadas por essas irregularidades constatadas têm que ser juntadas em dossier a ser apresentado aos órgãos competentes e deixar que a máquina da justiça corra, mesmo sob o risco de ouvirmos o que não gostaríamos de ouvir. Esse é o fundamento duma boa política. Um bom sistema político não é aquele que não tem irregularidades. É o que tem mecanismos para a sua resolução. No nosso país de pseudo-democratas o primeiro instinto, como se vê na declaração da conferência de quadros da Renamo, e nos apelos insistentes a favor da anulação das eleições, é de ignorar os órgãos competentes e de nos definirmos a nós próprios como sede jurídica.
Seria tão bom que aqueles que defenderam o direito de recurso à violência se retratassem em público para o bem da saúde da nossa democracia. São esses que dão corda aos inimigos da sociedade aberta. Caso contrário, vão demonstrar o seu lado platónico que não consiste na definição da política como processo, mas sim na definição do “povo” como sendo parvo e a precisar de censura para aprender a votar bem. O Platão deles é o Platão eugênico, aquele que achava bom que houvesse uma política de natalidade controlada para que só os bons e inteligentes – aqueles que sabem votar – se procriassem. A tirania nasce aqui. Não nasce nas irregularidades. Nasce no total desrespeito por aquilo que nos pode salvar a todos: a ordem constitucional.
Mas lá está: a cidade de porcos não precisa de constituição...
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