Wiriyamu, Moçambique, 12 dez (Lusa) - Não é por terem passado 40 anos que parece que as coisas mudaram em Wiriyamu: não há eletricidade nem água e a cidade de Tete, a 30 quilómetros, ligada por uma picada de terra batida, continua insuportavelmente distante.
"E fome existe, também", acrescenta Vinte Pacanet Gandar, 63 anos, camponês de Wiriyamu. E, para que não restem dúvidas, repete: "E fome".
A quase permanente seca na região, no centro de Moçambique, afeta a produção de mapira e amendoim, que todos cultivam para consumo próprio, e o pouco dinheiro, as raras moedas que usam para comprarem óleo ou sementes, obtêm-se com a venda de carvão na cidade.
Luís Wiriyamu, 27 anos, neto do homem que deu o nome à aldeia, vive de apanhar lenha que, depois, transforma em carvão e vende na berma na estrada -- "Não há mais nada para fazer aqui", queixa-se.
A escola primária, um painel solar numa pequena venda e os camiões de uma mineira australiana, a caminho de mais um projeto nas imediações, destacam-se na paisagem de casas de paredes de barro e telhados de colmo, em veredas de terra batida, por entre embondeiros e mato cerrado, por onde meninas carregam à cabeça feixes de lenha que vão alimentar o fogo com que mulheres cozinham o almoço.
Vinte Pacanet Gandar, que se expressa num português desenvolto, foi um dos sobreviventes do massacre de Wiriyamu perpetrado naquela aldeia por tropas portuguesas, no dia 16 de dezembro de 1972, que vitimou centenas de pessoas e, segundo historiadores, mudou o rumo da guerra colonial.
A sua condição de sobrevivente granjeou-lhe fama, mas também a construção de uma narrativa, quase de um fôlego, do massacre cometido por tropas especiais portuguesas.
"Surpresamente, apareceram cinco helicópteros e dois jatos que começaram a bombardear lá fora, e, então, aterraram na aldeia para os soldados saírem", conta Vinte, que tinha, então, 23 anos.
A "Operação Marosca" tivera como motivos próximos a morte, dois dias antes, de seis militares em Tete, e disparos, na zona, contra um avião civil, sinais para as chefias militares de que a Frelimo atuava no centro da colónia, com o apoio da população.
"Cercaram a nossa aldeia. Começaram a queimar o quê? As casas. Levaram as pessoas para acumular lá fora. E começaram a perguntar: 'Vocês aí, não conhecem os turras? E nós falávamos: 'Não, não conhecemos'", prossegue o camponês.
As sucessivas lideranças militares portuguesas em Moçambique tinham encarado de forma diferente o "problema" da Frelimo e a guerra de libertação iniciada em 1962, e, no início, apenas circunscrita ao norte do país.
Comandante militar desde 1969, Kaúlza de Arriaga inova relativamente aos seus antecessores, ao usar intensivamente meios aéreos e tropas especiais, o que fragiliza a Frelimo no norte, obrigando-a a deslocar-se para o centro, onde intensifica essa frente de guerra e se ataca, até, colonos portugueses.
"Mas eles disseram: 'Não, não, aqui há turras e vocês estão a tirar comida para dar aos turras para os turras vir matar a nós, lá na estrada. Por isso, vocês, hoje, não vão viver nada, vão ser mortos aqui'", continua Vinte, dando a voz aos militares portugueses.
A zona de Wiriyamu estava a ser batida desde o dia 14 por aviões militares e agentes da PIDE/DGS, que procuravam uma base da Frelimo com cerca de 300 guerrilheiros.
Depois, tropas especiais entram em Wiriyamu, Juwau e Chawola, todas aldeias na mesma zona, e, a 16 de dezembro, recolhem aos quartéis, deixando um rasto de destruição, hoje evocada num monumento que guarda caveiras e ossadas de alguns dos "mais de 450 mortos".
Vinte safou-se, correndo para o mato e evitando os tiros que disparavam contra ele, mas a sua família foi quase toda dizimada: "Quem morreu? O meu pai, chamado Guspiga, meu avô, Jemusse, Mabalata, Manyate ... são muitos ... Tuma, Capitone... são muitos".
Alguns feridos abrigam-se no hospital de Tete e denunciam o massacre a missionários espanhóis. No início de 1973, a Cruz Vermelha e um médico português visitam o local, em junho do mesmo ano, o escândalo chega à imprensa internacional, e Portugal, que, até aí, tinha negado os acontecimentos, acabará por admitir "excessos" das suas tropas.
Dois anos depois de a notícia ser capa do 'Times', de Londres, Moçambique torna-se independente e, 40 após o massacre, só por distração alguém pode achar que continua tudo igual em Wiriyamu.
"Antigamente, não tínhamos escola. As pessoas que têm idade como a minha não falam português, aqui, mas, hoje, as nossas crianças estão a estudar e, quando acabarem, vão fazer bom trabalho", prevê Vinte Pacanet Gandar, o camponês de Wiriyamu que sobreviveu ao massacre.
LAS // HB
Lusa – 12.12.2012
Um massacre ainda "desconhecido" (C/FOTOS)
12 de Dezembro de 2012, 11:44
*** Luís Andrade de Sá (texto) e António Silva (fotos), da Agência Lusa ***
Wiriyamu, Moçambique, 12 dez (Lusa) - Passaram 40 anos sobre o massacre de Wiriyamu, cometido por tropas especiais portuguesas sobre civis suspeitos de apoiarem a Frelimo, no centro de Moçambique, mas os contornos da "Operação Marosca" continuam ainda envoltos num certo mistério.
"Continua difícil verificar com precisão os acontecimentos de 16 de dezembro de 1972 (...) Isto porque as autoridades portuguesas, quer antes, quer depois do golpe de 25 de abril de 1974, não autorizaram um inquérito independente à Operação Marosca", queixam-se os investigadores portugueses Bruno C. Reis e Pedro A. Oliveira num texto publicado em março deste ano na revista 'Civil Wars' ("Cutting Heads or Winning Hearts: Late Colonial Portuguese Counterinsurgency and the Wiriyamu Massacre of 1972").
Apenas um pequeno sinal, quase escondido na berma da estrada nacional 7, à saída de Tete, indica o desvio para Wiriyamu, o local de um dos maiores massacres ocorridos na então província portuguesa e que terá apressado o fim das guerras coloniais que Portugal travava em África.
Na aldeia, um monumento com ossadas humanas evoca a tragédia ocorrida em Wiriyamu, Juwau e Chawola, três povoados nas cercanias dos rios Zambeze e Luena, mas o jovem Carrilho, 12 anos, que ali passa de bicicleta, não consegue identificar nem os seus responsáveis nem o que aconteceu.
O diretor da escola primária completa de Wiriyamu, Carlos Alciano, 40 anos, garante que o massacre faz parte do programa de ensino dos alunos da sexta e sétima classes e que as visitas ao monumento são frequentes.
"Eles têm que conhecer quando surgiu o massacre, quem o fez, quantas pessoas morreram", diz, mas o número de vítimas varia: "400", segundo os padres de Burgos, os primeiros a denunciaram o massacre, "cerca de 200", de acordo com o médico Rodrigues dos Santos, que visitou o local pouco depois dos acontecimentos, "63" ou "98", assumidas por autoridades portuguesas, segundo diversas fontes, ou os "450" evocados na base do monumento em Wiriyamu.
Independentemente do número de mortes, a "Operação Marosca" resultou num massacre, "a ocorrência de crimes e, por vezes, extremamente cruéis, execuções de civis desarmados, em grande número", asseguram os dois investigadores portugueses.
Bruno Reis e Pedro Oliveira defendem, no entanto, que, se se pode dizer que se tratou de "matança indiscriminada", já que ninguém foi poupado, também se pode afirmar o seu contrário, no sentido de que "a operação tinha como alvo o que era visto como bases da Frelimo disfarçadas de aldeias civis" e que os militares portugueses se baseavam em informações aparentemente falsas da PIDE/DGS.
"Isto, de nenhuma forma, reduz a criminalidade destas mortes mas, simplesmente, alarga a responsabilidade para lá dos soldados individuais e seus comandantes", escrevem.
À operação estão associados o então comandante militar de Moçambique, Kaúlza de Arriaga, e o seu conceito de luta anti-guerrilha, envolvendo fortes meios aéreos e tropas especiais, e o agente da PIDE/DGS Chico Kachavi, um moçambicano temido pelos seus conterrâneos.
"Ele é que comandava nesse dia, e não queria saber se este era africano. O coração dele era europeu", recorda Vinte Pacanet Gandar, 63 anos, sobrevivente do massacre, e que diz que o agente da PIDE/DGS foi mais tarde morto por elementos da Frelimo.
LAS // HB
Lusa – 12.12.2012
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