Reportava directamente ao ditador, usava identidades falsas e andava
sempre com uma cápsula de cianeto. Liderou missões de alto risco, sequestros e a
libertação de portugueses em África e na Índia. Jorge
Jardim morreu há 30 anos.
O último aventureiro
|
Guerreiro, diplomata, político e empresário por vontade própria. Jorge
Jardim superou a pequenez do regime do Estado Novo com acções que desafiam a
imaginação humana, fazendo a sério o que o James Bond faz nos filmes. Ele foi o
007 de Salazar, retratado por José Freire Antunes ao longo de 605 páginas de
Jorge Jardim Agente Secreto, lançado pela Bertrand, no dia 3 de Abril de
2012.
Pedro Vieira
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No dia 13 de Novembro de 1982, Jorge
Jardim comemorou os seus 63 anos em casa de uma das filhas. A festa prolongou-se
até às 6 da manhã. Poucos dias depois, regressou a Libreville, o Gabão, onde se
casara em 1980, com palmira barral, antiga miss Quelimane. Mas, a 1 de Dezembro,
teve uma paragem cardíaca, enquanto lia um contrato. Ao contrário do que ele
sempre pedira, não foi autopsiado. O médico carlos Graça, mais tarde
primeiro-ministro de São Tomé, mas na altura a viver no Gabão, disse a Freire
Antunes: “Devíamos ter feito a autópsia”.
O corpo foi enbalsamado e depois
transferido para Portugal. Repousa no cemitério de Queluz. Mas a família não
esquece que ele gostaria de ser enterrado em Moçambique e ainda não pôs de parte
a hipótese de tasladação para o Dondo, perto da beira, a terra, onde em 1952,
começou a sua aventura africana.
Subsecretário de Estado do Comércio e
Indústria aos 29 anos, Jardim parecia talhado para uma carreira ascencional nos
meios do Salazarismo. Apesar, de no primeiro contacto com Salazar, este o ter
exortado a usar chapéu - “Vá, tenha Juízo, compre um chapéu”, contou Baltasar
Rebelo de Sousa a Freire Antunes - e do desgaste provocado pelo duelo com o
ministro Ulisses Cortez, ele estava bem cotado junto do chefe do Governo e não
lhe faltariam oportunidades no quadro do regime. Mas quando abandonou o Governo,
em 1952, com quatro filhos e a mulher grávida do quinto, operou um corte radical
na sua vida, aceitando um convite do empresário Raul Abecassis para dirigir a
fábrica da Lusalite no Dondo, em Moçambique.
Jorge Jardim, que
superara uma meningite em miúdo, que abraçou o escutismo, que chorou de raiva
quando ficou livre da tropa, que, já membro do Governo, vestia a farda de
bombeiro para ir combater incêndios, dificilmente caberia na estreiteza e na
burocracia da vida portuguesa de 1950. Os apelos heróicos á defesa do Império
vividos nos tempos de estudante de agronomia misturavam-se com as imagens
grandiosas de áfrica transmitidas pelo general Baden-Powell, fundador do
escutismo. Era hora de decidir.
A vertigem da acção
As situações provocadas pelos processos
de descolonização proporcionariam novos louros a a Jorge Jardim. A guerra civil
no Congo Belga (hoje Zaire) afecta duramente a comunidade portuguesa naquele
território. Conforme se narra no livro da Bertrand Editora, Jorge Jardim
oferece-se como voluntário para participar na ponte aérea Léopoldville
(Kinshasa)-Luanda. Acaba a chefiar a operação, a partir da torre de controle do
aeroporto de Leopoldville, onde permanece durante três dias e três noites.
Regressa a Luanda no último avião. Mas depois voltou várias vezes ao Congo, em
viagens clandestinas, para resgatar portugueses e belgas. Escolhia o período
crepuscular do amanhecer para aterrar. Na última vez, foi preso por soldados
congoleses. Terá sido salvo do pelotão de fuzilamento por ter comovido os seus
algozes com a fotografia da numerosa prole.
No início de 1961, estava metido noutra,
sempre na base do voluntariado. Por altura do apresamento do Santa Maria,
deslocou-se ao Brasil, saltou de cidade para cidade, e conseguiu fazer chegar
informações cifradas a Lisboa, através da Companhia Nacional de Sabões, que
supostamente tinha um negócio com uma empresa
brasileira.
Logo a seguir, vamos encontrar Jorge
Jardim, no norte de Angola, na resposta ao ataque da UPA aos fazendeiros
portugueses. Mais tarde, participaria em operações militares no território. O
mancebo sem físico para militar, vingava-se dessa humilhação e assumia-se como
um general de campo.
Aliás, no mesmo ano, escrevia a Adriano
Moreira, ministro do Ultramar, nos seguintes termos, citados por Freire Antunes:
“Na hora em que vivemos prefiro, ali, cada vez mais acompanhar os militares -
que aliás gostam de mim - e aparecer menos com os políticos, mesmo quando amigos
pessoais.”
Mas a imaginação e a capacidade “james
bondesca” de Jardim ainda não tinham atingido o seu ponto máximo. Faltava a
Índia.
Agente especial na
Índia
No final de 1961, as tropas de Nehru
ocupam Goa em dois tempos e fazem prisioneiros os 4 mil militares portugueses da
guarnição. Salazar tenta ganhar tempo e dar repercussão ao caso dos
prisioneiros, ameaçando com a expulsão de cidadãos indianos residentes em
Moçambique. Jorge Jardim concebe, então, um plano para ir à ìndia negociar a
libertação dos prisioneiros portugueses, sendo recebido ao mais alto nível pelo
governo do país.
O primeiro passo, segundo a narrativa de
Freire Antunes, foi uma espécie de sequestro moral de Kakoobbai, um indiano a
viver em Moçambique, possuidor de grande fortuna. Enquanto ele está em Lourenço
Marques, rouba-lhe documentos comprometedores, na sua casa na beira, mas
consegue que Kakoobba ainda lhe fique agradecido, porque sugere que a PIDE tinha
intenção de os confiscar. Por outro lado, Jorge Jardim manda montar guarda à
casa onde estão a mulher e a filha do indiano, em Lisboa, dizendo de novo que
era a PIDE, e faz-lhe uma proposta “irrecusável”: Kakoobba passa-lhe uma
procuração sobre todos os seus bens em Moçambique e, ao mesmo tempo, abre-lhe as
portas em Nova Deli. O “negócio” resultou em cheio. Em Fevereiro, Jorge Pereira
Jardim partira da Suíça, munido de um passaporte com nome falso e visto da
embaixada indiana naquele país, acompanhado de Kakoobbai. À chegada foi logo
recebido pelo ministro dos Negócios Estrangeiros V.C. Trivedi. Das conversações
resultaram medidas de confiança: a libertação de quatro indianos presos em
Lisboa e de três jornalistas portugueses detidos em
Goa.
Após várias viagens, a crise dos
prisioneiros resolveu-se no início de Maio de 1962 com uma ponte aérea de
Mormugão para Portugal. Salazar chegara a pretender que os navios levassem os
indianos de Moçambique para a Índia e trouxessem os portugueses tentando deste
modo criar problemas a Nehru.
Nas suas andanças pela Índia, terá
chegado a fugir, disfarçado de mulher, para não ser morto. Baltasar Rebelo de
Sousa disse a Freire Antunes que Jorge Jardim esteve também na origem das bombas
que rebentaram em Goa nessa altura. Houve um atentado falhado contra o
governador, por a bomba posta na Câmara Municipal de Vasco da Gama ter explodido
antes da hora prevista.
No dia 13 de Maio, quando o general
Vassalo e Silva, o governador deposto, deixou o território, Jorge Jardim ainda
entregou á enfermeira Ivone Reis, disfarçada de hospedeira francesa, um saco com
documentos confidenciais. E não concedeu a vassalo e Silva a honra de ser a
última pessoa a abandonar Goa. Ficou mais algum tempo no
território.
Jardim trouxe para Lisboa o retrato de
Afonso de Albuquerque, retirado do Palácio de Hidalcão. Adriano Moreira
tinha-lhe pedido que recuperasse o de D. João de Castro. Perante a decepção do
ministro do Umtramar ele voltou a Goa e conseguiu, não se sabe por que artes,
trazer o quadro. Costa Gomes disse a Freire Antunes que a devolução dos
referidos dois quadros “foi uma das primeiras coisas que Mário Soares fez quando
se tornou Presidente da República”.
Um Salazar de preto
Acabada a aventura indiana, Jorge Jardim
preparou-se para a inevitabilidade da guerrilha nacionalista chegar a
Moçambique. Voltou as suas atenções para a Niassalândia, que mudaria o nome para
Malawi, cujo território penetra profundamente no da ex-colónia portuguesa.
Conhece, então, Pombeiro de Sousa, um português fixado em Blantyre desde 1946
que, em articulação com Jorge Jardim, irá desempenhar um papel decisivo no
condicionamento da política do Malawi por Portugal. Pombeiro de Sousa, mais
tarde nomeado cônsul de Portugal na capital daquele país, foi o fornecedor dos
móveis da casa de Hastings Banda, médico e dirigente do Malawi Congress
Party.
Apesar de alguma duplicidade do dirigente
do Malawi, a política de Lisboa foi no sentido de uma aproximação. A oferta para
melhorar o fornecimento de combustíveis ao país através da ligação a Nacala,
constituiu a oportunidade de um contacto directo de Jorge Jardim com Banda, em
meados de 1963.
Um ano mais tarde, em 6 de Julho de 1964,
é proclamada a independência com a presença de uma forte delegação portuguesa.
Dois meses antes, Banda fora recebido em Nacala e Nampula como se de um chefe de
Estado se tratasse.
Ao mesmo tempo, Jorge Jardim e a sua
mulher mobilizaram-se para os preparativos da festa da independência, ajudando
nomeadamente as mulheres dos dignitários. João Barreto, piloto de Jardim, disse
a Freire Antunes: “Levei em várias viagens máquinas de costura, linhas de coser
e costureiras da Beira, para as mulheres se vestirem para a
festa”.
Mas a ofensiva de Jardim não se limitou à
costura. No mesmo ano, Boullosa (SNASP) juntou-se a Banda para formar a Oil
Company of Malawi. Do mesmo passo, Jorge Jardim era nomeado cônsul do Malawi na
Beira.
Ainda em 1964, Jardim que ganhara um
estatuto único junto de Salazar, trouxe o seu amigo, Pombeiro de Sousa a São
Bento. Pombeiro de Sousa contou a Freire Antunes esse encontro: “Falou três ou
quatro vezes nos pretinhos. Eu disse, a certa altura: ‘O senhor presidente
desculpe, mas olhe que há pretinhos com tanta ou mais capacidade de que os
brancos’. Ele então disse, zangado:’O senhor não tem um avião para apanhar?’
Praticamente pôs-me fora da sala”. Nesse mesmo encontro Jardim instado por
Salazar a explicar como era o Banda, teve uma resposta lapidar: “Tal e qual como
V. Exª, mas em preto.”
Um susto para Banda
Em 25 de Setembro de 1964, a Frelimo
lança as primeiras acções de guerrilha. Jardim tem o seu dispositivo de
informações bem montado e colabora estreitamente com as Forças Armadas e com a
PIDE. Mas mantém a habitual ousadia na frente diplomática. Convida para visitar
Moçambique dois jornalistas da Pravda que conhecera nas festas de
independência do Malawi. Claro que Domogatsky e Kolesnichenko eram oficiais do
KGB. Talvez por isso se entenderam tão bem com o agente secreto português, ao
longo de uma viagem de cinco mil quilómetros.
Só em 1965, Orlando Cristina, o caçador
de elefantes que falava as línguas nativas e casava com as filhas dos régulos,
se tornou um colaborador directo de Jorge Jardim. Desertara para a Frelimo, em
Dar es Salaam, alegadamente numa missão de recolha de informações, mas no
regresso foi preso por desconfiança em relação á autenticidade do seu
comportamento. Sai da prisão quase de forma clandestina para ir dirigir o treino
dos Young Pioneers. Um dia, na capital do Malawi, Jardim entra no palácio
presidencial e chega à presença de Banda, sem ser interceptado por ninguém e
pergunta, segundo conta Pezarat Correia, antigo comandante da Polícia da
Beira:”’O senhor presidente sente-se seguro?’ Banda disse que sim. ‘Olhe que eu
entrei por aqui dentro, ninguém me interceptou, se quisesse matá-lo já o tinha
morto.’ Banda ficou impressionado com o golpe de teatro de Jardim e aceitou
formar uma guarda pessoal”. Essa tornou-se uma das missões dos Young Pioneers
dos opositores do presidente Banda. O próprio Pezarat Correia ia entregar armas
ao campo de treino daquela força.
Negociações com a Frelimo
Entretanto, Jardim abre uma nova frente
de relações públicas. Promove os concursos de misses, mas depois conta com elas
como agentes secretas, como aconteceu com Palmira Barral, a mulher com quem
casou em 1980, de pois de enviuvar de Teresa Monteiro de Sousa, mãe dos seus 12
filhos, dois dos quais, o mais velho e o mais novo, já falecidos. Com João Maria
Tudela, palmira barral participou na vinda a Lisboa de Oscar Kambona, um
opositor de Julius Nyerere. Esta deslocação fazia parte de uma operação mais
vasta, destinada a apoiar o derrube do presidente da
Tanzânia.
Em 1973, depois de tantos anos a lutar
pelo Império ou por Portugal do Minho a Timor, Jorge Jardim descola pela
primeira vez da articulação que mantinha em Lisboa. Ele pode perder tudo, menos
Moçambique. Segundo Freire Antunes, o seu papel na divulgação do massacre de
Wyriamu credita-o como um interlocutor aceitável para Kaunda. Inicia-se, então,
um processo de negociações com a Frelimo através do presidente da Zâmbia, tendo
como horizonte a independência. Mas Jardim chega tarde ao encontro com a
história. No dia 25 de Abril de 1974 está em Lisboa. E, segundo Freire Antunes,
quando pretende regressar a Moçambique, Spínola e Costa Gomes impedem a sua
partida, receosos da dinâmica provocada pela sua presença. Não mais lá voltaria.
Mas morreu na esperança de que esse dia havia de
chegar.
O Malawi a seus pés
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Os caminhos de Costa Gomes e de Jorge
Jardim que depois do 25 de Abril de 1974 ficariam em campos irredutivelmente
opostos, cruzaram-se pela primeira vez em 1965, quando o futuro Presidente da
República assumiu em 1965 o cargo de 2º comandante da Região Militar de
Moçambique. Apesar de o entendimento não ser completo, nesse período Costa Gomes
beneficiou do conhecimento do terreno e do ascendente de Jardim junto do
presidente do Malawi, Hastings Kamuzu Banda. “Nunca esqueci os serviços
relevantes que o Jardim prestou ao País”, disse Costa Gomes a José Freire
Antunes. Banda é um das figuras centrais do capítulo nono de Jorge Jardim,
Agente Secreto, intitulado Protectorado do Malawi 1968-1969, do qual
publicamos alguns excertos. Com a chancela da Bertrand, o livro foi lançado dia
3 de Abril no Centro Cultural de Belém, com apresentação de Adriano
Moreira.
Os anos de 1968 e 1969 ficaram assinalados por dois acontecimentos
decisivos: a subida ao poder de Marcelo Caetano e o assasssínio de Eduardo
Mondlane, fundador da Frelimo. Na nova situação, Jorge Jardim continua a jogar
fundo a cartada do Malawi.
“Operação
Likoma”
As águas do lago Niassa - 500
quilómetros de comprimento e 110 quilómetros de largura no seu ponto máximo -
foram divididas no século XIX, através do tratado de Portugal com a Inglaterra
que se seguiu ao Ultimato de 1890. A Ilha de Likoma, habitada por
ajauás-nyanjas, ficou integrada através do tratado na parte do que era a
Niassalândia e viria a ser o Malawi. Em 1954, Paulo Cunha, ministro dos Negócios
Estrangeiros, negociou com a Niassalândia a repartição da Ilha de Likoma com
Moçambique, pela linha média das águas. A pequena ilha - oito quilómetros de
comprimento por quatro de largura - pelo censo de 1966 tinha 5 000 habitantes,
que viviam sobretudo da pesca. a terra era fraca, nela se produzindo milho e
mandioca, “muito raquítico”. os produtos de primeira necessidade idos do Malawi
a partir do porto lacustre de N’Kota Kota eram transportados de barco - espécie
de “cacilheiros” pequenos - uma vez por mês. a ilha distava cerca de 40
quilómetros de N’Kota Kota e 8 quilómetros de Cobué, uma povoação moçambicana a
30 quilómetros de Matâmgula, capitania do Lago Niassa. Após o início da guerra,
em 1964, Likoma tornou-se um destino de refugiados e também de elementos da
Frelimo, ocorrendo um acréscimo súbito da população. A Frelimo usava a ilha como
posto de vigia das lanchas da marinha portuguesa, o que preocupava tanto Banda
como as autoridades de Moçambique. Era preciso agir, mas sem estardalhaço,
ficando excluída a hipótese de um desembarque militar. “Muito menos sabendo nós
( o engenherio jorge Jardim e eu [Jorge Calrão]), que havia dois elementos do
Peace Corps . Normalmente ligados á CIA - na ilha e que de vez em quando também
apareciam, para visitas rotineiras, alguns ingleses ligados aos quadros da
polícia do Malawi (esta polícia era enquadrada por ingleses).” O objectivo de
J.J. foi “limpar” Likoma de guerrilheiros da Frelimo e para isso obteve luz
verde de Banda. Com o seu piloto Calrão planeou então um two-men operation na
ilha.
Sabiam, através de voos de
reconhecimento, que existia em Likoma uma pista de aterragem, térrea e mal
conservada, com cerca de 500 metros, que permitia a aterragem do Cessna 401.
Prevendo anomalias na aterragem ou um ataque da Frelimo, levavam na bagageira do
avião uma mini-mota eléctrica desmontável. J.J. pensou arrebatar os habitantes
com ofertas e Calrão foi a Salisbury comprar 100 quilos de rebuçados, 50 quilos
de bombons, pipocas, 20 rádios a pilhas, 200 cpas de pescador, 50 caixas de
cerveja, coca-cola em lata, saquetas de arroz, feijão e grão, embalagens de
sabão, caixas de primeiros socorros, agulhas, linhas, tesouras e uma enorme
quantidade de capulanas, tecidos estampados com motivos de África. a etapa
seguinte do Cessna 401 foi Vila Cabral, onde J.J. cumprimentou o governador
distrital, coronel Nuno Melo Egídio. Enquanto Calrão adquiria garrafões de vinho
normal, J.J. foi pedir ao bispo de Vila Cabral, D. Eurico de Nogueira, garrafas
de vinho de missa, especialmente engarrafado por ele para oferecer ao velho
padre anglicano M’zeca: “Só na altura soube, que ao dizerem a missa, os
anglicanos também usam vinho. Levámos, pois, uma caixa desse vinho especial,
ecuménica e gentilmente oferecida pelo bispo. Mais um pormenor que só ao Jorge
Jardim lembraria” [Jorge Calrão]. Assim, carregados dirigiram-se para Metângula,
onde pernoitaram, e na manhã seguinte aterraram normalmente em Likoma. J.J.
pegou na mini-mota, em estilo espectaculoso, e abalou em direcção ao povoado
para se encontrar com o padre M’zeca.
Enquanto isto, junto ao avião, e sem mãos
a medir, Calrão começou a distribuir os presentes aos àvidos habitantes,
sobretudo crianças. Algum tempo depois surgiram o padre M’zeca e J.J. que o
convidou a entrar no avião e deu-lhe o vinho especial do bispo de Vila Cabral:
“Ficou cheio de alegria e desfazia-se em agradecimentos. Foi-nos contando quais
as dificuldades por que passavam os habitantes da ilha, que nós já conhecíamos
pelo próprio dr. Banda” [Calrão]. O padre chamou alguns homens para ajudarem a
descarregar o avião e a transportar tudo para a Casa central (caso do chefe). Os
autóctones perceberam que tudo o que vinha a bordo era para eles e irromperam
“em gritos de alegria e vivas”. M’zeca convidou-os depois para uma visita à
ilha. Como o sacerdote usasse uns óculos velhos, colados com adesivo,
ofereceram-se para o levar à beira, a uma consulta médica. a multidão
despediu-se com uma sonora alegria, como se os dois doadores tivessem descido do
céu: “E assim, numa acção baratíssima, conquistámos as boas graças da ilha de
Likoma, que tantas preocupações vinha dando a tantos portugueses responsáveis e
que já propunham até um desembarque de tropas numa acção (como vimos
desnecessária) de força” [Calrão]. Foi a estratégia de conquista das bocas e dos
corações que J.J. passou a usar, com sucesso na Ilha de
Likoma.
Caetano no poder
Manuel Nazaré, um negro nascido em
Quelimane, foi médico de análises clínicas de Salazar durante mais de 20 anos.
Dedicou-se à sua carreira profissional, sem grandes entregas à política mas
ainda assim serviu como deputado á Assembleia Nacional. Diz que Salazar pensou
nele, em 1968, para governador de Moçambique e chegaram a falar em privado sobre
essa hipótese. Ante a insistência de Salazar, Manuel Nazaré pôs como condição
despachar directamente com ele, única maneira de resolver os problemas de
Moçambique; o Presidente do Conselho disse que não podia ser, que não se podia
passar por cima do ministro do Ultramar, Silva Cunha. manuel Nazaré sugeriu-lhe
então J.J., de quem era amigo e que tratava por tu, mas Salazar
argumentou:”Sabe, o Jorge Jardim seria um bom nome, simplesmente hoje está
metido na indústria, já não tem o beneplácito das populações.” Salazar adiantou
então o nome de Baltasar rebelo de Sousa, que tinha sido aluno de Manuel Nazaré
na Faculdade de Medicina. davam-se bem. À noite, encontrou-o por acaso na ópera
e revelou-lhe que ele ia ser governador de Moçambique: “Ele disse: ‘Você está
maluco’ Ficou completamente tonto.” Mas no dia seguinte Salazar chamou Rebelo de
Sousa e convidou-o. O velho amigo de J.J. tomou posse como governador em 27 de
Julho de 1968. Consumava-se, enfim, o velho projecto de estarem os dois ao mesmo
tempo em África.
Augusto dos Santos continuou como
comandante-chefe e Costa Gomes como comandante da região Militar, e a
articulação deles com o governador foi boa. Formalmente, a posição de J.J. ficou
mais forte com Rebelo de Sousa na Ponta Vermelha, mas a amizade entre os dois
vinha perturbar, de certo modo, o estilo e a vocação autónomas de J.J. nas suas
deambulações. Rebelo de Sousa reagiu em 1976 ao livro de memórias de J.J.,
esclarecendo que, durante o seu mandato de governador, “nunca Jorge Jardim
dispôs de serviços especiais de informação nem de grupos especiais de
intervenção nem de facilidades que não fossem as de qualquer cidadão qualificado
ou as que resultassem da representação consular do Malawi que
detinha”.(...)
Com o afastamento de
Salazar em 1968, começava uma nova fase na vida de J.J., o multifacetado gestor
de empresas, “correio do Czar”, cônsul do Malawi, agente secreto, e
guerrilheiro, frequentador de São bento e da State House, amigos de ricos e
padrinho de pobres. Entre 1952 e 1968, sob a protecção de Salazar, adquirira um
estatuto especial no Estado Novo e um poder considerável sobra a política, a
economia, a sociedade e a estratégia de contra-subversão em Moçambique. Chefiava
pelotões de combate no mato com o mesmo ritmo frenético com que conspirava nos
salões da diplomacia ou entrava na Ponta Vermelha, movia-se entre as capitais de
África e as capitais da Europa com a auréola de um poderoso na sombra e de
um manobrador oculto. Tudo isto, mais o que sobre ele se imaginava,
tornavam J.J. diz Hall Themido, “um agente do Governo”, de Salazar e de Franco
Nogueira, um embaixador sem ser nomeado”. Funcionava como ponte para vários
serviços secretos, favoráveis ou hostis a Portugal, da rodesiana CIO ao
sul-africano BOSS, da americana CIA ao inglês MI-6 e, sobretudo, o francês
Service de Documentation Extérieure et de Contre-Espionage (SDECE). Era um
especialista em informação e contra-informação, um manipulador obedecido e o
chefe de uma rede autónoma de peões e de apóstolos que o seguiam
incondicionalmente, um impulsionador ardiloso. Articulava operações em África
com a PIDE mas mantinha zonas de impenetrabilidade em relação á polícia e, por
vezes, criava atritos. Álvaro Pereira de Carvalho, director dos serviços de
Informações da PIDE, via J.J. como “um especialista ao alto nível no mundo da
diplomacia”. Mas desde o verão de 1952, quando abalou para o Dondo, a sua
proximidade meio filial a Caetano tinha sido substituída por uma distanciação
humana e política e pela inserção num novo círculo de
cumplicidade.(...)
Gestão do saco “azul”
Um ritual prático explicado por J.J. a Caetano durante os encontros
iniciáticos em que se fixaram as normas funcionais, era o financiamento das
operações secretas. Acertou-se um aumento das verbas atribuídas pelo Estado. Em
10 de Fevereiro, J.J. acusava a recepção: “Entretanto já me chegou o anúncio do
esforço dos meios financeiros, dentro do plano estabelecido e já lhes fiz dar o
seguimento habitual.” As verbas incluíam-se no Orçamento das Forças Militares
Extraordinárias do Ultramar (OFMEU), um orçamento especial para as actividades
das forças irregulares e das tropas especiais em África. O dinheiro era enviado
através do serviço de Administração e Finanças, chefiado por Vicente Varela
Soares, e depositado em contas
pessoais de J.J., pedia a Caetano uma aceleração: “ Até ao momento ainda não
tive notícia do solicitado depósito na minha conta, no Lisboa & Açores, dos
meios normalmente atribuídos (1 500) e de acordo com o combinado no nosso último
encontro em Lisboa. Muito agradeceria o favor das suas instruções em tal
sentido.” Depreende-se que os depósitos não eram automáticos e que, por vezes,
dependiam da luz verde de Caetano e dos seus ministros. Costa Gomes diz que J.J.
recebia verbas dos ministérios da Defesa Nacional e do Ultramar, e do
Governo-Geral de Moçambique: “Jardim tinha um orçamento de Estado para as Forças
Armadas. Eram verbas especiais, de que não dava conta a ninguém, e de que não há
escrita.” Para a Operação Malawi, com a abreviatura MW, J.J. recebeu entre
Outubro de 1966 e Fevereiro de 1974, a quantia de 57 625 000$00, distribuída por
verbas anuais que variaram entre 1 000 000$00 (em 1966) e 11 500 000$00 (em
1973). Para a Operação Oscar Kambona, com a abreviatura OK, o Governo atribuiu a
J.J., entre 1971 e 1974, a quantia de 42 400 000$00. O total eleva-se a 100 025
000$00. Deve concluir-se que havia consenso no Governo quanto á utilidade das
verbas que o Estado canalizava para J.J. e que eram geridas só por
ele.
Um dos homens encarregados de encaminhar
os dinheiros para J.J. era o tenente-coronel José Florêncio de Almeida, chefe
dos serviços administrativos do Ministério da Defesa Nacional. Arnaud Pombeiro
(membro dos SEII, na Beira) diz que J.J. guardava os recibos todos, fazia uma
contabilidade expedita e apresentava-a em Lisboa: “Quando era despesas maiores ,
pedia autorização para as fazer. para as mais pequenas, ia ter com o actual
coronel Florêncio de Almeida”. Álvaro Récio, já definitivamente conquistado por
J.J., foi durante 13 anos um dos seus homens de maior confiança. J.J. fez-lhe
teste de eficácia em situações difíceis , teve-o na Beira, ao seu serviço, entre
1961 e 1964 e depois enviou-o para Lourenço Marques, onde chefiava a delegação
da Lusalite. Récio foi penetrando no apaixonante e perigoso mundo de J.J., onde
se cruzavam o expediente do comércio e as missões escaldantes da política de
guerra, e ficou subordinado: “Vivia aterrorizado com o que pudesse acontecer e o
jardim tinha-me na mão. Era um homem superior, extraordinariamente vaidoso. Mas
para mim a verdade era para se dizer. Ele fazia-me uma pergunta ou punha-me um
problema e eu dizia a verdade. a maior parte das vezes o jardim zangava-se
comigo, mas zangava-se de forma paternal.” J.J. atribuiu também a Récio a função
de guardador e distribuidor de dinheiros: o “saco azul” passava, em parte pelas
suas mãos. A sua primeira experiência foi aterradora. Teve de ir buscar cash ao
gabinete do governador, e levou os seus dois irmãos, armados de caçadeiras,
trazendo duas malas cheias de dinheiro: “A única preocupação do governador era
tirar as tiras que diziam de onde é que vinha o dinheiro: do Banco de Fomento,
do BNU, de muitos sítios. Vinha também em notas estrangeiras.” Não havia contas
nos bancos para este esforço de guerra das empresas de uma economia estatizada,
o dinheiro circulava no género “saco azul, mala preta”, e os gerentes bancários
sabiam de onde provinha o dinheiro para J.J., mas não
diziam.
Militares como Costa Gomes, Rosa Coutinho
e Pezarat Correia falaram muito nos fundos de J.J. oriundos dos cofres do
estado, uma matéria delicada, mas ninguém até agora o acusou de ter feito
fortuna graças a esses dinheiros públicos ou de ter usado a sua disponibilidade
financeira para fins que não fossem os da causa do regime em áfrica. As
operações mais sensíveis e mais dispendiosas que J.J. levou a cabo tiveram
sempre cobertura de S. Bento ou dos ministérios. Por outro lado, ao nível dos
negócios empresariais, J.J. fazia movimentar verbas avultadas: “Claro que fui um
homem que ganhou muito dinheiro. Devo dizer que o ganhei sempre em empresas
privadas. Nunca á mesa do orçamento.” Entre o temor e o deslumbre da importância
de certas acções secretas de J.J., por mais sórdidas que lhe parecessem, Récio
aprendia com o mestre as duras manobras da guerra africana: “Devo dizer que
paguei durante dois anos a uma amante do Nkrumah que nos dava informações. Era
uma mulher da África inglesa, era negra clara. Hospedava-se no Hotel Polana.”
Para todos estes pequenos, mas às vezes vitais, circuitos da espionagem era
necessário dinheiro, muito dele provinha do Estado e das empresas e uma parte,
segundo afirma Récio, era canalizada para conspícuos destinos: “Cheguei a pagar
a generais que depois apareceram ligados ao partido Comunista na fase de
1974-75.” J.J. organizou também uma estrutura de informações, chamada na gíria
“mini-CIA”, que disseminava a sua actividade por vários países da África Negra.
A sede da “mini-CIA” não dava nas vistas, era um pequeno escritório na beira, em
frente aos SEII (serviços de informação).
Livro-bomba: Mondlane morto
Sete meses depois da reabertura da frente
de Tete, com a ajuda directa de tropas de Kaunda, a dissidência de Lázaro
Kavandame, um líder Makonde, continuou a desagregar a Frelimo em clãs de
natureza política e tribal. Filipe Magaya, primeiro comandante, foi assassinado.
Devido ao facto de ter trazido brancos para as fileiras, Mondlane era criticaado
e a influência da sua mulher, Janet Rae não era bem vista. Em Dezembro de 1968,
junto a Rovuma, segundo reza a história oficiosa da Frelimo, a guerrilha makonde
de Kavandame liquidou Samuel Kankhomba, membro do estado-maior de Machel. A
direcção executiva da Frelimo, reunida em 3 de Janeiro de 1969, expulsou
Kavandame, sendo a decisão comunicada ao líder makonde numa carta de Mondlane.
No início de 1969, como notava Rebelo de Sousa a partir da Ponta vermelha, a
guerrilha passava por um refluxo a que não seriam alheias as profundas
dissensões internas: “O terrorismo tem estado quieto. Esperemos que por todo o
mês de Fevereiro volte a aparecer com alguma intensidade. Como temos falta de
tropa, só com material conseguiremos evitar desastres. Mas o material nunca mais
chega.” O ambiente dentro da Frelimo ficou de cortar à faca. Foi neste quadro
que morreu Mondlane, o pai fundador da organização e se ideólogo cimeiro. Miguel
Murupa diz que nunca esquecerá o dia 3 de Fevereiro de 1969. Era então
vice-secretário da Frelimo para as relações exteriores e funcionava nos
escritórios de Dar-es-Salam, um rés-do-chão espaçoso, num edifício frente á
linha de caminho-de-ferro. Aí mantinha a Frelimo a base para questões
administrativas e financeiras, sendo que os serviços operacionais se encontravam
em Nashingwea, onde estavam o vice-presidente, Uria Simango, e o chefe militar,
Machel. Um mês antes, Miguel Murupa tinha acompanhado Mondlane ao Egipto e ao
Sudão, onde participaram em conferências. Murupa sentia-se mais próximo de Uria
Simango; mas não tem dúvidas em afirmar sa superioridade intelectual de Mondlane
e em dizer que, com ele vivo, Moçambique seria hoje um país
diferente.
Uma primeira circunstância estranha, a
não ser por autoconfiança ou amadorismo, é que o presidente da Frelimo manuseava
o correio que lhe era dirigido, incluindo encomendas. Assim fez Mondlane nesse
dia. apareceu no escritório, por volta das nove da manhã, reuniu com alguns dos
presentes, e uma hora depois saiu, levando a correspondência como era seu
hábito. O líder da Frelimo preferia trabalhar em casa da secretária, Betty King,
uma branca americana, num arredor discreto de Dar-es-Salam. Entre o correio
empilhado e dirigido a Mondlane contavam-se vários embrulhos com livros. Um
deles chamou a atenção de Miguel Murupa porque, sendo uma encomenda de aspecto
normal, com uma fita em volta, tinha no exterior a inscrição em inglês “Manual
de Filosofia Marxista” (outra versão aponta para um encomenda com selo de
Moscovo, contendo uma edição de textos de George Plekhanov). Fosse como fosse,
Mondlane agarrou na pilha de correspondência, despediu-se com a sua jovialidade
característica, e foi-se embora para não mais voltar.: “Por volta das 11 horas,
apareceu o Chissano a chorar. Mondlane morreu ao abrir o livro. A explosão
decepou-lhe as mãos e separou-lhe o tronco em duas partes.” Joaquim Chissano,
futuro presidente de moçambique, era o responsável pela segurança da Frelimo. A
polícia tanzaniana isolou a residência de Betty King e, segundo Murupa, apenas
Nyerere e Marcelino dos Santos viram o cadáver de Mondlane no meio dos destroços
provocados pelo livro-bomba. Nyerere promoveu um funeral de Estado a Mondlane
com honras militares, no cemitério de Kinondini, em Dar-Es-Salam. Uria Simango,
o vice-presidente assumiu formalmente o poder até á reunião seguinte do comité
central. A morte do pai histórico da Frelimo foi o acontecimento capital da
guerra em Moçambique no ano de 1969 e teve profundas consequências para o futuro
do território.
Os autores do assassinato permaneceram
envoltos em mistério, excepto para quem tem certezas adquiridas. Costa Gomes, um
bom conhecedor dos mecanismos da PIDE, que o distinguiu com o seu Crachat
d’Ouro, é definitivo: “Quem matou o Mondlane foi a PIDE.” No sentido oposto,
aponta Silva Cunha, ministro do Ultramar, a quem interessava mais ter Mondlane á
frente da Frelimo, por ser um homem moderado, do que Machel, que era “de um
nível cultural mais baixo e mais rancoroso contra nós”. Silva Cunha observa que
o mais curioso é que os selos da Rússia, supostamente apostos na encomenda
letal, não estavam carimbados. Mas o antigo ministro não se pronuncia sobre quem
cometeria o crime. Álvaro Corte-real, presidente da Associação Africana, a quem
Mondlane fizera chegar, sem resultado, mensagens de aliciamento, é um outro
homem sem dúvidas: “Por amor de Deus, toda a gente sabe que foi uma facção da
Frelimo que matou Mondlane.” Outra pessoa muito segura quanto á origem do
crime, segundo J.J., foi Banda. Em 6 de Fevereiro , três dias após a morte de
Mondlane, o líder do Malawi previu um endurecimento da Frelimo e atribuiu a
morte “às manobras dos agentes da China”. Um antigo operacional da CIO
rodesiana, Henrik Ellert, afirma que o goês Casimiro Jordão Monteiro, inspector
da PIDE dado como responsável pela morte de Delgado, foi quem armou a cilada.
Pombeiro de Sousa tem uma ideia diferente. Pensa que a operação foi demasiado
bem montada para ser obra da polícia portuguesa: “A PIDE não fazia nada de
jeito.” António Vaz nega o envolvimento da PIDE. porquê matar Mondlane, se ele
era, para a política de Portugal, “o líder menos mau?”. Miguel Murupa põe a
hipótese de intervenção de potências como uma indetectável capacidade
operacional: “Só pode suspeitar-se de serviços secretos altamente sofisticados.
Mas a minha pergunta é esta: porque é que Nyerere nunca publicou o relatório
sobre o assassinato?” O mistério subsiste, 27 anos
depois.
Também J.J. foi visado como co-autor da
morte de Mondlane. segundo o Servizio Informazione Difesa (SDI), a espionagem
italiana, a operação teria sido preparada por uma rede envolvendo J.J., Simango,
Robert Leroy, a Aginter-Presse, organização transeuropeia de direita com sede em
Lisboa, na Lapa, e ligações aos ministérios da defesa e dos negócios
Estrangeiros. Como espião em Dar-es-Salam teria agido Robert Leroy e por detrás
da acção teria estado Casimiro Monteiro. Numa versão que deu da sua condecoração
por outros chefes da Frelimo, Simango terá contado que, após a morte de
Mondlane, em reuniões em casa de Janet Rae, na Baía das Ostras, Machel, Joaquim
Chissano, Marcelino dos Santos, Armando Guebuza, Aurélio Manave e Josina Abiatar
Muthemba deliberaram que o vice-presidente e três outros militantes, Silvério
Nungu, Maiano Masinye e Samuel Dhlakama, eram responsáveis e deveriam ser
eliminados. A hipótese da cumplicidade de Simango é rejeitada por Miguel Murupa.
Sendo um padre protestante, muito devoto, Simango não contemplaria o assassinato
entre os critérios de acção, apesar das suas divergências com Mondlane. O chefe
dos serviços secretos da Tanzânia, geoffrey Sawaya, concluiu que fora usado no
livro-bomba material explosivo da casa Pfaff, em Lourenço Marques (Rua Joaquim
Lapa, nº 5), e que a PIDE teria sido ajudada dentro da Frelimo por Lázaro
Kavandame e Silvério Nungu, secretário administrativo no quartel-general de
Dar-es-Salam, que morreu durante uma greve de fome. O chefe da delegação da PIDE
na beira, inspector Gomes Lopes, íntimo de J.J., disse a um repórter americano
que “ou os russos planearam os assassinatos, ou tratou-se de uma engenhosa
armadilha montada pelos chineses”. J.J. negou durante anos a fio a sua ligação á
morte de Mondlane. Disse que sentiu a maior pena e que, quando o crime ocorreu,
Banda estava até a combinar um encontro entre ele, J.J. e Mondlane, só não tendo
feito mais cedo “por duvidar da minha preparação para isso”. A Frelimo nunca
levou até ao fim o inquérito á morte do seu pai
histórico.(...)
Ordens a Sebastião Mabote
J.J. com a colaboração dos Young
Pioneers, interceptou no Malawi correspondência enviada da Tanzânia por
Sebastião Mabote, o chefe da secção operacional da Frelimo, para a base de
Catur, dentro de Moçambique. A carta continha instruções operacionais, foi
expedida da Tanzânia e levantada no Limbe e, dado o seu interesse. “apressei-me
a fornecer a fotocópia á PIDE, na beira”. Continuava a firmar, em abril de 1969,
baseado nos seus serviços de vigilância, que a Frelimo não preparava actos
armados dentro do Malawi nem tinha no território “qualquer actividade”. Mas em
10 de Maio, Augusto dos santos informou J.J. da existência de actividades da
Frelimo na zona do Chala-Catur, com movimentos junto á fronteira e possível
refúgio no Malawi. Combinou-se com Banda que as tropas portuguesas poderiam
perseguir elementos que se refugiassem no Malawi, “mesmo que para tanto tivessem
de penetrar em território daquele país”. J.J. soube que partidários de Henry
Chipembere, o rival de Banda, estavam activos na zona de Makangila, onde houve
assaltos a povoações, cantinas e viaturas, com armas idênticas ás usadas pela
Frelimo. Detectaram-se quatro indivíduos, chefiados por um tal Canadá, mas não
foram detidos devido “à protecção que recebem da população da área”. De posse da
informação de que o posto português de Namizalo seria atacado, na noite de 14 de
Maio, por elementos idos da Zâmbia, alertou Rebelo de Sousa pelo telefone e fez
o mesmo a Vasco Futscher Pereira, que passou a informação aos militares da
Beira: “O ataque veio a verificar-se na noite de 15 para 16, mas a nossa
guarnição estava alertada. Ignoro detalhes.” Estava a fixar-se, segundo J.J., um
esquema que visava limitar as consequências das múltiplas informações
fantasiosas sobre a actividade subversiva proveniente do Malawi”. Por exemplo, o
padre nacionalista Mateus Gwengere não estava no Malawi, segundo J.J., mas na
Zâmbia. Os boatos davam como certos a sua presença no Malawi e um seu encontro
com Banda. O que este negava.
A assistência da marinha de Portugal à
“Marinha” do Malawi para fiscalização do lago Niassa era uma outra faceta da
cooperação bilateral e mais uma aplicação dos entusiastas de juventude de J.J.
como piloto naval e “marinheiro” da Legião Portuguesa. O tenente Manuel
Agrellos, da reserva Navalk, comandava a lancha John Chilembwe, tripulada
por Young Pionners treinados em Metangula. Notavam-se apenas deficiências em
Nkata-Bay, devido á inexperiência do Malawi em tudo o que fosse actividade
náutica, e ao facto os Young Pioneers viverem num “ambiente de rusticidade”.
Alguns europeus residentes no Malawi consideravam a lancha uma unidade da
Marinha portuguesa sob bandeira do Malawi, mas a actuação de Manuel Agrellos
permitiu ultrapassar as dificuldades, e John Chilembwe controlava todas
as embarcações do Malawi que se movimentavam no Lago Niassa. Banda pediu a J.J.,
em 31 de Janeiro de 1969, que os conselheiros portugueses ficassem por mais um
ano, até estar seguro da capacidade dos tripulantes do Malawi que eram treinados
em Metangula.(...)
O incremento de contactos sociais foi
outra preocupação do cônsul do Malawi, que aproveitou o casamento de uma filha
sua, na beira, para promover amizades políticas. rebelo de Sousa conheceu então
Cecília Kadzamira, primeira dama do Malawi, que dispunha no país, segundo J.J.,
“de muito considerável influência”. O governador e a mulher convidaram-na a
visitar Moçambique e Banda concordou, mas disse que gostaria de receber primeiro
a visita no Malawi da esposa de Rebelo de Sousa. Banda queria que a visita
coincidisse com o Kamuzu Day, a festa do seu próprio aniversário natalício, e
que J.J. e a sua mulher o acompanhassem. Convidou também o governador de Tete,
coronel Cecílio Gonçalves, para a festa da independência do Malawi, em Julho
J.J. achava que isso teria interesse dentro da estratégia de estreitamento das
relações com o Malawi. Maria das Neves rebelo de Sousa esteve no Malawi entre 12
e 17 de Maio (1969). Banda distingui-a entre os convidados de diversas
nacionalidades, e ela estabeleceu, segundo J.J. relações da maior cordialidade
com Banda e “de intimidade com Miss Cecília Kadzamira, cuja importância na vida
política do Malawi é conhecida”. A presença de um dos filhos de Rebelo de Sousa,
pedro Miguel, então com 14 anos, contribuiu para reforçar os laços pessoais,
devido até ao desembaraço juvenil e simpatia com que se comportou”. Nas
cerimónias do Kamuzu Day esteve uma missão diplomática portuguesa, chefiado por
Caldeira Coelho, que tinha ido ao Malawi negociar assuntos na área dos
transportes. Outra visitante distinguida por Banda foi a filha do presidente do
Quénia, Jomo Kenyata, que era vereadora do município de Nairobi, e que J.J.
convidou a visitar Moçambique.
Vasco Futscher Pereira
(ministro dos Negócios Estrangeiros em 1982 e 1983, já falecido), embaixador no
Malawi, convalescia de um acidente. Mas ofereceu em honra de Maria das Neves
Rebelo de Sousa uma recepção concorrida e reveladora que aquele nosso
representante diplomático, vai obtendo”. Desenvolvia-se, entretanto, uma outra
fonte de entendimento: no início do ano tinham sido presos no Malawi dois
membros da Frelimo, Manuel Silika e Aisa Alifa, condenados em tribunal por serem
portadores de armas. Estravam a cumprir pena após a qual serial libertados e
devolvidos à Tanzânia. J.J. tinha uma alternativa: “Foram-me fornecidos os
elementos relativos a estes elementos e sugerido que, caso isso interessasse às
nossas autoridades, se poderia promover uma manobra de fuga com vinda para
Moçambique. Consultei a PIDE que se mostrou interessada nestes elementos. Nos
primeiros dias de Junho vai proceder-se a tal operação.” No ar, na água no mato,
no palácio de Banda, no Dondo, nos casamentos: era o J.J. total e sideral. A
articulação com o Malawi passava agora por uma fase dourada. Silva Cunha, lembra
que em 1969, quando Banda foi visitar oficialmente os Estados Unidos, pediu a
Portugal que montasse junto á fronteira um dispositivo militar para intervir
contra eventuais opositores que o quisessem derrubar. O que foi feito. Em
ligação a J.J. Augusto dos Santos, ordenou a um coronel em Nampula que pusesse
em stand by várias companhias. O Malawi era assim, e por uma panóplia de
dependências, uma espécie de protectorado de
Portugal.
In:
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Veja também aqui Download
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