Para quem não tem mais nada a fazer...
Investi algum tempo a reflectir sobre algo que chamei de “fenómeno da bicha”. Essa expressão refere-se a uma rubrica que eu tinha no meu blogue. Hoje vou pegar noutra rubrica com a mesma proveniência e que tinha o nome de “direito à razão”. Referia-se ao direito que temos, como membros da esfera pública, a pontos de vista racionais e razoáveis. A ideia é pretensiosa, reconheço, mas isso parece-me necessário porque volta e meia somos confrontados com pontos de vista que não nos ajudam a entender melhor o país em que vivemos. Há aqueles males de sempre como, por exemplo, o pouco cuidado com a contextualização do que se diz – um exemplo recente disso foram as declarações de Alice Mabota a propósito da detenção de Muchanga que foram usadas por alguns como prova de que mesmo ela tinha tido o cuidado de o aconselhar a ter mais cuidado; na verdade, o que ela disse foi que num país onde as leis não são respeitadas era preciso ter cuidado… – a má leitura, a corrida para a interpretação sem a verificação da veracidade do que se leu, etc.
O maior mal, contudo, o mal que tentei destacar nas reflexões mais recentes, é o de opinar sem argumento. Provavelmente aplica-se aqui a noção grega de “gnosis” na sua acepção religiosa que descreve um conhecimento místico acima de qualquer prova ou validação. Esta é mais uma afirmação pretensiosa, mas necessária. Um argumento para mim não é só uma afirmação que satisfaz os critérios da lógica – portanto, que conclui a partir de premissas sólidas e coerentes – mas também, e acima de tudo (sobretudo na esfera pública), é enformada por um princípio ou valor que lhe dá coerência. Por exemplo, só para pegar algo bem actual, a indignação de muitos contra o atentado que vitimou os caricaturistas franceses é quanto mais forte ainda quando é articulada em defesa da liberdade de expressão ou outro valor qualquer. Portanto, quando alguém diz ser inadmissível usar a violência contra alguém que articulou uma opinião considerada ofensiva o que está realmente a dizer é que existe algo que vale à pena proteger (ou promover), nomeadamente o direito que cada um de nós tem de emitir a sua opinião sem medo de represálias. Claro que há limites jurídicos e morais, sobretudo quando não está claro se uma opinião é simplesmente calúnia ou indecente. O princípio em si também não é sagrado, caso contrário estaríamos perante uma posição fundamentalista. É justo que se discuta se a liberdade de expressão permite o insulto, a calúnia ou mesmo a ridicularização gratuita do outro; seja qual for o veredicto não compete a nenhum de nós reagir apenas de acordo com o que sente. É esta orientação para o princípio ou valor que não só confere coerência aos nossos posicionamentos públicos como também torna o debate público de ideias útil e proveitoso.
Neste texto quero reflectir sobre um assunto bicudo. Refiro-me à questão da violência. Tenho reparado em algumas discussões – mas também independentemente disso – uma certa glorificação da violência, sobretudo entre os mais novos. A propósito das hostilidades militares entre um partido político e o Estado moçambicano houve muita gente que disse que a violência constituía um meio justificado (alguns até disseram “legítimo”) de reagir ao que eles consideraram como sendo um Estado capturado por um partido. Tenho visto regularmente alguns a apelarem por uma revolução como o único meio de mudar o “status quo” em Moçambique. Invariavelmente, essa revolução envolve o uso da violência. Não acho estranha esta forma de argumentação. Tem tradição entre nós. A nossa independência foi possível “graças” ao uso da violência pela Frelimo (uma violência que mais tarde foi chamada de “violência revolucionária”). Os da minha geração cresceram com a convicção segundo a qual existiria uma violência legítima. Seria legítima sempre que tivesse como objectivo “libertar o povo”. Nos meios académicos esta ideia foi popularizada sobretudo por Frantz Fanon, o qual a partir das suas experiências da guerra de libertação na Argélia desenvolveu uma teoria assente na ideia de que uma vez que o sistema colonial se baseava na violência (entre o colono e o colonizado) a única maneira de com ele acabar só podia ser a violência. Mas ao contrário de muitos intelectuais que o idolatram Fanon tinha forte consciência das limitações da sua “teoria”. Ele tinha consciência de que a violência, sobretudo a violência das massas dos oprimidos, pode facilmente descambar na brutalidade pura. A única coisa que lhe ocorreu dizer a este respeito foi que era importante ter uma liderança capaz de guiar a violência espontânea dessas massas, uma liderança, portanto, que seria capaz de domesticar a violência. O ponto que quero destacar aqui é o princípio que é defendido sempre que se faz apelo à ideia duma violência legítima, nomeadamente o princípio segundo o qual seria justificado fazer uso da violência sempre que chegarmos à conclusão de que vivemos sob opressão ou sob tirania. É fácil depreender a partir daqui que este argumento é muito problemático pelo tipo de compromissos que nos obriga a fazer se queremos ser coerentes na esfera pública.
O primeiro problema com este tipo de opinião é o da confusão semântica. Justificar e legitimar são coisas diferentes. Eu posso justificar o recurso à violência sem que ela seja necessariamente legítima. E muitas vezes, como bem disse Hannah Arendt na sua bem fundamentada crítica a Fanon, a violência é algo instrumental e que, portanto, tem como função essencialmente alcançar os fins que a justificam. É a partir da independência que justificamos o recurso à violência contra o regime colonial; igualmente, é a partir do multipartidarismo que justificamos o recurso à violência dos 16 anos. Se essa violência foi absolutamente necessária é uma questão que pelo menos do ponto de vista filosófico continua em aberto. É naturalmente do interesse de quem promoveu as duas formas de violência querer nos fazer crer que elas foram absolutamente necessárias no sentido de que sem elas não teríamos tido nem a independência, nem o multipartidarismo. É uma forma de fatalismo típica do discurso político, o que não significa que todos nós sejamos obrigados a acreditar nisso.
O segundo problema é o da função da violência. Mais uma vez apoio-me em Arendt que diz de forma clara que a violência não promove nenhuma causa. Quando muito dramatiza preocupações e trá-las à atenção pública. Neste ponto intervêm várias questões difíceis do âmbito daquilo que os filósofos e teólogos chamam de teoria da guerra justa que nem vale à pena enumerar. Mas uma dessas questões é o direito que quem opta pela violência tem de obrigar outros a se juntarem a sua violência. Podemos levantar esta questão em relação ao movimento de libertação (incluindo a sua autoridade jurídica e moral de punir “reacionários” que me não parece nem evidente, nem linear) e também em relação à guerra dos 16 anos que envolveu o rapto e a brutalização de inocentes para fins que eram num primeiro momento particulares (A Renamo de certeza que não perguntou aos raptados se estavam de acordo ou não com o regime, muito menos devolveu à liberdade aqueles que disseram que estavam a favor). Outra questão foi a violência contra inocentes, isto é civis. O nosso país tem um armário enorme cheio de esqueletos lá metidos por gente que anda por aí a reclamar a paternidade da nossa liberdade quando na verdade se trata de criminosos de guerra que encaixam perfeitamente no perfil daqueles que são matéria do tribunal internacional de justiça. Eu acho muito ingênuo que algumas pessoas cortem a discussão deste tipo de assuntos com o argumento segundo o qual o exército governamental também teria cometido atrocidades. Isso não torna legítimo, nem justificável o que os outros fizeram ainda por cima de forma sistemática, como muitos observadores imparciais demonstraram.
O terceiro, e último, problema (por enquanto e ainda apoiando-me em Arendt) é o da relação entre violência e política. Arendt afirma, e eu concordo, que a violência é absolutamente incapaz de criar política. Este reparo é importante. Política, para Arendt, é a afirmação da vida, isto é da nossa capacidade de nos recriarmos através do trabalho que a constituição de regras de convivência exige. Ela era fã de Aristóteles e, por isso, acreditava na ideia de que o ser humano é um animal político, isto é alguém com capacidade para interiorizar as virtudes necessárias à vida em comunidade. Com a violência a política torna-se numa forma de gestão das necessidades das massas, algo que vimos muito bem acontecer no nosso país aquando da independência. Alcançada a independência pela violência a maior preocupação “política” foi a de satisfazer as necessidades do povo, não de reflectir sobre o que uma instituição justa devia ser. Abriu-se o caminho para o totalitarismo que tanto mal fez à nossa sociedade e que continua na cabeça de muita gente, incluindo gente que acredita ser contra a Frelimo. Vemos isso hoje na forte incapacidade da Renamo de primar pela acção política. Não é porque ela seja antidemocrática. Não é. Só que a ênfase que ela coloca numa transformação que só é possível pela via da violência não lhe dá nenhum incentivo para apostar na política como meio. Mas é isto que ela ouve dos analistas “independentes” do nosso país que concluem a partir da forma problemática como o partido no governo lida com as instituições do Estado que o princípio por detrás delas (isto é, o conjunto de princípios consagrados na constituição) são um mero expediente ao serviço de quem está no poder e que, por isso, para que as coisas mudem de verdade é necessário que alguém se imponha pela força. O discurso da “autonomia” de certas regiões é, num primeiro momento, inofensivo, mas quando as pessoas que acorrem aos comícios juntam as suas vozes e cantam “Save, Save, Save” estamos a conduzir o país para uma situação perigosa que se não resolve pela política, mas pela liderança “carismática” e “despótica” que não tem nenhum lugar para a política. Quem só olha para os números de quem se junta ao coro de vozes, e fica impressionado, mas não pensa para além disso, revela uma grande inépcia analítica que é reflexo de falta de coerência argumentativa.
Mas há alguma profundidade filosófica neste tipo de posicionamento. Afinal, foi Jean-Paul Sartre, o existencialista francês, que no seu prefácio ao livro de Frantz Fanon glorificou a violência anticolonial com recurso à mitologia grega. Com efeito, Sartre comparou essa violência à lança de Aquiles que cura as feridas que ela própria infligiu. A história pós-colonial africana mostrou subsequentemente que ele estava bem equivocado. Mas essa história não foi ainda lida, nem pensada, pelos nossos jovens “revolucionários”, muito menos reflectida pelos “macacos velhos” que ontem gritaram “viva a revolução” e hoje transformaram as redações de jornais independentes em redutos saudosistas duma fase da nossa história que é para esquecer em termos do respeito à dignidade humana. Mas é isto que poucos entendem (mesmo aqueles que concordam comigo, muito provavelmente porque pensam que estou a defender o seu lado na contenda política) quando condeno o recurso à violência contra o Estado. Muitos dizem, com razão, que o país precisa de instituições fortes que respeitem a constituição, mas esquecem que essas instituições não vão ficar fortes só porque as criamos todos os dias (pela violência ou pelo discurso que ignora os princípios que elas deviam defender e proteger), mas sim pelo recurso que nós fizermos a sua força normativa. Mas para entender isto era preciso ser capaz de argumentar a partir de algum princípio, e ser coerente. E com isso nem estou a dizer que eu faça isso. Só que articulando a minha reflexão com esse princípio abro espaço para que a discussão seja sobre isso.
E isso é importante para o sucesso da democracia se achamos o direito à razão importante.
1 comentário:
Muita filosofia enciclopédica no intuito de desvirtuar os fenômenos sociais. Mega reflexão esvaziada de sustentabilidade logica contrariando os pressupostos da metodologia cientifica. Contraria igualmente a tripartida ao clássica de Marx, tese, antítese e síntese. Este raciocínio esta minado e muito manipulado
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