quinta-feira, 4 de julho de 2019

O PROCESSO DE INSURGÊNCIA ARMADA EM CABO DELGADO

1 DESTAQUE RURAL Nº 64 21 de Junho de 2019 O PROCESSO DE INSURGÊNCIA ARMADA EM CABO DELGADO 1 João Feijó e Jerry Maquenzi 1. INTRODUÇÃO No Destaque Rural anterior foram abordados os processos de penetração da indústria extractiva na província de Cabo Delgado, fortemente caracterizada pela pobreza, gerando-se fenómenos de desigualdade e de tensão social. Neste texto pretende-se caracterizar a insurgência armada no Norte de Cabo Delgado, compreendendo-a numa perspectiva regional, a partir das realidades dos países da África Oriental. 1.1 Emergência de radicalismo violento na África Oriental Ao longo da África Oriental, vem crescendo o número de adeptos de versões extremistas do Islão. Assiste-se a uma difusão da ideologia salafista, orientada a partir de Estados do Golfo. Alimentado por negócios de petróleo e pelo desejo de propagar uma versão conservadora do Islão wahabita em todo o mundo islâmico, assiste-se a um aumento do financiamento de mesquitas (madrassas), instituições de ensino básico, secundário e superior, programas humanitários e sociais em vários países da África Oriental. Só em Zanzibar, estima-se que os financiamentos oriundos da Arábia Saudita atinjam um milhão de dólares US por ano, só para as instituições islâmicas (Ali-Koor, 2016: 4). Algumas actividades apoiadas por grupos islâmicos têm patrocinado tratamentos médicos e prestado auxílio em catástrofes, mas alguns grupos são também responsáveis pelo apoio a grupos radicais. Paralelamente, assiste-se a um rápido crescimento do número de jovens da África Oriental matriculados em universidades de países árabes (ver gráfico 3), sendo que, no regresso às zonas de origem, estes jovens transportam interpretações rígidas e redutoras do Islão. Durante a sua formação, os estudantes absorvem rígidas noções identitárias sobre o que é (e o que não é) islâmico e sobre quem é muçulmano (e quem não é), sendo incentivados a assumir activamente essas perspectivas (AliKoor, 2016: 5) 1Este Destaque Rural é o segundo de quatro textos a publicar na série Destaque Rural sob o tema geral do respectivo projecto de investigação Pobreza, desigualdades e conflitos no norte de Cabo Delgado. A Parte I foi publicada no jornal SAVANA da semana anterior (14/06/2019) e encontra-se disponível em https://omrmz.org/omrweb/publicacoes/dr-63/… 2 Gráfico 1 Estudantes da África Oriental matriculados nas universidades dos países do Golfo Pérsico Fonte: UNESCO (cf. Ali-Koor, 2016) A expansão da televisão árabe por satélite tem reforçado e transmitido essas interpretações a um público mais vasto, particularmente em relação ao vestuário, ao papel da mulher, entre outros aspectos. A atracção de tais ideias é evidente na expansão da popularidade e influência de clérigos extremistas. Neste contexto, a manutenção de um diálogo aberto sobre os preceitos do islão tem-se tornado cada vez menos comum, assistindo-se a uma crescente intolerância e polarização religiosa (Koor, 2016). O Quénia e a Somália têm constituído palco de actuação do grupo Al-Shabab, protagonista de episódios mediáticos, como vários dias de sequestro do centro comercial Westgate em Nairóbi, matando mais de 60 civis e provocando centenas de feridos, ou a invasão do campus da Universidade Garissa do Quénia, matando 147 estudantes. A vizinha Tanzânia também vem enfrentando fenómenos de radicalização islâmica. Diversos fenómenos de incitação à violência por parte de líderes religiosos, de constituição de redes de extremistas, de acções violentas em diversas regiões do país (em Arusha, Tanga, Pwani, Mtwara e Lindi), assim como ambições separatistas de cunho islâmico no arquipélago de Zanzibar, têm sido noticiados na imprensa internacional. Ainda que apresentem alguma relutância em revelar o nível de penetração dentro do país, desde 2008, as autoridades da Tanzânia associaram vários incidentes ao grupo radical Al-Shabab. Em Outubro de 2013, a polícia da região sudeste de Mtwara (que faz fronteira com Cabo Delgado) realizou detenções em grande escala de agentes do Al-Shabab, confiscando armas de fogo, facas e material de treino e propaganda (Counter Extremism Project, 2018). Segundo as autoridades, os suspeitos – todos cidadãos tanzanianos – haviam-se envolvido em exercícios de treino militar. No mesmo mês foi desmantelado outro campo de treino na região de Tanga, junto à fronteira com o Quénia, sendo detidos 69 suspeitos, libertando-se dezenas de recrutas de 4 a 13 anos de idade. A determinação do nível de penetração do Al-Shabab na Tanzânia não tem sido um processo fácil, não só devido às dificuldades de investigação por parte das autoridades sobre as redes domésticas e pontos de contacto do grupo, mas também devido à frequente precipitação em associar os suspeitos a este grupo radical, apesar da falta de evidências. Noutras ocasiões as autoridades manifestam relutância em conectar ataques violentos ao Al-Shabab, apesar da determinação das populações locais em associar os insurgentes ao grupo radical (Counte Extremism Project, 2018). A realidade é que a resposta das forças de segurança dos países da África Oriental a estes grupos de insurgentes tem sido violenta e conduzida, frequentemente, de forma arbitrária. A título de exemplo, a operação Usalama Watch, do governo do Quénia, resultou na prisão de 3 aproximadamente 4.000 pessoas, a maioria sem culpa formada. Circulam denúncias sobre esquadrões da morte, patrocinados pela polícia, destinados a eliminar os líderes radicais muçulmanos, compensando o fracasso dos processos judiciais (Ali-Koor, 2016: 6). A arbitrariedade e violência policial têm tido uma dupla consequência: por um lado, o desenvolvimento de sentimentos de injustiça, de desconfiança e revolta por parte de populações islâmicas em relação às instituições estatais, alimentando motivações de adesão a campanhas violentas (Ali-Koor, 2016: 2). Por outro lado, traduz-se na movimentação de líderes extremistas para Sul (Quénia, Tanzânia e, mais recentemente, para Moçambique), especialmente em zonas onde encontram um espaço socialmente fértil de implementação (Hanlon, cf. BBC, 09.06.2018). De facto, a carência socioeconómica e a sensação de desigualdades sociais na região tendem a tornar muitos muçulmanos receptivos a narrativas mais conservadoras e extremistas, assim como à construção de discursos assentes na alteridade (“nós” contra “eles”). As evidências demonstram que os níveis de desemprego entre os jovens das províncias costeiras do Quénia (predominantemente muçulmanas) são de 40 a 50 por cento mais elevadas do que a média nacional, e as taxas de frequência escolar básica e secundária tendem a ser mais baixas nas províncias muçulmanas, onde existem menos escolas e professores por estudante. Na Tanzânia observam-se padrões semelhantes. A taxa de desemprego entre jovens na ilha de Zanzibar (onde a maioria é muçulmana) representa quase o dobro da média nacional. Por outro lado, nas áreas costeiras (essencialmente muçulmanas), os direitos de propriedade são frequentemente mal definidos, dificultando as oportunidades económicas e abrindo o caminho a expropriações de terras por parte do Governo ou de grandes empresas (Ali-Koor, 2016: 5-6). Neste cenário, alimenta-se nestas regiões a crença que as oportunidades educativas e económicas são deliberadamente negadas aos muçulmanos. 1.2. Início da insurgência armada em Cabo Delgado Como em muitos outros países, em Moçambique existem diferentes concepções do islão, constituindo este assunto um ponto de tensão entre diferentes grupos, que chamam a si a autoridade dessa religião. A diversidade de concepções do islão em Moçambique foi resultante da mudança de contextos históricos na região (pré-coloniais, coloniais, e pós-coloniais), tendo o islão sido usado como forma de fortalecimento da autoridade e poder das elites locais, com quem as diferentes correntes do islão acabaram por ficar associadas. A partir da década de 1970 começou a emergir um novo grupo, composto por elementos graduados em universidades internacionais islâmicas, que rejeitaram tanto o Islão africano como as Ordens Sufis, considerando-os como “desvios” do “verdadeiro” Islão, promulgando diversas “inovações religiosas” (Bonate, 2007). Este grupo detém uma visão mais universalista e transnacional e recorre a meios modernos de formação e comunicação. No entanto, este grupo foi enfrentando uma considerável resistência do antigo establishment islâmico africano no Norte de Moçambique, não só porque o Islão naquela região detém uma longa tradição swahili profundamente enraizada, mas também pelo facto de líderes religiosos e agentes da islamização no Norte de Moçambique serem, historicamente, constituídos por africanos locais, que activamente foram participando nos debates muçulmanos regionais. Contudo, o surgimento de novas concepções do islão, num ambiente de competição política interna, deu origem a várias clivagens e a sub-clivagens, de onde emergiu o chamado grupo Ahlu Sunnah Wa-Jammá (apoiantes da tradição profética da congregação). Em 2015, não conseguindo conquistar a liderança religiosa, um grupo de jovens marginalizados, incluindo vendedores informais em Mocímboa da Praia (moçambicanos e, inclusivamente, tanzanianos), formaram pequenos grupos e começaram a organizar-se em torno de uma forma rudimentar de fundamentalismo islâmico, demonstrando sentimentos de insatisfação (Morier-Genoud, 24.02.2019). Estes grupos ficaram conhecidos por entrarem nas mesquitas locais usando sapatos 4 e fazendo-se transportar por facas, numa manifestação intencional de desrespeito para com o que designavam de Islão degenerado. Em finais da década passada estes jovens construíram as suas próprias mesquitas, separando-se dos restantes muçulmanos. Este grupo apresentava uma forte atitude anti-Estado, opondo-se ao sistema secular de ensino, assim como ao sistema de justiça, procurando recriar o seu próprio sistema social. Neste ambiente, as populações locais começaram a designar estes indivíduos de “Al-Shabab” (significando jovens em árabe local), ou apenas “Shababs”. Ao longo da última década, a tensão entre este grupo e a restante população foi-se intensificando, aumentando os níveis de violência: jovens radicais foram expulsos de determinadas zonas por outros muçulmanos ou pela população em geral e encerraram-se as respectivas mesquitas (Morier-Genoud, 24.02.2019). A partir de final de 2015, o grupo começou a incorporar células militares. Após sucessivos apelos de populações locais, nos anos de 2015 e de 2016, o Estado moçambicano interveio, destruindo mesquitas e detendo diversos indivíduos, inclusive jovens que realizavam treino militar na praia. Reagindo às detenções policiais, a 5 de Outubro de 2017 este grupo atacou um conjunto de instituições do Estado na vila de Mocímboa da Praia, nomeadamente o comando da Polícia da República de Moçambique e os Serviços Penitenciários. 1.3 Transformação dos ataques e dinâmicas actuais Apesar da inexistência de informação sistematizada começa a ser possível identificar alguns padrões e dinâmicas nos ataques. a) Dimensões e locais atacados Os ataques de 5 de Outubro representaram o início de uma escalada de violência que se prolonga até aos dias de hoje. Um ano e dois meses após as primeiras investidas, a Carta de Moçambique (Omar, 06.12.2018) analisou os relatos em arquivos na imprensa nacional e estrangeira, contabilizando 45 ataques, 194 mortos (entre oficiais das forças de defesa e segurança, civis e insurgentes), 13 mil deslocados, 214 arguidos e mais de 750 casas incendiadas e saqueadas. A peça chama a atenção para o facto de as estimativas se basearem em relatos na comunicação social, sendo que nem todos os ataques são noticiados, sobretudo os que acontecem em zonas mais remotas. Mais recentemente, as estimativas atingem as 1000 casas queimadas ou destruídas (Pirio, Pittelli e Adam, 2019). Inicialmente circunscritos ao distrito de Mocímboa da Praia, os ataques foram-se alastrando-se gradualmente por outros distritos da província, nomeadamente Mocímboa da Praia, Palma, Macomia, Quissanga, Ilha do Ibo, Meluco e Nangade, existindo relatos de alastramento para a província do Niassa (Omar, 06.12.2018). Os ataques prolongaram-se após o ciclone Kenneth, fazendo interromper ajuda humanitária em Macomia (Lusa, 04.05.2019). Em Junho de 2018, um mapa interactivo da ZitamarNews (mapa 6) demonstrava que a maior parte dos ataques estavam concentrados no litoral Norte da província - particularmente nas zonas de Nagulué e Ingoane (distrito de Macomia), Olumbe (distrito de Palma) e Mocímboa da Praia – maioritariamente islâmico, onde se concentram os grupos etnolinguísticos mwani e macua de Cabo Delgado. Os insurgentes revelam maior dificuldade de penetração no interior da província, nomeadamente nos distritos de Mueda, Nangade e Muidumbe, maioritariamente cristão, onde predomina o grupo etnolinguístico maconde. A observação no terreno permitiu confirmar inúmeras evidências de ataques (aldeias destruídas e abandonadas), com maior incidência nos distritos de Palma e de Mocímboa da Praia, assim como maior concentração das forças de defesa e de segurança nestes locais. Quer através dos testemunhos recolhidos no terreno, quer através da leitura de peças jornalísticas, é possível 5 constatar que, nos distritos do interior, os insurgentes enfrentaram maiores dificuldades de penetração. Figura 1 Mapeamento dos ataques no Norte de Cabo Delgado (Out/17 – Jun/18) Fonte: https://zitamar.com/aswj-attack-locations/ b) Quem é atacado? Os dados recolhidos, na imprensa e de informantes no terreno, permitem constatar que os alvos dos ataques são heterogéneos. Em primeiro lugar, os ataques começaram por privilegiar instituições do Estado – particularmente repartições administrativas, comandos da polícia e escolas, prolongando-se em episódios de sequestro e assassinato de professores e directores de estabelecimentos de ensino públicos (Achá, 26.03.2019). 6 Num segundo momento, as incursões generalizaram-se por povoações, quintas e veículos em movimento nas estradas, incendiando-se casas e assassinando-se populações. As evidências permitem constatar que as aldeias são atacadas indiscriminadamente, independentemente das crenças religiosas dos habitantes, assistindo-se à decapitação e assassinato de cristãos e muçulmanos. Em terceiro lugar, numa situação onde grande parte das populações abandonou campos agrícolas para refúgio nos centros urbanos, diminuindo desta forma a produção de culturas alimentares, constata-se que as incursões se estenderam para zonas produtivas ou para locais de armazenamento de produtos. A título de exemplo, no distrito de Palma, as zonas mais produtivas do distrito de Pundanhare, que garantem uma importante parte do abastecimento alimentar do distrito (SDAE, 2019), vêm-se transformando num alvo privilegiado de ataque por parte de indivíduos, também eles carentes de produtos alimentares. Após o ciclone Kenneth, os alvos direccionaram-se para as áreas beneficiadas de apoio humanitário. Peças jornalísticas (Omar, 06.05.2019) revelam que, após atearem fogo às tendas que albergavam as populações refugiadas, o foco dos insurgentes “famintos” orientava-se para os “produtos alimentares doados pelas organizações humanitárias e o governo” (Omar, 06.05.2019). O assassinato de populações é acompanhado pelo saque de valores económicos e bens alimentares, de forma que possam depois sustentar as actividades dos insurgentes2 . As vilas sedes apresentam-se guardadas pelas Forças de Defesa e de Segurança e não são atacadas, ao contrário das aldeias mais distantes (GS, 04.12.2018). Finalmente, dezasseis meses após os primeiros ataques, o poder económico internacional passou também a constituir um alvo dos insurgentes. Em Fevereiro de 2019 registaram-se dois ataques a caravanas da empresa Anadarko ou de empresas sub-contratadas, ao longo da estrada de Mocímboa da Praia para Afungi, tendo culminado em um morto e seis feridos (Redacção, 24.02.2019). A partir de então, a empresa multinacional deu instruções para que as deslocações dos seus colaboradores sejam realizadas por via aérea. De acordo com as populações entrevistadas no terreno, constata-se que as pessoas atacadas são culturalmente heterogéneas, não se distinguindo origem etnolinguística ou crença religiosa. c) Estratégias de ataque De acordo com as fontes no terreno, as estratégias de ataque são também variáveis, registandose diferentes situações: - Período variável dos ataques: de acordo com as testemunhas no terreno e fontes jornalísticas (Omar, 06.12.2018), os primeiros ataques às povoações eram inicialmente realizados ao anoitecer ou durante a noite, com o tempo, passaram a ser realizados a meio da manhã e ao fim da tarde; - Emboscada a viaturas: testemunhas oculares referiram que os insurgentes utilizam, por vezes, viaturas semi-colectivas de passageiros, solicitando paragem em locais planeados, onde insurgentes estão preparados para realização de ataques; 2 Um funcionário dos serviços distritais de educação revelou que um jovem levantou suspeitas na vila de Palma por ter adquirido crédito telefónico no valor de 20.000 meticais, alegadamente com o objectivo de revenda, mas que depois se recusou a revender quando solicitado. Encaminhado para o Comando da Polícia o jovem confessou que o crédito se destinava a insurgentes residentes no mato. Este episódio demonstra que os atacantes dispõem de valores monetários, oriundos (também) do saque às populações, para sustentar as suas actividades. 7 - Utilização de alto-falantes: com vista a atrair a população para realização de encontro, atacando-a depois brutalmente, como referido no povoado de Bangala 2, distrito de Macomia, em Março de 2019. d) Identidade dos insurgentes e motivações dos ataques Uma questão que se coloca prende-se com a identidade dos insurgentes e respectivas motivações, uma vez que não são conhecidas declarações públicas reivindicando os ataques. Os discursos iniciais referiam que parte dos insurgentes era oriunda da República da Tanzânia e da costa oriental africana, eventualmente repelidos do país vizinho. De acordo com a Reuters (21.10.2018), os atacantes assassinaram vários polícias e funcionários administrativos na província de Pwani, na Tanzânia, tendo alguns sido mortos, presos e outros fugiram. Os que escaparam atravessaram a fronteira para Moçambique, com o objectivo de estabelecer uma base em Cabo Delgado. Outras análises enfocam o papel de jovens moçambicanos que estudaram teologia na Somália e Arábia Saudita e que, regressados a Moçambique, trouxeram concepções radicais do islão e não encontraram enquadramento nas mesquitas locais. A realidade é que, um ano após os ataques, centenas de indivíduos foram detidos por suspeita de envolvimento, dos quais resultaram 189 pessoas acusadas, das quais 139 moçambicanos e 50 tanzanianos (Redacção, 02.10.2018).No processo de acusação consta que membros deste grupo foram recrutados em mesquitas locais por cidadãos tanzanianos, que lhes prometeram elevadas somas em dinheiro se conseguissem incitar cidadãos em Cabo Delgado a desobedecerem às instituições Estatais moçambicanas. As acusações incluem assassinato, uso de armas proibidas, pertença a associação criminosa e instigação de desobediência colectiva contra a ordem pública. Outros indivíduos foram acusados de instigação ou financiamento da violência, entre os quais um cidadão sul-africano, dois cidadãos ugandeses e diversos jornalistas. O facto de as evidências apresentadas nos processos de acusação serem, muitas vezes, contraditórias e pouco credíveis, sugere, não só a dificuldade de investigação das forças policiais, mas também a respectiva pressão para apresentação de resultados, com vista a amainar as críticas à sua inoperância. Entretanto, o Comandante-Geral da Polícia da República de Moçambique anunciou uma nova conclusão sobre a génese e objectivos dos grupos armados, anunciando que o grupo é financiado por chefes de garimpeiros ilegais, expulsos em Abril de 2017 de Namanhubir, numa operação protagonizada pelas Forças de Defesa e Segurança. O grupo estaria envolvido no tráfego de pedras preciosas para o exterior, sendo que, por vingança, recorreu aos rendimentos acumulados para financiamento de jovens insurgentes, transferindo os valores através de sistema mpesa (Redacção 27.05.2019: 1-2).Apesar do crescimento da lista de apreensões de indivíduos suspeitos de liderança dos ataques na província de Cabo Delgado, a realidade é que os ataques continuam. A inexistência de dados fidedignos acerca dos atacantes (grupo etnolinguístico, religião dominante, faixa etária, nível de escolaridade, actividades económicas, níveis de rendimento, trajectória de vida, etc.) dificulta a realização de uma caracterização socioeconómica deste grupo, até porque a identidade dos atacantes e respectivas motivações não são reivindicadas. De qualquer das formas, a partir de entrevistas informais realizadas no terreno, é frequentemente repetida a versão, segundo a qual, os verdadeiros Al-Shababs já foram mortos pelas forças governamentais. Segundo estas vozes, os actuais insurgentes atacam as populações devido à fome e falta de oportunidades (no sentido lato),assassinando as pessoas indiscriminadamente, sem distinção de crenças religiosas ou de grupos etnolinguísticos. As fontes jornalísticas (Abido, 21.12.2018) revelam que muitos dos insurgentes capturados pelas autoridades ou mortos nos confrontos em Mocímboa da Praia “traziam nos seus bolsos avultadas somas em dinheiro”;mas a origem dos valores não é clara, existindo especulações que 8 o valor é oriundo da venda de bens pessoais, de roubos ou de financiamento por parte de cabecilhas. A realidade é que um dos actos perpetuados pelos insurgentes quando atacam aldeias consiste em saquear valores monetários e outros bens (Abibo, 04.12.2018), demonstrativo de que o grupo está necessitado de dinheiro e bens alimentares. Neste cenário ganha consistência a hipótese, segundo a qual, (grande parte) dos ataques armados transformaram-se, também, em acções de banditismo, motivadas por carências materiais. e) Reacções das populações As reacções das populações são de medo e de incerteza, gerando-se movimentos de refugiados envolvendo milhares de indivíduos. No planalto de Mueda, sobretudo no distrito de Nangade, diversos indivíduos entrevistados referem a existência de milícias populares que foram ao encalço dos insurgentes, assim como de actos de vingança da população, que decapitou vários insurgentes, expondo os membros decapitados às respectivas famílias, posteriormente expulsas do local. Após um ataque na zona leste de Nangade, as estruturas locais solicitaram armas ao Comando da Polícia local, que foram distribuídas pelos líderes do povoado e posteriormente usadas na defesa contra os ataques. Os relatos falam também de práticas de magia negra, com o objectivo de impedir a penetração de insurgentes. 9 2. REFERÊNCIAS ABIDO, Saíde (21.12.2018) “Afinal quem financia os insurgentes em Cabo Delgado?” in Carta de Moçambique, disponível em https://cartamz.com/index.php/politica/item/488-afinal-quem-financia-osinsurgentes-em-cabo-delgado, acesso a 23.0.2019. ACHÁ, Hizidine, (26.03.2019) “Homens armados alargam ataques para zona centro de Cabo Delgado” in O país. Disponível em: http://opais.sapo.mz/homens-armados-alargam-ataques-para-zona-centro-de-cabodelgado. Consultado no dia 30.04.2019. ALI-KOOR, Abdisaid Musse (2016) “Islamist Extremism in East Africa” in Africa Security Brief, 32, pp. 1-8. BBC, 09.06.2018 BONATE, Liazzat (2007) “Roots of Diversity in Mozambican Islam” in Lusotopie, XIV (1), disponível em https://journals.openedition.org/lusotopie/1074#ftn89, acedido a 30.04.2019. GS (04.12.2018) “Palma: vila segura mas tensa” in Carta de Moçambique, disponível em https://cartamz.com/index.php/politica/item/291-palma-vila-segura-mas-tensa, acesso a 23.05.2019. 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