No fim-de-semana passado, as Forças Armadas Angolanas (FAA), com apoio da Polícia Nacional e outros órgãos, realizaram uma vasta operação de repatriamento coercivo na localidade de Cafunfo, província da Lunda-Norte. A operação, que incluiu rusgas de casa em casa iniciadas de madrugada, foi marcada pela violência gratuita contra cidadãos indefesos e pelo roubo inusitado de telemóveis nas residências visadas. A operação resultou na detenção de mais de 700 cidadãos, na sua maioria angolanos, tendo culminado com a expulsão de cerca de 50 indivíduos identificados como congoleses.
Segundo o activista Salvador Fragoso, um dos principais critérios usados nas buscas às residências e na detenção dos cidadãos baseava-se no sotaque dos visados ao falarem em língua portuguesa. Um oficial da Polícia Nacional envolvido na operação descreve o caos resultante desse critério: “As populações nos municípios de Caungula e Lubalo, muitas das quais radicadas em Cafunfo, mal falam português e a maioria não tem bilhete de identidade. Por isso, são alvo fácil das rusgas militares.”
Fernanda Cassessela, de 38 anos, natural de Caungula, conta que os militares a arrancaram da cama às 6h30 do dia 24 de Novembro, sem que lhe tivessem permitido sequer vestir a roupa: “Entraram oito soldados no meu quarto. Um bateu-me com uma mangueira na testa, com tanta violência, que até hoje tenho a testa inflamada.”
“O meu filho Macheque João, de três anos, dormia ao meu lado quando me atacaram no quarto. Dobrei-me com o pano com que me cobria e me levaram assim. Os militares empurraram-me com tal força para subir no camião Kamaz, que bati com o joelho no ferro e machuquei-me muito”, conta Fernanda Cassessela.
De acordo com a cidadã, os militares “roubaram-me o meu telemóvel e o carregador”.
Na esquadra da Polícia de Guarda Fronteira (PGF), em Cafunfo, para onde foi levada, a cidadã conta ter encontrado cerca de 700 pessoas que ficaram expostas a um pesadelo: “Encontrei lá senhoras nuas, muitas de biquíni, porque os militares não têm qualquer respeito, qualquer maneira. Era só recolher as pessoas de madrugada.”
“Até parece que esses [militares] caíram de uma árvore e não saíram do ventre de uma mulher”, vocifera uma analista familiarizada com o tratamento reservado às mulheres na referida operação.
“O meu irmão foi lá reclamar para que as pessoas não sejam tratadas como cães, como animais sem dono”, nota Fernanda Cassessela.
Esse seu irmão, Teófilo Mwanagina, de 56 anos, natural do município de Caungula (Lunda-Norte), foi surpreendido às 5h30 de sábado (24 de Novembro) por 15 soldados das FAA: “Os militares bateram à minha porta. Abri, pediram-me o bilhete de identidade e ordenaram-me que os acompanhasse à esquadra.” O cidadão conta que foi imediatamente espancado: “Os soldados atingiram-me com quatro coronhadas na cara, para além de pontapés e bofetadas. Amarraram-me com fita-cola e puseram-me no sítio dos congoleses para ser repatriado também.”
Segundo Teófilo Mwanagina, na esquadra encontravam-se o brigadeiro Ponta Negra [comandante da 75ª Brigada de Infantaria], comandantes policiais e de chefes do Serviço de Investigação Criminal (SIC), do Serviço de Migração e Estrangeiros (SME) e da Polícia de Guarda Fronteiras (PGF).
“O brigadeiro Ponta Negra viu-me e perguntou-me por que eu estava aleijado. Expliquei-lhe que tinha sido espancado pelos seus homens e que eu não era estrangeiro e não tinham encontrado qualquer estrangeiro em minha casa”, denuncia.
“Imediatamente, o brigadeiro devolveu-me o meu bilhete de identidade e mandou-me para a casa”, revela Teófilo Mwanagina, que mais tarde teve de intervir na mesma esquadra pela libertação da sua irmã Fernanda.
Menos sorte teve o seu vizinho Simão. Téofilo Mwanagina denuncia que este perdeu um dente com uma coronhada que lhe foi assestada na boca. “Os militares entravam, espancavam, amarravam e atiravam as pessoas para os camiões Kama. Não queriam saber quem é angolano, quem não é.”
E lamenta que os militares tenham levado o seu telefone e o do soba Bodué, que estava em sua casa a carregar através da energia de gerador. “Devolveram o meu e roubaram o telefone do soba”, denuncia.
Kimbanda da rainha repatriado
Rui Massanga, de 43 anos, consorte da Rainha Mwana Cafunfo, também experimentou a cela dos detidos para repatriamento.
O novelo envolve feitiçaria. “A rainha tinha sido enfeitiçada. Tivemos de chamar o kimbanda Fabrício, que lhe retirou o feitiço. Pegámos no feiticeiro e fomos entrega-lo à Polícia, mas a rainha ainda estava incomodada”, descreve Rui Massanga.
Então, a 25 de Novembro, os soldados detiveram Fabrício para o expulsar para o Congo, com a rainha ainda sob os cuidados do referido kimbandeiro. Rui Massanga atesta que Fabrício é filho da terra, de etnia tchokwé, e por essa razão acrescida dirigiu-se à esquadra para interceder pela sua libertação.
“Na esquadra, vi um brigadeiro, que me disseram que estava a dirigir a operação, e fui ter com ele para explicar o assunto. Fui acusado de não ter respeito e, antes de ter falado, levado à cela por ordem do comandante Tony, o chefe da esquadra policial de Cafunfo”, revela o consorte real.
Já na cela, indignado, Rui Massanga partiu o cadeado que o separava da liberdade e foi obrigado a pagar quatro mil kwanzas pelos danos causados. Queixa-se de ter sido maltratado pelos agentes policiais, na presença dos seus comandantes.
Para infortúnio da rainha, o kimbanda Fabrício foi expulso de Angola no mesmo dia, apesar da insistência de vários membros da comunidade local que atestam a sua naturalidade e nacionalidade angolanas.
Mulher e motorizada “estrangeiras”
Por ter defendido a esposa, Capenda João foi brutalmente assaltado com coronhadas de Kalashnikov (AK-47) pelos militares que a detiveram às 6h30, no Bairro Bala-Bala. A esposa, Aisha Naingi, tinha sido denunciada como estrangeira. O casal foi encaminhado para a esquadra da PGF, onde foi libertado no período da tarde. O casal denuncia ter ficado sem os seus telemóveis, “roubados pelos militares”.
Já Neves Mwatchissengue se limitou a defender a sua motorizada “estrangeira”, durante as buscas combinadas de forças militares e policiais. Denuncia ter sido brutalmente assaltado à coronhada, com pontapés e tabefes à mistura. Permaneceu detido por sete horas.
Tão científicos, os operacionais determinaram pelo olhar que a marca de vacina no ombro de Wambenu Júlia era do Congo Democrático e, logo, que esta era cidadã estrangeira. Com efeito, esbofetearam-na a bel-prazer e levaram-na para a esquadra, onde a detiveram durante algumas horas.
“Os tropas da 75ª Brigada de Infantaria envolvidos na operação tiveram as mãos sujas com a violência e com a corrupção. As forças destacadas na Área 77, em Cabundula, mudaram a farda e até este momento estão a lavar o cascalho deixado pelos garimpeiros de diamantes”, informa fonte policial.
A mesma fonte ilustra a discriminação no modus operandi das forças envolvidas na operação de repatriamento de estrangeiros sem estatuto legal: “O comprador de diamantes libanês, Carlos, está cá há cerca de três anos e tem bilhete de identidade angolano. Ninguém questiona como nem o incomoda, porque tem costas largas.”
O Maka Angola continuará a monitorar a grave situação de violência arbitrária e desordem das FAA em Cafunfo. Vários activistas denunciaram a este portal que, durante a operação, diversos soldados fumavam liamba à vontade diante das suas vítimas e transeuntes e ameaçavam disparar contra quem ousasse contrariar o seu comportamento.
Inúmeros cidadãos reportaram que, durante o referido fim-de-semana, totalmente às claras, foram vendidos centenas de telemóveis que os militares roubaram na referida operação, por valores entre os seis e os nove mil kwanzas por cada smartphone.
Este portal denuncia também o comportamento das autoridades locais que permitiram o uso da Escola Secundária de Cafunfo como centro de passagem inicial dos detidos no referido fim-de-semana. A escola é um local de ensino, onde devem ser educados os filhos de Angola e que não deve ser usado como campo de detenção, sejam quais forem as circunstâncias e a brevidade da operação.
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