Saturday, August 25, 2018

Ossufo Momade recebeu 
o Expresso na base militar 
da serra da Gorongosa, 
zona de difícil acesso

O general no seu reduto na serra

Ossufo_momade_gorongosa(Ossufo Momade recebeu 
o Expresso na base militar 
da serra da Gorongosa, 
zona de difícil acesso)
Renamo. Líder da oposição há três meses, Ossufo Momade recebeu o Expresso na base militar da Gorongosa. Fala de paz mas traça limites para as cedências que está disposto a fazer
Sílvia Fernandes, na Serra da Gorongosa (texto e fotos)
O dia 3 de maio de 2018 marcou para sempre a vida de Ossufo Momade. Segundo o líder da Resistência Nacional Moçambicana (Renamo, o principal partido da oposição de Moçambique), a partida inesperada de Afonso Dhlakama deixou milhões de moçambicanos órfãos. A dor que sentiu persiste, a avaliar pela voz embargada e olhos rasos de água com que relata esse dia, numa entrevista exclusiva ao Expresso: “Foi muito difícil, fomos todos apanhados de surpresa. Eu estava na minha casa, em Maputo, e recebi um telefonema. Havia uma indicação do Grupo de Contacto para transportar o nosso presidente, porque estava em estado crítico. Tive esperança de que o meu presidente fosse levado para um país vizinho, mas às 10h30 a mesma pessoa ligou-me a dizer que o meu presidente já não tinha vida. Para mim, não foi só como perder um pai, foi perder o pai que me ajudou a crescer. Desde os meus 17 anos foi ele que me criou, ensinou-me e fez de tudo por mim. Quando penso nele, o sentimento sincero que tenho é de que nos deixou órfãos”.
Nascido há 59 anos na Ilha de Moçambique e ex-Secretário-geral do partido, vivenciou os dias seguintes entre a profunda tristeza e a enorme responsabilidade de dirigir o partido, após a escolha unânime da Comissão Política. Aceitou com a  
Com a serenidade e o conhecimento trazidos pela experiência militar e política de mais de quatro décadas na RENAMO, aceitou o desafio mesmo sabendo que não se avizinhavam tempos fáceis. “Tinha que aceitar. Foi um voto de confiança do partido”.
PAI DE NOVE FILHOS
Abriu-se uma nova página na vida do general, que se assume como um “homem de família”, e gosta de preencher os tempos livres com passeios junto o mar e a leitura, com as obras de Mia Couto e Os Lusíadas na sua lista de preferências. Com seis filhos do actual casamento e três do anterior, Ossufo Momade, cumpria o seu terceiro mandato como deputado da Assembleia da República quando já líder da RENAMO decidiu regressar à Base Militar na Serra da Gorongosa, onde se encontra desde Maio.
Questionado sobre o porquê desta decisão, o “general-político” sublinha a importância de estar perto dos seus homens enquanto decorre em Maputo o processo de Integração e Desmobilização das forças residuais da RENAMO, sob mediação estrangeira. “Aqui estou com os meus homens e vou coordenando as negociações e falando com o Presidente Nyusi. Se tudo correr bem, em breve estaremos todos em nossas casas, com as nossas famílias”.  
A vida em bases militares começou muito cedo para este general, que ingressou na RENAMO em 1978, com apenas 17 anos. Na altura, ainda como Comandante nas FPLM (Forças Populares de Libertação de Moçambique), braço armado da FRELIMO, no poder, foi destacado para dirigir uma unidade em Manica, no centro do país, junto da fronteira com a então Rodésia, hoje Zimbabué. “Durante um ataque que a RENAMO fez contra a minha unidade, não ofereci resistência e entreguei-me, porque eu já tinha tomado essa decisão. Vendo o que se estava a passar com o país e sabendo do que se estava a passar através das notícias que nos chegavam através da rádio, tinha já uma noção da minha preferência, e então decidi entregar-me”.
O desejo de se envolver nos destinos do país surgiu logo aos 13 anos, após os Acordos de Lusaka, alimentava já o sonho de dar o seu contributo ao país. “Com um grupo de amigos fui para a 1ª base das FPLM, em Nampula. Ali treinávamos, entoávamos canções revolucionárias e acompanhávamos o que se estava a passar no país”, recorda. Até 1978, Ossufo Momade foi sendo destacado para diversos cargos na província de Nampula e foi durante esse tempo que começou a acompanhar a Rádio Voz África Livre. “Fechávamo-nos no quarto e juntamente com os meus colegas ouvíamos aquilo, que era já a Voz da RENAMO, e eu achava que aquilo fazia sentido, Por isso, em Dezembro de 1978 entreguei-me e fui muito bem recebido. Fui levado para a Rodésia, dado que na altura não existiam ainda bases fixas do movimento em Moçambique”. Assim que chegou à Rodésia, foi apresentado a Afonso Dhlakama, num encontro que acabou por marcar o início de uma longa e forte relação que viria a durar quatro décadas. “Logo no primeiro encontro recebeu-me como um irmão. Ele era mais velho e viu-me como um miúdo. Também ele tinha vindo das FPLM, da FRELIMO, e logo na altura disse-me: a partir de hoje você será o Chefe de Secção. Eu já vinha como Comandante e desde então começamos a trabalhar juntos”.
Após o funeral de Dlhakama, Momade e os dirigentes do partido foram logo chamados a enfrentar os desafios que os esperavam. “Um deles era a descentralização. Dlhakama já tinha deixado essa parte bem clara. Foi logo a minha primeira missão, muito espinhosa, mas eu tinha que salvaguardar o projecto do nosso presidente. A bancada da FRELIMO não queria esse acordo, aliás, não queria que este acordo tivesse pernas para andar. Então, eu falei com o Embaixador da Suíça, do Grupo de Contacto que medeia as negociações, solicitando um encontro com o Presidente Nyusi. Porque a descentralização já tinha sido tratada nos encontros entre ele e Dlhakama. Então o Embaixador fez chegar o meu pedido e eu fui ao encontro do Presidente Nyusi, ao seu gabinete de trabalho, em Maputo, explicar que queríamos dar continuidade ao que era já o seu compromisso. Foi um encontro secreto, e nem da nossa parte tiveram esse conhecimento. Aliás, até agora, poucas são as pessoas que têm conhecimento desse encontro. A conversa correu bem e, tendo ele dado instruções à bancada da FRELIMO, e a nova lei sobre a descentralização passou. Este encontro foi em Maio, e desde então temos -nos mantido em contacto”.
O processo continua, ultrapassada a condição que a RENAMO considerava como premissa, apesar daquilo que Ossufo Momade considera as “reservas iniciais da bancada da Frelimo”. “Na altura usaram o argumento de que a RENAMO estava armada. Nós consideramos isto uma manobra delatória, na medida em que eles sempre souberam que nós estávamos armados. Em todas as eleições que houve em Moçambique, nós sempre tivemos os nossos militares. Mas através dos contactos e após o encontro com o Presidente Nyusi no dia 11 de Julho, na Beira, assumimos a responsabilidade de avançar com um Memorando de Entendimento que pudesse ser assinado pelas partes. Esse Memorando foi assinado no dia 6 de Agosto e já cumprimos um dos passos definidos: a entrega da primeira lista. Nesta fase, a lista detém os nomes dos que já foram integrados em 1992 e cujas carreiras ficaram estagnadas. Queremos dignidade desses que já foram integrados e não tiveram qualquer progressão desde 1992. Essa parte será um reflexo da boa vontade, se existe ou não, da outra parte. Não vamos entregar outra lista sem que antes estejam garantidas as condições do que já lá estão”, refere Momade, clarificando assim uma das situações que mais debates tem levantado em Moçambique, sobre a entrega da lista de militares da RENAMO ainda aquartelados nas suas bases militares, aguardando serem desmobilizados ou integrados nas forças de segurança do Estado.
“Nós queremos a paz, e este passo já estava decidido pelo Presidente Dlhakama, e eu estou apenas a executar o seu projecto, com o voto de confiança da Comissão Política. Queremos que estes homens sejam integrados nas forças de defesa e segurança de Moçambique, os que já não têm capacidade física devem ser desmobilizados, com a sua inserção na vida social, de forma condigna e humanizada. Não como aconteceu em 1992, em que deram uma catana, um balde, uma enxada, um saco de cimento, uma manta, uma camisa, umas calças, um subsídio equivalente à sua patente e disseram: «agora vai para casa». Depois de 16 anos, uma pessoa pega nestes materiais e regressa à sua aldeia. Como é que a família o vai receber?”, questiona.
ANO DE AUTÁRQUICAS
Outra prioridade são as eleições autárquicas, marcadas para 10 de Outubro, menos de seis meses após o desaparecimento de Dlhakama. Para o novo líder do partido é uma corrida contra o tempo. Depois do boicote do partido às autárquicas de 2013, por falta de acordo sobre a lei eleitoral, a RENAMO regressa e promete agitar o tabuleiro político. Diz Momade: “Regressamos com muita força e moral. Temos cabeças de lista de peso, não só quadros do partido, mas também os que vieram da oposição para integrar e concorrer pela RENAMO”.
Sobre os nomes do MDM (Movimento Democrático de Moçambique), terceiro maior partido de Moçambique, que regressaram à RENAMO, e encabeçam as suas listas em algumas das principais cidades do país, Momade refere que “estamos a recuperar os nossos filhos, porque eles já foram nossos e estão agora a voltar. E não são só do MDM, também estão a regressar os que tinham saído para a FRELIMO, temos muitos casos, não tão conhecidos, e este era um sonho do nosso malogrado presidente”.
Lembra que “todos os partidos concorrem com uma única intenção: ganhar!” e acredita numa “vitória esmagadora”. “Estamos a acompanhar a inquietação da oposição, nomeadamente da FRELIMO que está a tentar criar alguns problemas com os nossos cabeças de lista e com isso estamos a ver que estamos a incomodar. Acho que nem a FRELIMO nem o MDM estavam à espera da força com que nos estamos a apresentar nestas eleições.”  
Dado que estas eleições podem representar um “barómetro” para as legislativas e presidenciais de 2019, Momade afirma que acompanha também com especial interesse a atenção da comunidade internacional neste escrutínio. “Nas eleições de 10 de Outubro, gostaríamos que a comunidade internacional viesse nos acompanhar com o espírito de democracia. Não pode existir uma democracia para África e outra para os países mais desenvolvidos. Gostaríamos de convidar os observadores internacionais a usarem os critérios que usam na Europa, por exemplo. Pedir que sejam sérios, transparentes e fiéis no relato daquilo que realmente vêem no terreno, sem terem medo de eventuais represálias. Façam o seu trabalho, de forma séria e não assinem relatórios que possam não corresponder ao que se passou no terreno”, pede o líder da RENAMO.
Apesar de episódios menos positivos que ocorreram em eleições anteriores, Momade diz-se confiante: “Na altura a FRELIMO aproveitava-se dos trabalhadores do Estado e pagos pelo governo para as mesas de voto. Todos esses hoje têm uma visão diferente, dispostos a dizer o que está a acontecer e a não criar obstáculos à oposição. Por isso, ganhámos recentemente a cidade de Nampula” (nas intercalares de março).  
Além disso, para Ossufo Momade, “o povo moçambicano quer uma mudança e essa mudança está na RENAMO. Já passámos por muitos episódios e o último foi a questão das dívidas ocultas, que todos os moçambicanos estão hoje a sentir no seu bolso. Estamos todos nós a pagar essa dívida. Até aqui ainda não apareceu um único responsável por essa dívida. Porquê?”, questiona, acrescentando que “o próprio regime tem vindo a encobrir para que não sejam revelados os responsáveis. Mas Moçambique não pode ser uma ilha. Já vimos o que aconteceu com o Brasil, o Lula hoje está a cumprir pena. Porque é que aqui esses responsáveis não podem cumprir? O moçambicano está à espera disso, que os responsáveis sejam responsabilizados. E a Procuradoria-geral da República não diz nada. O sistema está viciado. Por um lado, ouvimos cânticos de que estão a combater a corrupção, mas não passa disso mesmo, apenas música para os ouvidos. Porque na prática são corruptos e não é um corrupto que vai combater a corrupção. Podem até apanhar o peixe miúdo, mas os tubarões vão continuar a roubar como se nada fosse. Daí que as pessoas anseiam pela mudança”.
TERRORISMO A NORTE
De entre os desafios que o país enfrenta, os ataques no norte de Moçambique atribuídos a grupos radicais islâmicos não deixam de ser também um motivo de preocupação para o actual líder da RENAMO. “Estamos perante uma situação preocupante, mas em que o Estado moçambicano não está a dizer a verdade. Quando falo do Estado moçambicano, esse Estado tem os seus serviços. Os serviços tinham que dizer a verdade. Repare, num dia acompanhamos a PRM (Polícia da República de Moçambique) a dizer que a situação acabou, e no dia seguinte vimos que tinham sido devastadas mais umas 40 a 50 casas. Então o que nos estão a dizer não é real. E isto cria pânico no seio da população. Porque podemos dizer que são os Al-Shabab ou movimentos externos mas no fundo não sabemos ao certo, podem ser mesmo os moçambicanos que estão a reivindicar alguma coisa. Repare, quando foi no nosso tempo, a FRELIMO também culpava a Rodésia e a África do Sul. E éramos nós, moçambicanos. E quem estava longe alimentava-se dessa desinformação. É fácil dizer que é influência externa quando tudo pode não passar de descontentamento interno. E o que acontece é que as autoridades já não conseguem dialogar com a população local, porque no terreno quando há movimentações anómalas a população sabe. Se a polícia conseguisse falar com a população já saberia o que se está a passar. Por isso, digo: É da responsabilidade do Estado moçambicano, através dos seus serviços, investigar no terreno o que realmente se está a passar e arranjar uma solução”.
Sobre o seu papel, hoje interino, Momade sublinha que está prevista para breve uma reunião do Conselho Nacional da RENAMO. “O passo seguinte será a organização do Congresso, onde será eleito o presidente efectivo, mas cuja data ainda não existe porque a nossa preocupação neste momento é o cumprimento do Memorando e a realização das eleições autárquicas. Agora estamos concentrados nestas duas situações. Até lá, caberá ao actual Coordenador dirigir os destinos do partido e ajudá-lo a ultrapassar os desafios que temos pela frente, com o voto de confiança da Comissão Política e o apoio de todos os membros e simpatizantes da RENAMO. Para já o nosso desejo é ver Moçambique em paz, livre de guerras, e que o compromisso que eu e o Presidente Nyusi assumimos seja de facto concretizado, para que não haja mais conflitos e que as eleições sejam justas, transparentes e uma consolidação da democracia no país”, conclui.
EXPRESSO(Lisboa) – 25.08.2018

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