Ganhar três mil dólares por mês e não ter onde viver
É americana, trabalha a tempo inteiro, paga impostos, mas não tem mais do que o carro para viver. Aos 45 anos, os sonhos que tinha fugiram com o fim de um casamento de oito anos que a empurrou para as ruas. Sozinha e sem conhecer ninguém em São José, não consegue pagar uma renda no condado de Santa Clara, nos Estados Unidos, onde trabalha. María García é uma das histórias sobre os trabalhadores sem-abrigo de Silicon Valley que pode ler este sábado na Revista E
TEXTO E FOTO MARIA JOÃO BOURBON (EM SILICON VALLEY)
Entrar num qualquer parque de estacionamento do mundo é desembocar num desses espaços de passagem, vazios de história, identidade ou relação, que o etnólogo francês Marc Augé classificaria de “não-lugares”. Mas uma pequena igreja baptista em São José, na região norte-americana de Silicon Valley, transformou o vazio em esperança, uma suposta ausência numa casa temporária para quem não tem onde viver.
É nesse parque de estacionamento que está agora estacionada a casa de María García. A mesma casa onde organizou e compartimentou toda a sua vida (roupas sujas e lavadas, sapatos, produtos de higiene, objetos pessoais, todos separados em diferentes sacos para não correr o risco de os misturar) é também o meio de transporte que a leva a Cupertino, onde trabalha como rececionista no hospital Kaiser Permanente. O mesmo carro que, antes de aqui chegar, estacionava no parque do hospital durante a noite para dormir em segurança, sem ser intimada pela polícia numa região onde pernoitar no veículo não é permitido por lei.
É também este carro que a ajuda a manter um emprego que “paga bem” e que lhe rende cerca de três mil dólares líquidos (€2.595) ao final do mês — mas que não chegam para o nível de vida em Silicon Valley, onde na cidade de São José a renda média de um apartamento com apenas um quarto ronda os 2.666 dólares (€2.306) por mês. “E ainda há água e luz para pagar, o seguro e despesas do carro, impostos, alimentação… Esquece, não consigo.”
Quem a vê a sair do carro, bonita, arranjada e de roupa lavada, não adivinha as noites mal dormidas, o medo de ser descoberta, os planos para encontrar um abrigo onde dormir ou descobrir a melhor forma de conseguir lavar-se. A calma que transmite quando fala torna difícil imaginar os momentos de “desespero”, quando — antes de descobrir os balneários do ginásio para os funcionários do hospital — ficou duas semanas sem tomar banho, procurando fazê-lo à pressa no lavatório de um McDonald’s ou de outra cadeia de fast food. E o sorriso que traz na cara esconde a frustração das negas atrás de negas que levou quando telefonava para os diferentes abrigos disponibilizados pelo Estado, numa tentativa de encontrar um que não aquele que já tinha conseguido: “insalubre”, “perigoso” e com muitos “drogados” e “pessoas com problemas mentais”.
Aos 45 anos, nunca pensou que alguma vez estaria nesta situação: a ser empurrada para a rua não pelo desemprego, mas pelo fim de um casamento de oito anos. Mas esta reviravolta na sua vida não é um dado adquirido para aqueles com os quais convive diariamente. María faz parte desses sem-abrigo invisíveis, “envergonhados”, que tentam virar-se como podem e esconder a sua condição com receio de perder o que ainda lhes resta: o emprego.
Sozinha e sem conhecer ninguém em São José, consigo leva apenas a esperança de conseguir uma vaga dentro do mesmo hospital em Fresno, na Califórnia Central, onde sempre viveu (embora isso não deva acontecer tão cedo numa cidade onde o emprego “é mais escasso” e para onde as transferências podem demorar “um ano e meio”). Ou de ver o seu nome a aparecer no topo da lista de espera para obter uma habitação permanente em São José. E esta, segundo dizem, pode demorar três anos a obter.
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