Friday, August 3, 2018

Faz esta sexta-feira 50 anos que o então chefe do Governo, António de Oliveira Salazar, caiu de uma cadeira de lona no Forte de Santo António do Estoril

O doente do quarto nº 68

Faz esta sexta-feira 50 anos que o então chefe do Governo, António de Oliveira Salazar, caiu de uma cadeira de lona no Forte de Santo António do Estoril, sua residência de verão, que marcou o princípio do fim da queda do ditador e do regime. Cerca de um mês depois seria operado de urgência ao cérebro, sequela da queda. A anestesista foi Maria Cristina da Câmara, que depois acompanhou o ditador na recuperação parcial de um gravíssimo AVC. Nos Arquivos Expresso reproduzimos o artigo publicado na revista de 27 de novembro de 2009 no qual, pela primeira vez em 41 anos, a médica falava da cirurgia mais famosa em que colaborou

Agradecimento em São Bento, a 28 de abril de 1969 (dia do seu 80.º aniversário), em que, aos microfones da Emissora Nacional, Salazar agradece os cuidados de que foi alvo, como se continuasse à frente do Governo
Agradecimento em São Bento, a 28 de abril de 1969 (dia do seu 80.º aniversário), em que, aos microfones da Emissora Nacional, Salazar agradece os cuidados de que foi alvo, como se continuasse à frente do Governo
D.R.
Na manhã de 3 de agosto de 1968, António de Oliveira Salazar cai de uma cadeira de lona na sua residência de verão. A queda e os seus efeitos não são imediatamente avaliados, mas, um mês depois, um exame neurológico sumário aponta para uma quase inevitável intervenção cirúrgica. Num repente, Eduardo Coelho, médico pessoal do presidente do Conselho (como era designado então o chefe do Governo) desde os finais da Segunda Guerra Mundial, tem de tomar algumas das decisões mais importantes da sua carreira. Professor de cardiologia, cabe-lhe escolher o cirurgião. Não são muitos os neurocirurgiões em quem se possa confiar para deitar mãos ao cérebro do presidente do Conselho. A primeira escolha vai para Eduardo Moradas Ferreira.
Não é um homem da situação, é até suspeito de ter simpatias com o clandestino PCP, mas é tido por competente e goza de toda a confiança de Eduardo Coelho. Infelizmente, está de férias na Madeira e não há avião capaz de o trazer a tempo. Outras opções são Gama Imaginário e Almeida Lima: um está doente, o outro, homem já de idade, não opera. Coelho recorre a Vasconcelos Marques, diretor de serviços do Hospital dos Capuchos, que, alarmado com a observação neurológica, força o internamento imediato. Não no Hospital de Jesus, como pretendia a governanta, D. Maria, mas na Cruz Vermelha - considerado o hospital de ponta.
No meio do maior sigilo, Salazar dá entrada a 6 de setembro e fica internado no quarto N.º 68. A cirurgia decorre na madrugada do dia 7. No bloco operatório estão mais de dez médicos. Vasconcelos Marques é quem chefia a equipa. O primeiro ajudante é Álvaro de Ataíde, oposicionista, como Moradas Ferreira, destacado dirigente da ilegalizada maçonaria.
É o próprio Ataíde quem inicia a cirurgia e faz a incisão. A anestesista é Maria Cristina da Câmara, que se instala de armas e bagagens no hospital, para acompanhar a recuperação do doente. Toda a ala direita do sexto piso fica reservada por conta do hóspede do quarto N.º 68. A Vasconcelos Marques é adstrito o 69, o 70 é ocupado por uma brigada da PIDE, o 71 é destinado à anestesista.
No hall há um corrupio permanente de ilustres do regime, embaixadores e jornalistas, que todos os dias aguardam o boletim médico a dar conta do estado de saúde do mais velho ditador do mundo. A operação ao hematoma intracraniano produz efeitos imediatos. Dia a dia, Salazar recupera a olhos vistos. Eduardo Coelho dá-o mesmo como curado e, nessa medida, capaz de retomar o leme do país.
D.R.
No dia 16, porém, após o almoço, Salazar é acometido por um grave acidente vascular cerebral (AVC), devido a uma hemorragia interna no hemisfério cerebral direito. Mais do lado da morte do que da vida, mergulha num coma profundo. A própria respiração é assistida com um ventilador, levado dos hospitais civis. O quarto N.º 68 é transformado numa Unidade de Cuidados Intensivos. Cristina da Câmara não larga o seu doente e quase só vai a casa para almoçar, tomar duche e mudar de roupa.
Inquieto, o Presidente da República, Américo Tomás, reúne-se com os médicos - incluindo o prof. Houston Merritt, famoso neurocirurgião americano, que vem a Lisboa de propósito ver o doente. A unanimidade é completa: mesmo que sobreviva, ficará inválido.
Sem recuo, Tomás convoca para o dia 17 uma reunião de emergência do Conselho de Estado, para dar início formal à substituição do chefe do Governo. O anúncio ao país é feito pelo Presidente na noite de 26, através da rádio e da televisão: “Exonero o dr. António de Oliveira Salazar do cargo de presidente do Conselho de Ministros.” Para o seu lugar, nomeia Marcelo Caetano, naquela que é a decisão mais importante de Tomás nos 15 anos de Presidente. Caetano toma posse a 27 de setembro.
No quarto N.º 68, Salazar regista lentas melhorias.Sai do coma, larga o ventilador, mas cedo se percebe que tem lesões profundas e irreversíveis. O lado esquerdo está semiparalisado, a chamada memória recente quase nada conserva.
Em dezembro, esgotados todos os esforços de recuperação, nada mais há a fazer no plano hospitalar. Nessa altura, rompem-se as relações entre o médico assistente e o neurocirurgião.
A 19, Vasconcelos Marques, que dias antes dera alta a Salazar, profundamente agastado com Eduardo Coelho, dá por terminada a sua colaboração clínica. Todos os seus assistentes o acompanham - incluindo Cristina da Câmara. Salazar, porém, só abandona a Cruz Vermelha a 5 de fevereiro.
Regressa a São Bento como se nada tivesse mudado, no absoluto convencimento de que continua a ser o presidente do Conselho. Não mais deixará de viver nesta farsa e ilusão - até morrer, a 27 de julho de 1970.

“SALAZAR ERA UM DOENTE AFÁVEL E DÓCIL. TINHA MAIS AMIGAS DO QUE AMIGOS”

Maria Cristina da Câmara, anestesista de Salazar
A cirurgia a Salazar suscitou uma enorme controvérsia, que, a seguir ao 25 de Abril, extravasou dos meios médicos e dos bastidores do regime. A correção e prontidão do diagnóstico e a autoria da operação foram discutidas, com paixão, nos jornais, em livros e até em tribunal, num processo que opôs o chefe da equipa de neurocirurgia, Vasconcelos Marques, aos filhos de Eduardo Coelho, médico assistente de Salazar.
De uma discrição absoluta, a anestesista Maria Cristina da Câmara, que a tudo assistiu, remeteu-se a um silêncio que decidiu romper mais de 41 anos após a operação. Uma entrevista feita quase toda por escrito e que é um documento sobre o fim do salazarismo.
Quando e como soube que Salazar teria de ser operado?
Eu era a anestesista da equipa do dr. Vasconcelos Marques, diretor da neurocirurgia do Hospital dos Capuchos. Nessa tarde, ele participou-me que tinha de operar Salazar nessa mesma noite e pediu, como era natural, a minha colaboração.
Já tinha tido algum contacto médico (ou pessoal) com o presidente do Conselho?
Não.
Quem a convidou para integrar a equipa médica?
Eu fazia parte da equipa de Vasconcelos Marques, tendo sido ele, como disse, quem me 'convidou' - melhor, quem me participou. A equipa era composta por Álvaro de Ataíde, Lucas dos Santos, Jorge Manaças e Fernando Silva Santos, sendo eu a anestesista. Aliás, trabalhei como anestesista da equipa de Vasconcelos Marques durante 18 anos, até ele se reformar. Ele operava no Serviço de Neurocirurgia do Hospital dos Capuchos, de que era diretor. Foi ele que criou a Unidade de Traumatizados Crânio-Encefálicos de São José, no final dos anos 70, com a ajuda da Fundação Calouste Gulbenkian.
Por que razão foi escolhido o Hospital da Cruz Vermelha? Não teria sido preferível um dos grandes hospitais do Estado, mais bem equipados?
A Cruz Vermelha, nessa altura, era talvez o hospital mais bem apetrechado e onde Vasconcelos Marques operava habitualmente a sua clínica particular. Os hospitais do Estado estavam muito mal apetrechados e tinham poucas condições hoteleiras. Só muito depois tiveram um grande incremento em instalações e equipamentos.
Qual foi a sua reação, pessoal e profissional, ao convite para participar naquela cirurgia? Ficou surpreendida?
A minha reação foi de naturalidade. Não fiquei absolutamente nada surpreendida. Fazia parte de uma equipa e tinha de estar disponível 24 horas por dia. Vasconcelos Marques tinha muita confiança em mim. A neurocirurgia era sempre à tarde e podia ir até às tantas da noite. Habitualmente, Vasconcelos Marques passava visita de madrugada aos seus doentes do hospital. Seguia escrupulosamente o seu doente e dava o exemplo a toda a equipa. Foi ele quem criou a neurocirurgia moderna nos hospitais civis de Lisboa, tendo a noção que a neurorreanimação era essencial. Nessa época, ainda não havia Unidade de Cuidados Intensivos nem os meios de diagnóstico de hoje. A primeira Unidade de Cuidados Intensivos nos hospitais civis de Lisboa foi criada e chefiada por mim, em São José, quando Vasconcelos Marques era diretor de serviço, tendo-me dado todas as condições para que a unidade pudesse ser criada.
Antes da operação, foi contactada por algum responsável do regime? Ou pela governanta de Salazar, D. Maria de Jesus Freire?
Fui apenas contactada pelo chefe da equipa de neurocirurgia, dr. Vasconcelos Marques. Não vejo a que propósito iria ser contactada pela governanta de Salazar!
Esteve de alguma forma envolvida no processo de decisão sobre a operação?
Não. A decisão só cabe ao chefe de equipa. Mas claro que sabia para o que ia. Sabia que havia uma suspeita de hematoma, mas quem decide sempre é o chefe de equipa.
Como decorreu a operação?
Com toda a normalidade, tendo tido uma ótima colaboração do doente.
Franco Nogueira (MNE de Salazar) escreve na biografia de Salazar que houve três cirurgiões: Vasconcelos Marques, Álvaro de Ataíde e Lucas dos Santos. Mas quem fez realmente a cirurgia?
A cirurgia foi feita pelo chefe de equipa, Vasconcelos Marques. Álvaro de Ataíde e Lucas dos Santos eram seus ajudantes - nesse dia e sempre que Vasconcelos Marques operava. A incisão foi feita por Álvaro de Ataíde, mas é preciso que se entenda que, naquele caso, a incisão limitou-se ao couro cabeludo.
Os médicos Eduardo Coelho (à esquerda) e Vasconcelos Marques ladeiam o presidente Américo Tomás, de visita ao doente do quarto n.º 68
Os médicos Eduardo Coelho (à esquerda) e Vasconcelos Marques ladeiam o presidente Américo Tomás, de visita ao doente do quarto n.º 68
Eduardo Coelho, médico pessoal de Salazar, alega nas suas memórias que Vasconcelos Marques foi a quarta escolha, após Moradas Ferreira, Gama Imaginário e Almeida Lima.
Não sei qual foi a sequência da escolha de Eduardo Coelho nem vejo o interesse disso. Se Eduardo Coelho escolheu Vasconcelos Marques, tinha com certeza confiança nele, independentemente da sequência da escolha.
Eduardo Coelho escreveu ainda que a cirurgia foi executada não por Vasconcelos Marques mas por Álvaro de Ataíde.
A cirurgia foi executada por Vasconcelos Marques - eu estive lá! Álvaro de Ataíde foi o primeiro ajudante e Lucas dos Santos o segundo. É certo que foi Álvaro de Ataíde quem fez a incisão, mas isso não significa que não tenha sido Vasconcelos Marques a fazer a cirurgia.
É habitual haver mais que um anestesista?
Em casos muito complicados e/ou com pessoas muito importantes, é natural. Neste caso, foi o dr. João de Castro, que era também o meu marido.
Franco Nogueira diz que assistiram mais nove médicos. É normal uma cirurgia com tamanha 'assistência'? Para quê?
Tratando-se da pessoa que era, penso que é muito natural. Mas não me lembro de quem estava no bloco. A equipa de Vasconcelos Marques era constituída por ele, dois ajudantes, um instrumentista e dois anestesistas - o dr. João de Castro e eu. O prof. Eduardo Coelho também lá estava, assim como Bissaya Barreto. E havia outras pessoas, todas médicos, cujo nome já não me lembro.
O primeiro boletim médico, distribuído na manhã de 7 de setembro de 1968, diz que a operação decorreu “sob anestesia local”. Confirma?
A intervenção cirúrgica foi executada sob anestesia local, assistida. A anestesia local é feita pelo próprio cirurgião, tendo a anestesiologista uma função muito mais lata, nestes casos.
Que droga foi utilizada na anestesia?
Um anestésico local, injetado, subcutâneo. Era lidocaína, o anestésico local mais comum e que ainda hoje é muito utilizado. Após ser injetado, decorrem mais ou menos alguns minutos até que se possa fazer a incisão.
Nestes casos, não é dispensável a presença do anestesista?
Não, porque o anestesista tem outras funções, como manter a homeostasia. O anestesista não é só a pessoa que administra as drogas anestésicas; é, sobretudo, um intensivista durante toda a intervenção cirúrgica - isto é, evita, diagnostica e trata precocemente qualquer anomalia que surja.
Hoje, à luz da sua experiência e do desenvolvimento da medicina, a anestesia seria feita de forma muito diferente?
Seria exatamente da mesma maneira, com a presença de um anestesista, para manter o doente em condições fisiológicas normais. A anestesia local serve para não mascarar sintomas. Num doente daquela idade, o mais indicado é a anestesia local. E uma angiografia não era indicada para uma pessoa que estava mal e com aquela idade, não havendo outros meios modernos de diagnóstico, como, por exemplo, a TAC ou a ressonância magnética.
Franco Nogueira observa que a senhora passou a visitar Salazar “todos os dias, e às vezes mais de uma vez por dia”, sendo uma “dedicada e fervorosa assistente de Salazar”. Quer descrever como foram os contactos com Salazar durante esses dias? Notou progressos? De que assuntos falavam?
As minhas visitas ao doente dr. Salazar foram sempre profissionais. Salazar recuperou completamente da operação e mantinha uma conversa agradável e muito simpática até à altura do acidente vascular cerebral (AVC). Durante esses oito dias, esteve bem e ficou absolutamente normal. Era um homem muito delicado e cumpria todas as ordens médicas que lhe eram dadas. Foi um doente com um pós-operatório calmo. Reconhecia toda a gente, o que era um excelente sintoma. E, como se sabe, antes da operação fazia muitas confusões.
Era de alguma forma previsível o posterior acidente vascular cerebral, ocorrido a 16 de setembro? Estava presente? Ficou surpreendida? Poderia ter sido evitado?
É sempre possível ocorrer um acidente vascular cerebral num doente com um hematoma subdural crónico operado, sobretudo em pessoas idosas. Não é possível evitar um AVC nestas circunstâncias - os vasos cerebrais não têm a elasticidade dos de um homem novo. Eu não estava presente, mas fui imediatamente chamada. Enquanto eu não chegava, foram-lhe prestados todos os cuidados.
Marcelo Caetano só visitou Salazar nesse dia, 16 de setembro. Achou estranho? Foi comentada essa visita? Já conhecia Marcelo Caetano?
Não conhecia pessoalmente o prof. Marcelo Caetano e nunca ouvi comentários sobre essa visita. Eu era sobretudo uma profissional. Sempre gostei dos meus doentes, tenham sido o dr. Salazar ou outro qualquer. E creio que ele tinha uma certa simpatia por mim. Bem sei que só me mostrou uma faceta, mas era um doente simpático e afável. Reparei que tinha mais amigas do que amigos.
Nesse mesmo dia, o cardeal-patriarca, D. Gonçalves Cerejeira, deu a extrema-unção a Salazar. Assistiu?
Soube disso, mas não assisti - nem tinha de assistir. Estava lá quando o cardeal-patriarca chegou. Não o conhecia pessoalmente.
Vasconcelos Marques escreveu no semanário “O Jornal” que após o AVC a senhora teve um "papel importantíssimo" no trabalho de "neuro-reanimação" do doente.Em que consistia esse trabalho?
Após o AVC, fui a intensivista de Salazar, tendo sido eu quem o tratou, sob esse ponto de vista, no hospital. Intensivismo significa o que a palavra quase quer dizer: o doente está em coma e é necessário manter todas as suas funções vitais, com métodos adequados. Ou seja, manter o doente em vida, permitindo a recuperação da doença. Criei, na prática, uma Unidade de Cuidados Intensivos no quarto do dr. Salazar.
Que grau de lucidez Salazar manteve nesses dias? Realizou algum trabalho ligado à governação?
Salazar recuperou após o AVC e de ter estado em coma, tendo perdido a sua memória 'recente', mas conservando toda a sua memória 'passada'. Por isso, podia manter um diálogo sobre assuntos do passado, diálogo coerente, mas esquecia-se sempre de acontecimentos recentes. Além disso, ficou diminuído sob o ponto de vista motor. Que eu saiba, não realizou nenhum trabalho ligado à governação (duvido que fosse possível).
Que relação tinha ele com médicos e enfermeiras?
A sua relação era muito simpática e de uma correção impecável. Era um doente muito afável e dócil, no sentido em que obedecia às indicações médicas rigorosamente. Quando lhe fomos dizer que tinha de ser operado, respondeu de imediato: "Vamos a isso!"
Quem tinha acesso, como visita, ao quarto dele? E que pessoas o visitaram de forma mais assídua?
Eram muito poucas pessoas, já que as visitas estavam proibidas por decisão médica. Lembro-me do seu grande amigo dr. Bissaya Barreto, médico de Coimbra, que o visitava frequentemente.
Teve algum contacto, ou conversa, com o prof. Houston Merritt, enviado pelo Governo dos EUA para observar Salazar?
Quem teve contacto com o prof. Merritt foi o chefe de equipa, Vasconcelos Marques, e Eduardo Coelho. Eu não tive o menor contacto. Foi-me apresentado, nas não assisti às reuniões, nem tinha de assistir. Na sua especialidade de neurocirurgia, era um homem importante e respeitado.
Cristina da Câmara agradece a Américo Tomás o colar de comendadora. À esquerda, Vasconcelos Marques, também condecorado
Cristina da Câmara agradece a Américo Tomás o colar de comendadora. À esquerda, Vasconcelos Marques, também condecorado
Esteve na reunião do prof. Merritt com o Presidente Américo Tomás, no Palácio de Belém?
Não.
A 25 de setembro (véspera da nomeação de Marcelo Caetano para chefe do Governo), os médicos foram chamados a Belém para se pronunciarem sobre a possibilidade de Salazar continuar, ou não, a desempenhar o cargo de presidente do Conselho. Quais foram as opiniões emitidas?
Não estive presente. Não tinha de estar. Salazar tinha-se tornado num grande inválido. O Chefe de Estado fez muito bem. Foi uma decisão lógica.
Após a saída de coma, Eduardo Coelho diz que Salazar teve "seis acidentes graves" que "arriscaram" a sua vida. A senhora teve alguma intervenção?
Não sei bem a que acidentes graves Eduardo Coelho se refere. Lembro-me de ter havido alguns, muito graves, que foram sendo resolvidos com atitudes médicas apropriadas.
Após Salazar ter saído do hospital e regressado à sua residência, em São Bento, continuou a ter contactos com ele?
Em dezembro de 1968, quando Vasconcelos Marques decidiu retirar-se, eu participei a Eduardo Coelho que me retiraria também. Tinha as melhores relações com o prof. Eduardo Coelho, por quem tinha muita consideração e ele por mim. Na altura, disse-me que contava comigo em São Bento (o que já havia declarado previamente numa entrevista a um jornal). Agradeci-lhe, mas disse-lhe que a minha resolução era inabalável, pois fazia parte de uma equipa chefiada por Vasconcelos Marques. Não tive, portanto, mais nenhum contacto com Salazar, nem tive qualquer papel médico após a sua saída do hospital. Claro que já conhecia Eduardo Coelho, o médico pessoal de Salazar. Eduardo Coelho era um cardiologista brilhante e fora meu professor de cardiologia na Faculdade.
Alguma vez voltou a ver Salazar?
Nunca mais o vi. Não vinha a propósito. O contacto que tive com ele não foi político, foi profissional. Era um doente de quem eu gostava. Aliás, um médico gosta sempre dos seus doentes. Tem de haver uma empatia entre o doente e o médico, e vice-versa. Uma relação de simbiose muito especial.
Nem foi ao seu funeral?
Não, nem iria. Até estava em Macau. Foi quando cheguei a Macau que um funcionário da Alfândega me disse: "Salazar morreu hoje."
Eduardo Coelho disse que Vasconcelos Marques apresentou uma conta de honorários de três milhões de escudos (hoje 15 mil euros), enquanto ele e os seus colaboradores nada apresentaram. Quer comentar?
Se Eduardo Coelho não apresentou os seus honorários foi, com certeza, por motivos pessoais, que não me merecem qualquer comentário. Contudo, não percebo porque Vasconcelos Marques não apresentaria os seus honorários médicos! Não sei o quantitativo desses honorários, nem nunca quis saber.
Eduardo Coelho fala ainda numa reunião em Belém, em que a senhora esteve presente, aparentemente por causa de uma entrevista ao jornal "Primeiro de Janeiro". Nessa reunião, terá havido uma agitada troca de opiniões entre Vasconcelos Marques e Eduardo Coelho. Quer recordar?
Nunca estive em Belém com Eduardo Coelho ou com Vasconcelos Marques para qualquer reunião. Lembro-me, sim, de uma reunião, mas no hospital, com o Presidente da República, Vasconcelos Marques, Eduardo Coelho e eu própria, na qual Vasconcelos Marques participou ao Presidente que terminaria a sua assistência médica a Salazar, o que me levou a pedir também a minha demissão. Nunca estive em Belém, a não ser quando o Presidente da República decidiu condecorar Vasconcelos Marques, Álvaro de Ataíde e eu própria.
A 15 de julho de 1970, Salazar foi acometido de uma grave doença infecciosa, vindo a falecer a 27 de julho. Nesta fase, voltou a prestar-lhe alguns serviços médicos? Quais os últimos factos que conserva na sua memória?
Em 1970, Salazar estava em São Bento e, como já declarei, eu não tinha qualquer contacto com ele, nem fazia parte da sua equipa médica dessa altura.
Em 1990 decorreu um processo judicial entre Vasconcelos Marques e os filhos de Eduardo Coelho. Qual foi o seu envolvimento nessa disputa? E que comentários gostaria de fazer?
Vasconcelos Marques pôs os filhos de Eduardo Coelho em tribunal após estes terem dado uma entrevista a um jornal a dizerem que o cirurgião de Salazar não tinha sido ele. Vasconcelos Marques perguntou à sua equipa se se importava de testemunhar em tribunal. Tanto os seus ajudantes - Lucas dos Santos, Jorge Manaças, Fernando Silva Santos - como eu própria testemunhámos, já que tínhamos assistido, que a pessoa que operara Salazar tinha sido Vasconcelos Marques. Álvaro de Ataíde era um cirurgião distinto e sempre ajudara Vasconcelos Marques, como primeiro ajudante, o que se verificou também na operação a Salazar. Se Álvaro de Ataíde não tivesse falecido, penso que também seria sua testemunha. Mas não gostaria, por uma questão de elegância, de fazer qualquer outro comentário sobre o assunto.

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