No final do passado mês de Julho, no Tribunal Superior de Justiça de Londres, secção comercial, no âmbito do processo CL-2018-000269, foi decretado o fim do congelamento de 3 mil milhões de dólares que havia sido determinado contra José Filomeno dos Santos (Zenú), Jean-Claude Bastos de Morais e as suas empresas Quantum.
Esse congelamento tinha sido pedido pela actual administração do Fundo Soberano de Angola e apresentava como fundamento essencial que Zenú e Jean-Claude haviam entrado num conluio para se apropriarem dos 5 mil milhões de dólares do Fundo (ver aqui e aqui).
Há que dizê-lo claramente: esta decisão foi uma vitória muito expressiva de Zenú e Jean-Claude sobre João Lourenço, e demonstra que estas questões não se resolvem com uma abordagem meramente legal e atomista.
Ao analisarmos a decisão inglesa, perceberemos que é impossível combater a teia legal que foi urdida por Zenú e Jean-Claude, e legitimada por José Eduardo dos Santos, senão de forma política, global e determinada.
Uma nota lateral: há quem estranhe chamar-se a pessoa de João Lourenço para casos relacionados com outras entidades que não a Presidência, como aqui o Fundo Soberano. A verdade é que a Constituição angolana de 2010 instituiu um sistema presidencialista de tipo imperial, em que o presidente da República acumula a totalidade dos poderes executivos, sendo todos os outros órgãos seus meros auxiliares, funcionando através da delegação de poderes. Por isso, a linha de responsabilidade acaba sempre no presidente da República João Lourenço. Neste contexto, utilizaremos aqui indistintamente os termos Fundo Soberano, Governo de Angola e João Lourenço.
Resumo da decisão do tribunal
A decisão judicial foi tomada pelo juiz britânico Popplewell. Sir Andrew Popplewell tem 59 anos, é filho de outro juiz famoso e pai de duas actrizes, Anna e Lulu Popplewell. Representa, por isso, a essência do establishment britânico.
A decisão caracteriza-se pelo formalismo analítico típico da jurisprudência britânica. O seu conteúdo evidencia a necessidade de João Lourenço mudar de estratégia.
O juiz Popplewell inicia a sua decisão sumariando os elementos da contenda. Nesta acção, os autores são o Fundo Soberano da República de Angola (FSDEA) e sete das suas subsidiárias. Em 27 de Abril de 2018, o juiz Phillips emitira uma ordem de congelamento em todo o mundo (WFO – World Freezing Order) contra Zenú, Jean-Claude e as suas empresas Quantum, impedindo-os de alienarem ou disporem de activos até ao valor de 3 mil milhões de dólares.
Zenú e Jean-Claude vieram posteriormente ao processo pedir a anulação da ordem de congelamento, alegando vários motivos, nomeadamente a não-divulgação de material relevante por parte do Fundo e a inexistência de jurisdição dos tribunais ingleses para resolverem a contenda.
É sobre esse pedido de anulação que o juiz Popplewell decidiu, dando razão a Zenú e Jean-Claude, em virtude de o Fundo Soberano não ter divulgado os documentos adequados.
A acusação do Governo de Angola
A ordem de congelamento tinha sido concedida como resultado das alegações do Governo angolano segundo as quais existira uma conspiração entre Zenú, Jean-Claude e as suas empresas Quantum. O objecto essencial dessa conspiração fora colocar à disposição da Quantum cerca de 5 mil milhões de dólares para esta investir em nome do Fundo, sendo certo que o Grupo Quantum não tinha experiência nem qualificações para exercer essas funções.
Na realidade, afirmam o Governo e o Fundo, a maior parte dos 5 mil milhões não foi investida, tendo sido meramente usada pela Quantum para cobrar um elevado nível de honorários. Os únicos investimentos efectivados incidiram sobre negócios e projectos pertencentes a Jean-Claude.
A defesa de Zenú e Jean-Claude
Por sua vez, Zenú e Jean-Claude defendem-se dizendo que são vítimas das mudanças políticas em Angola e de um desejo por parte daqueles que agora estão no poder de colocar as mãos no dinheiro que o regime anterior, sensata e apropriadamente, havia investido numa base de longo prazo, para benefício do povo de Angola; e que as alegações são uma tentativa falsa de alcançar este objectivo político.
Temos de parar aqui e fazer um primeiro comentário. A posição de Zenú e de Jean-Claude é demolidora para João Lourenço. Acusam-no de querer apropriar-se do dinheiro do Fundo Soberano para benefício próprio e dizem que o caso é político. A defesa jurídica assenta em alegadas motivações políticas.
Este conteúdo da defesa vem dar razão à tese que há muito defendemos: João Lourenço tem de ver a questão do Fundo Soberano como uma questão de raiz política e estrutural, essencial para o regime que quer inaugurar, e não como um problema a e resolver por via de acções jurídicas mais ou menos esotéricas.
Como iremos perceber de seguida, o que está em causa não são apenas dois indivíduos (Zenú e Jean-Claude) que resolveram apropriar-se de milhares de milhões. Foi a estrutura político-legal de um Estado presidido por José Eduardo dos Santos que legitimou essa apropriação, e é esse o grande problema com que Lourenço se defronta.
A legalidade dos honorários!
O juiz Popplewell quantifica o total de honorários e comissões cobrados por Jean-Claude e as suas firmas em mais de 500 milhões de dólares. Mas também realça que tais honorários e comissões estavam de acordo com o contratos firmados entre as partes, e que nenhum dos contratos havia sido rescindido na data do congelamento.
Assim, nenhum dos réus está acusado de extrair somas às quais não tinha direito contratual. Existiam contratos validamente assinados que permitiram a Jean-Claude retirar mais de 500 milhões de dólares do Fundo. Este é o ponto que se liga ao comentário anterior. Houve uma estrutura governamental de José Eduardo dos Santos que cobriu as retiradas de dinheiro.
O problema da jurisdição
Por outro lado, a minuciosa elaboração dos contratos levou a que não se consiga estabelecer se a Inglaterra é clara ou distintamente o local competente para proceder ao julgamento das questões por eles levantadas. Por conseguinte, o tribunal não deve exercer jurisdição sobre qualquer dos réus em relação a qualquer uma das causas de pedir, excepto as governadas pela Convenção de Lugano. Na realidade, há apenas um pequeno número de causas de pedir em que a jurisdição está estabelecida.
O que está aqui em causa é estabelecer qual o tribunal adequado para julgar as questões surgidas entre o Fundo Soberano e as empresas de Jean-Claude. O que o tribunal conclui é que há pouca clareza sobre o tema. Várias hipóteses se podem colocar.
A conclusão é que o Estado angolano poderá ver-se na contingência de entrar num carrossel de tribunais pelo mundo fora até acertar naqueles que aceitam julgar os casos. Obviamente, decorrerão anos e anos até que qualquer processo legal se desenvolva com consistência.
As omissões do Governo de Angola
No entanto, é na não-divulgação de documentos importantes que a acção pende definitivamente a favor de Zenú e Jean-Claude, ficando bem patentes as fragilidades que enfatizámos no primeiro comentário. O que tivemos no Fundo Soberano não foi uma actuação individual, mas uma actuação caucionada politicamente pelo presidente José Eduardo dos Santos.
O juiz britânico afirma que o actual Fundo Soberano omitiu elementos essenciais ao tribunal presidido pelo juiz Phillips, que decretou o congelamento. E agora, tendo conhecimento desses elementos essenciais, só pode concluir que as alegações do actual Governo de Angola não são sustentáveis, por isso anulando a ordem de congelamento.
O papel de Armando Manuel
Um dos aspectos que o juiz realça é que o Governo de Angola não tinha informado o tribunal inglês de que a Quantum havia sido seleccionada como gestora de investimentos do Fundo Petrolífero (que posteriormente se tornou o FSDEA) em Julho de 2012, antes de Zenú ser o presidente da organização, ainda sob o mandato de Armando Manuel. Armando Manuel não é acusado de ser conspirador ou culpado de qualquer delito, enfatiza o juiz. E refere que este é um dos elementos centrais do caso: a escolha da Quantum. Afinal, quem escolheu a Quantum não foi Zenú, mas sim Armando Manuel, que não é arguido, réu ou acusado do que quer que seja. Por isso, considera o juiz Popplewell, cai pela base o argumento de que existiu uma conspiração entre Zenú e Bastos de Morais para nomear a Quantum como gestora do Fundo.
Obviamente, um conhecedor da realidade angolana sabe que Armando Manuel era um protegido de Zenú, que a sua nomeação posterior como ministro das Finanças de Angola foi realizada debaixo do beneplácito de Zenú, e que a sua queda de ministro também se deveu a um desentendimento com Zenú. Mas como provar isto num tribunal inglês? Impossível. Como provar que Angola estava governada por uma teia corrupta de interesses, assente numa ditadura de facto? Impossível.
Esta é a fragilidade que temos apontado à argumentação jurídica angolana em Londres. Sem atacar a cabeça, não se consegue fazer prova de nada.
Os outros fiscalizadores
Mais à frente, o juiz considera que a nomeação da Quantum (empresa de Jean-Claude Bastos de Morais) e as suas actividades na gestão de investimentos foram transparentes e regularmente reportadas para uma audiência dentro do FSDEA, para além de Zenú, o que não fora revelado no requerimento do Fundo Soberano.
O Conselho de Administração do FSDEA era, por decreto presidencial, supervisionado por dois outros órgãos, um Conselho Consultivo e um Conselho Fiscal. O Conselho Consultivo é por competência um órgão de consulta e auditoria do presidente, cujas responsabilidades incluem supervisionar o Conselho do FSDEA e aconselhar o presidente sobre a política do FSDEA e a estratégia de investimento. Inclui o ministro das Finanças, o ministro da Economia, o ministro do Planeamento e Desenvolvimento Territorial e o governador do Banco de Angola.
O juiz refere que tantas ilustres personalidades vigiariam o que Zenú e Jean-Claude andariam a fazer. O mesmo acontecendo ao Conselho Fiscal. A isto acresce que havia relatórios detalhados sobre o Portfólio Ilíquido da Deloitte, que também auditava a contas. Ora, então, conclui o juiz, Zenú e Bastos não estavam sozinhos.
O que nós temos de perguntar é onde estavam essas pessoas e porque não se pronunciaram na época. A resposta é sempre a mesma: vivia-se uma ditadura de facto, em que a obediência ao chefe (José Eduardo dos Santos) era a regra de ouro. Zenú era o filho do chefe-ditador. Podiam existir mil auditores e conselheiros, mas nenhum se atreveria a contestar o filho do chefe e o chefe-ditador. Consegue-se fazer prova deste contexto num tribunal inglês? Muito dificilmente.
É por estas e semelhantes razões que o juiz Popplewell considera que não há razão para serem congelados quaisquer bens. Segundo ele, Zenú e Jean-Claude pagaram e receberam o que estava contratualmente previsto. Nem sequer foi Zenú quem escolheu Jean-Claude e a Quantum. E ambos estavam sujeitos à fiscalização de variadas autoridades e da Deloitte.
Conclusões: verdade processual e verdade real
O juiz não se interroga se os contratos são leoninos e realizados em benefício de uma das partes. O juiz não se interroga sobre quem é o Dr. Manuel que assina o contrato entre o Fundo e a Quantum. O juiz não se interroga sobre a realidade do regime político de José Eduardo dos Santos. Na realidade, não tem de se interrogar. É um juiz de um tribunal comercial que tem de ler e interpretar contratos. Não é um juiz criminal e muito menos um político.
Aqui nasce um novo desafio para João Lourenço: como perceber esta derrota e transformá-la numa vitória?
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