DESTAQUE RURAL Nº 34
Abril de 2018
REFLEXÕES SOBRE A COMERCIALIZAÇÃO DA MANDIOCA PARA A
PRODUÇÃO DE CERVEJA
Momade Ibraimo1
1. INTRODUÇÃO
A mandioca foi trazida para Moçambique por volta do século XVIII, oriunda das regiões tropicais
da América Latina. No entanto, foi em meados do século XX, numa altura em que se expandia o
fomento de culturas não-alimentares e de produção obrigatória, que o cultivo de mandioca
adquiriu particular importância para a segurança alimentar das populações rurais. Produzindo em
solos menos férteis e exigindo poucos cuidados em termos de trabalho humano, o Estado colonial
promoveu a cultura da mandioca no país, incluindo nas zonas de produção obrigatória do algodão.
Desta forma, o Estado colonial pôde garantir a disponibilidade de mão-de-obra para o cultivo do
algodão, evitando, simultaneamente, riscos de fome resultantes da oscilação dos preços do
algodão, geradores de forte descontentamento social (Mate, 1991: 267-270)
2
. A mandioca
mantém, ainda hoje, um papel importante na dieta das populações, particularmente do meio rural.
Ao longo das últimas décadas, organizações não-governamentais e instituições públicas
empenharam-se no fomento de variedades melhoradas em inúmeros distritos do país, sublinhando
o respectivo valor nutritivo e importância para a segurança alimentar.
A partir de 2012, com a entrada de uma empresa denominada Dutch Agricultural Development
& Trading Company3 BV (DADTCO), que se dedica ao abastecimento de mandioca à indústria
de cerveja, este tubérculo passou a ser cultivado, não só para o consumo alimentar, mas também
para venda. A chegada da DADTCO significou para os pequenos agricultores um importante
estímulo para o aumento da produção de mandioca virada para o mercado. No entanto, a
comercialização de uma cultura alimentar, essencial na dieta de muitas famílias rurais, levantou
um conjunto de questões em torno das variedades produzidas, de forma que o produtor consiga
conciliar a produção para o seu consumo e para a comercialização. De facto, a entrada da
DADTCO no mercado coincide com o período de introdução de certas variedades melhoradas de
1 Licenciado em Economia e Monitor de Investigação do Observatório do Meio Rural.
2 De acordo com a mesma fonte, a mandioca apresentava as seguintes vantagens em relação ao sorgo: (1)
enquanto o sorgo precisa de cerca de 220 jornadas de trabalho agrícola anual, a mandioca precisa de menos
de 160; (2) o cultivo do sorgo exige diferentes operações culturais durante o ciclo de produção para a
obtenção de um bom rendimento, enquanto a mandioca exige menos operações culturais e é capaz de
reproduzir em solos pobres; e (3) o sorgo tem que ser colhido e colocado em celeiros, enquanto a mandioca
pode ser mantida no solo e colhida quando preciso.
3 Traduzido para português: Empresa Holandesa de Desenvolvimento e Comércio Agrícola.
mandioca, ideais para o fabrico de cerveja mas que no entanto são impróprias para o consumo em
fresco4
.
Num cenário em que as novas variedades melhoradas possibilitam a obtenção de maiores
rendimentos por planta, a substituição das variedades tradicionais tem um conjunto de riscos para
o camponês. Perante momentos de oscilação de preços ou de más épocas agrícolas, o produtor
poderá enfrentar diminuição nos rendimentos monetários e colocar em causa os seus hábitos
alimentares. O presente Destaque Rural procura descrever o processo de comercialização da
mandioca, apresentando evidências empíricas de agricultores de Ngomene Norte, no distrito de
Zavala, província de Inhambane.
2. A EMPRESA
A DADTCO foi criada em 2002 e está sediada na Holanda. Opera em três países africanos,
nomeadamente: Nigéria, Gana e, desde 2012, em Moçambique. Juntamente com seus parceiros,
cobre a cadeia de valor da mandioca a montante do processamento, desde a produção colectada
pelos pequenos agricultores, insumos (estacas), processamento pré-comercialização (descasque e
prensagem para retirar a água) e comercialização, e abastecimento da indústria de cerveja local.
Não possuindo campos próprios para
produção, a empresa adquire este tubérculo
aos pequenos produtores. Numa primeira
fase, instalou-se na província de Nampula,
adquirindo a produção de agricultores de
Ribaué e abrangendo algumas
comunidades de Mecubúri. Posteriormente,
expandiu-se para os distritos de Murrupula,
Mogovolas, Meconta, Monapo, Nacala-aVelha
e alguns distritos da Alta Zambézia.
Numa segunda fase, em 2013, a empresa
começou a operar na província de Inhambane, concretamente nos distritos de Morrumbene,
expandindo-se posteriormente para Massinga, Maxixe, Jangamo, Inharrime e Zavala. De acordo
com os registos da empresa, até meados de 2017, contava com 8.533 pequenos fornecedores
locais, dos quais, 49% (4.212 produtores) na província de Inhambane e os restantes em Nampula.
Embora tenha iniciado a sua operacionalização na província de Inhambane em 2013, somente
dois anos mais tarde, em 2015, começou com as operações de compra deste tubérculo aos
pequenos produtores do distrito de Zavala.
3. O PROCESSO DE COMERCIALIZAÇÃO
O processo de comercialização segue, normalmente, os seguintes passos:
1º - Estimativa da quantidade: o agricultor contacta o agente mobilizador da empresa,
estimando a quantidade a ser vendida. Deste modo, a empresa prepara-se para disponibilizar o
meio de transporte.
4 O consumo em fresco (cru) da mandioca é um hábito alimentar da população moçambicana,
principalmente no meio rural. Neste sentido, o facto das variedades melhoradas serem impróprias para o
consumo em fresco, estas variedades não são preferidas pelos camponeses. Para o seu consumo, estas
variedades devem ser sempre processadas (cozinhadas).
Figura 1: Instalações da DADTCO em Zavala
2º - Confirmação da colheita: o mobilizador confirma junto do agricultor a realização da colheita
e período de recolha. Devido à rápida deterioração da mandioca após a colheita, o produto não
deve permanecer mais de 48 horas sem ser processado.
3º - Transporte: a empresa envia o veículo adequado para o transporte da quantidade colhida,
carregando a produção até à unidade de comercialização, acompanhado pelo produtor. O
agricultor pode levar a produção até às instalações da empresa.
4º - Medição e pagamento: na presença do agricultor, faz-se o descasque e a prensagem para
obtenção da farinha que é levada para a pesagem em caixas. Após a pesagem, o agricultor recebe
um bilhete de registo da quantidade e, fazendo-se apresentar com o seu cartão de produtor, dirigese
à tesouraria para pagamento e registo da quantidade no seu cadastro.
Actualmente, o preço praticado pela DADTCO é de 2,00 MZM/kg ou de 2,50 MZM/kg5
, se o
agricultor levar o produto até as instalações da empresa. Este último caso é pouco usual, visto que
os pequenos agricultores (de Ngomene Norte) não possuem veículos e o aluguer de uma viatura,
é geralmente pouco compensatório.
A fábrica opera durante todo o ano,
sendo que existem períodos de pico
de comercialização. No caso do
distrito de Zavala, o período de
maior comercialização é entre
Junho e Outubro. Os dados
disponibilizados pela empresa
mostram uma tendência crescente
das quantidades comercializadas ao
longo dos anos na província de
Inhambane, interrompida em 2016
(gráfico 1), devido à seca verificada
neste período.
De acordo com o representante da empresa entrevistado, existem no país diversas variedades deste
tubérculo, divididas em dois grupos: (1) variedades tradicionais ou locais - que geralmente
atingem um rendimento entre 8 a 10 ton./hectare; e (2) variedades melhoradas – desenvolvidas
pelo Instituto de Investigação Agrária de Moçambique (IIAM), com um rendimento entre as 20 e
35 ton./hectare, ou seja, quatro vezes maior que as tradicionais6
.
Os pequenos agricultores de Zavala continuam a produzir variedades tradicionais. A principal
inquietação dos produtores está relacionada com o preço. De acordo com os mesmos, ainda que
o preço tenha sofrido um incremento, continua baixo. Por sua vez, a empresa alega que a falta de
observação de práticas mais eficientes de produção e a utilização de variedades tradicionais tem
um impacto negativo na produtividade, reflectindo-se nos baixos rendimentos monetários dos
5
Inicialmente, o preço praticado era de 1,00 MZM/kg. De acordo com o representante da empresa, os
preços actuais (mais elevados) começaram a ser praticados na província de Inhambane em Abril de 2016.
A empresa procurava, através do aumento do preço, incentivar a comercialização da mandioca nesta
província que, na altura, atravessava um período de estiagem. Na altura, a intenção da empresa era de
praticar este preço durante três meses (Abril, Maio, e Junho), mas o preço não mais se alterou.
6 Em cada grupo, existem variedades adequadas e não adequadas para o consumo humano em fresco.
1.505
3.929
5.821
2.165
2013 2014 2015 2016
Gráfico 1: Mandioca comercializada a
DADTCO na província de Inhambane (ton.)
produtores, pelo menos em relação às suas expectativas7
. A partir de pesquisa feita no distrito de
Zavala, constatou-se que os pequenos agricultores não estão satisfeitos com o processo de
comercialização, pelos seguintes motivos:
Processo de pesagem: a mandioca é descascada e colocada numa prensa para tirar a
água, traduzindo-se numa significativa diminuição do peso do produto. Na opinião dos
agricultores, a mandioca devia ser pesada antes de ser descascada.
Política de preços: ao deslocar-se até às explorações, a empresa reduz o preço de compra
em 20% (de 2,5 para 2,0 Meticais). Na perspectiva dos produtores, o preço é baixo.
4. IMPACTOS E RISCOS
Se consideramos os actuais preços praticados (2,50 MZM/kg – sendo o agricultor a transportar a
produção até a fábrica) e uma média de 3 toneladas/ano8 de produção comercializada por
produtor, poderíamos estimar que a DADTCO injecta directamente no orçamento das famílias
um valor anual médio de 7.500 Meticais/ano/agricultor, ou seja, 625 Meticais mensais – valores
muito abaixo da linha da pobreza (actualmente fixada pelo Banco Mundial em 1,90 USD/dia –
3.420 Meticais/mensais). No entanto, uma vez que, na realidade, normalmente a empresa adquire
a produção junto aos campos de colheita ao preço de 2,00 MZM/kg, o valor médio reduziria de
625 para 500 Meticais mensais por agricultor.
Os dados recolhidos junto de 60 agregados familiares (num universo de 155) em Ngomene Norte,
na vila de Quissico, no distrito de Zavala, confirmam este cenário pouco optimista (ainda que o
valor médio seja duas vezes superior à estimativa feita acima). Embora a maioria dos inquiridos
(76,7%; 46 dos 60 agregados familiares), tenha vendido mandioca à DADTCO em 2017, estes
não se mostraram satisfeitos com os rendimentos monetários obtidos. Os resultados revelam que
os produtores que venderam mandioca à DADTCO obtiveram rendimentos médios mensais em
torno dos 1.070 Meticais, o que representa menos de um terço da linha de pobreza. Na realidade,
estes rendimentos não se traduzem na melhoria significativa da vida dos produtores. Por exemplo,
verificámos que, do total das famílias que venderam mandioca à empresa, 71,7% (33 das 46
famílias) utiliza material local (capim, colmo ou palmeira) para cobertura das casas. Admitindo
um cenário em que os pequenos agricultores produzam variedades melhoradas de mandioca, o
que possibilitaria quadruplicar os rendimentos monetários, o rendimento médio mensal seria de
cerca de 4.280 Meticais, um valor ligeiramente acima do nível da pobreza. Contudo, considerando
que este panorama só seria possível com recurso a variedades não preferidas pelos camponeses.
Apesar de possibilitar a comercialização de uma das culturas agrícolas mais produzidas no país
e, logicamente, a obtenção de rendimentos monetários adicionais para milhares de pequenos
produtores, este agro-negócio constitui dois riscos principais para as famílias produtoras:
7Em parceria com a Organização Holandesa para o Desenvolvimento (SNV), e de forma a melhorar as
práticas de cultivo, a empresa tem desenvolvido um programa de capacitação dos agricultores, através de
um técnico de extensão agrária. No caso específico de Zavala, a SNV actua desde 2015. Dois anos mais
tarde, cerca de 1.500 produtores de mandioca foram organizados em 54 associações. Tendo o incremento
de renda familiar como principal objectivo do programa, o apoio técnico consiste na disseminação de novas
variedades e de conhecimento sobre as técnicas de plantio e tecnologias de produção.
8 Referido em Smart e Halon (2014).
O agricultor assume todos os riscos relacionados com as condições de produção e
comercialização (não obstante a tolerância desta cultura às condições edafoclimáticas);
Risco de ruptura de hábitos alimentares das famílias camponesas com a introdução de
variedades impróprias para o consumo em fresco.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Embora não apresentando evidências, a empresa garante que os agricultores (exemplificando com
alguns produtores do distrito de Inharrime) que tem optado pela produção das espécies
melhoradas possuem maior produtividade e, consequentemente, podem obter maiores
rendimentos monetários. Por outro lado, os pequenos produtores entrevistados alegam que a
produção de mandioca para a indústria de cerveja só é vantajosa para quem possui grandes
explorações, pois só os grandes produtores podem conciliar a produção para o consumo e para a
comercialização, mantendo os seus hábitos alimentares. Verifica-se no seio dos pequenos
produtores expectativas defraudadas neste agro-negócio. De facto, os impactos não são visíveis
na melhoria de condições de vida dos camponeses. O processo de pesagem e a política do preço
figuram como os aspectos mais inquietantes para os camponeses.
Este processo de comercialização acontece num contexto de fraca presença do Estado como
agente regulador. O pequeno agricultor sente-se incapaz de discutir certos procedimentos durante
a cadeia de valor. Urge a necessidade de um maior envolvimento por parte do Estado, quer através
de estruturais locais, quer de técnicos de extensão rural e dos Serviços Distritais de Actividades
Económicas. É, paralelamente, imprescindível que as políticas agrárias estejam articuladas com
as necessidades dos pequenos produtores, os principais actores neste sector. A participação destes
actores na elaboração de políticas agrárias constitui a base de uma agenda de desenvolvimento
sustentável da agricultura e das sociedades rurais. Notou-se, durante a pesquisa, assimetrias de
informação entre os produtores e a empresa. Por exemplo, no que tange às variedades melhoradas,
os camponeses têm a percepção de que são espécies totalmente impróprias para o consumo, quer
em fresco, quer depois de cozinhada, o que não corresponde à verdade.
Uma vez que a empresa possui uma base de dados de seus produtores, é importante haver uma
maior articulação no contexto da produção, quer para o consumo, quer para a comercialização,
não deixando o produtor abandonado e arcando com os riscos de produção. Uma das formas de
articular a produção virada para o mercado e para o consumo seria o fornecimento de tais
variedades ideais para o fabrico da cerveja, para permitir uma maior produtividade e maiores
rendimentos, como também o fornecimento de variedades adequadas para consumo (em fresco),
fortalecendo, deste modo, a relação dos produtores com a empresa.
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
SMART, Teresa e HANLON, Joseph (2014). Galinhas e cerveja: uma receita para o
crescimento. Maputo. Kapicua, Livros e Multimédia Lda.
MATE, Alexandre (1991). “A transformação dos sistemas alimentares em Moçambique: o caso
do distrito de Eráti (1930-1960) ” in JOSÉ, Alexandrino e MENESES, Maria (Edição) (1991)
Moçambique 16 anos de historiografia. Volume 1. Maputo: Imprensa Universitária, pp. 267-270.
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