A história esquecida de Rei Ghob, o violador da Carqueja
AVISO
Este artigo contém linguagem e descrições que podem ferir a sensibilidade dos leitores
Fez manchete após o desaparecimento de três jovens, mas não terão sido esses os únicos crimes que cometeu dentro do seu castelo. Agora foi julgado por 550 violações. A sentença é lida segunda-feira.
- O Chico da Carqueja que gostava de saltar à corda e jogar à macaca
- O misterioso incêndio da Carqueja
- As primeiras vítimas
- O círculo alarga-se
- O mundo sobrenatural de Francisco Leitão, rei dos gnomos
- “Na cabeça do agressor, eles consentiram”
- A corte de gnomos das Caldas da Rainha
- Um ano depois, o inquérito é reaberto
Eram 16h quando Patrícia, que morava na Bufarda, se meteu no carro para ir buscar a filha à paragem de autocarro da Serra d’El Rei, em Peniche. Enquanto esperava, encontrou por acaso o cunhado com um amigo, um jovem de 16 anos que costumava andar com ele. Patrícia, que conhecia bem as excentricidades de Francisco Leitão, tinha ouvido falar num vídeo que andaria a circular pela terra que mostrava dois adolescentes a terem relações sexuais. Os dois rapazes filmados costumavam frequentar a casa do cunhado, na Carqueja. Patrícia decidiu interrogar Francisco Leitão sobre o caso.
Francisco Leitão e o amigo — que esperavam dois jovens que também vinham das Caldas da Rainha, tal como a filha de Patrícia — trocaram um sorriso malicioso. “Já viste o vídeo?”, perguntaram-lhe. Ela respondeu que não, mas isso não era problema. Tinham-no ali no telemóvel e podiam mostrar-lho. Horrorizada com o que viu, e convencida de que tinha sido Francisco Leitão o autor da gravação das imagens, Patrícia decidiu ali mesmo que iria fazer queixa do cunhado à polícia. Tinha dois filhos menores, sobrinhos de Leitão, e temia que pudessem ser também filmados por ele.
À noite, Patrícia voltou à Lourinhã. Pegou no carro e deslocou-se até ao posto da GNR, mas, como o comandante não estava, teve de regressar na manhã seguinte. Tinha convencido o cunhado a passar o vídeo para o telemóvel da filha, que entretanto tinha chegado à paragem de autocarro, e mostrou-o às autoridades. Na queixa que apresentou naquele dia 10 de outubro de 2009 — um ano antes de Francisco Leitão ser detido pelo homicídio de Joana, Ivo e Tânia –, Patrícia disse não ter dúvidas de que tinha sido o cunhado o autor das filmagens. A casa da Carqueja estava repleta de câmaras e os adolescentes que apareciam no filme costumavam frequentar a moradia. E mais: enquanto via as imagens, naquela paragem de autocarro, Patrícia reparou que Francisco Leitão sorria.
Perante as suspeitas de Patrícia, o comandante do posto da GNR de Peniche decidiu visitar a escola onde os dois jovens estudavam, na Atouguia da Baleia. O presidente do conselho executivo estava a par da situação porque, dias antes, a mãe de uma aluna tinha-o informado de que o vídeo andava a circular entre os alunos. Ao presidente da escola, a mãe de Soraia contou também que os dois adolescentes costumavam andar na companhia de um adulto, Francisco Leitão, que era visto com regularidade a aliciar jovens no Centro Social da Bufarda, pagando-lhes bebidas e tabaco. Eram sempre rapazes de famílias problemáticas, com um historial complicado.
De uma maneira ou de outra, Francisco Leitão acabou por saber da queixa apresentada por Patrícia e decidiu vingar-se. Entrou na conta de Messenger (um serviço de mensagens online) do sobrinho e escreveu que este era gay e cobrava 20 euros por sexo oral. Quando descobriu o que o irmão tinha feito, Luís, marido de Patrícia, foi à Carqueja pedir satisfações. “Estás satisfeito com o que fizeste ao teu sobrinho?”, perguntou a Francisco Leitão. A resposta foi uma gargalhada. Irritado, Luís tentou bater no irmão, mas foi impedido pelo mesmo jovem que o tinha acompanhado naquela tarde de outubro à paragem de autocarro da Serra d’El Rei. Filipe viria, mais tarde, a ser identificado como uma das principais vítimas do Rei Ghob.
Como a brincadeira no Messenger do sobrinho não tinha sido suficiente, Francisco Leitão decidiu perseguir a sobrinha. A rapariga quase terá sido atropelada perto da escola, nas Caldas da Rainha, por um grupo de homens que Patrícia acreditava trabalharem para o cunhado. Temendo que algum mal acontecesse à filha, pediu às auxiliares da escola que começassem a levá-la à paragem do autocarro.
Todos os esforços levados a cabo por Patrícia acabariam por ser em vão. Apesar das investigações iniciais, a queixa que apresentou acabou por ser arquivada. Afinal de contas, os dois jovens que apareciam no vídeo admitiram perante a polícia que tudo tinha acontecido de sua livre e espontânea vontade, que tinha sido uma brincadeira. O que é que havia mais para investigar? Mas Patrícia sabia que não tinha sido bem assim e nunca entendeu como é que a polícia nunca fez nada para deter Francisco Leitão. Foi só mais tarde, depois do desaparecimento de Joana, Ivo e Tânia, que os inspetores da Polícia Judiciária (PJ) começaram a perceber que no interior do castelo da Carqueja havia muito mais do que estátuas de índios e de santos.
[Veja aqui a cronologia da história do rei dos gnomos]
Paralelamente à investigação do desaparecimento e homicídio desses três adolescentes — Joana, Ivo e Tânia –, a PJ foi reunindo dezenas de testemunhos de jovens que teriam sido violados por Ghob, o que permitiu a reabertura do inquérito. Alguns já tinham perdido o contacto com Leitão, mas outros ainda faziam parte da corte do rei dos gnomos. Filipe era um deles. Depois da detenção de Francisco Leitão, ganhou coragem para partilhar com a polícia tudo o que tinha passado às mãos de um homem que acreditava ser um amigo, um mago poderoso e até um irmão.
A conclusão do julgamento – após a reabertura do inquérito em meados de 2010 depois do desaparecimento de Joana, em março — está agendada para esta segunda-feira, 18 de setembro. É nessa data que Leitão saberá se será ou não condenado por quase 550 crimes de violação. Cometidos no espaço de apenas um ano contra 12 menores, entre os 14 e 17 anos, serão a derradeira prova de que Francisco Leitão, o autoproclamado rei dos gnomos, não era apenas um excêntrico que vivia num castelo construído supostamente em honra dos avós aristocratas que nunca teve. Era um criminoso perigoso, um violador que, se não fosse pelo desaparecimento dos três jovens, talvez ainda não tivesse sido descoberto.
O Chico da Carqueja que gostava de saltar à corda e jogar à macaca
Quando Francisco Leitão nasceu, a 28 de outubro de 1968, o castelo da Carqueja ainda não existia. A casa tinha apenas um andar e o chão era em terra batida. Tinha pertencido ao seus avós e depois passado para os seus pais, José e Maria Idalina, primos direitos com uma diferença de idades de quase dez anos. José tinha 28 anos quando o filho mais velho nasceu, era agricultor e trabalhava numa bomba de gasolina em Peniche. Nascera numa aldeia próxima, que ficava para os lados da Abelheira. Maria Idalina, nascida e criada na Carqueja, tinha apenas 19 anos. Era com ela que o filho Francisco — ou Chico, como era conhecido — tinha uma relação mais próxima, lembrando-a, ainda hoje, como uma pessoa carinhosa e atenciosa.
A infância foi igual à de tantas outras crianças daquele tempo. Nascido num pequeno meio rural, numa terra onde não existe quase nada à volta (hoje moram pouco mais de 40 pessoas na aldeia), passava os dias a brincar com os irmãos, mais novos do que ele, os amigos e vizinhos da rua. Gostava de saltar à corda, jogar às escondidas e à macaca. De futebol nunca gostou. No tempo da espiga, os miúdos da Carqueja costumavam juntar-se em grupos e ir até aos campos, onde faziam ramos. Ele era um deles.
Quando estava na escola primária, o pai teve um acidente com um trator, acabando por ficar sem uma perna. A partir daí, passou a ajudá-lo nas tarefas do dia-a-dia. Essa foi uma das razões pelas quais apenas frequentou a escola até ao 4.º ano, que completou aos 12 anos, já tarde. Começou a trabalhar com o pai no campo e também numa oficina de serralharia que tinha. Quando José abriu um negócio de sucata, tornou-se o seu braço direito. Até que, em 1991, se casou com Rosa e a sua vida tomou outro rumo.
Francisco Leitão conheceu Rosa quando tinha 20 anos. Ela era um ano mais nova e trabalhava numa fábrica de peixe congelado. Namoraram durante três anos até que Leitão a pediu em casamento. Rosa aceitou, o pai não. Rogério nunca esteve de acordo com o relacionamento da filha com aquele homem “estranho”, como contou ao Diário de Notícias, em 2010 — mas não teve outro remédio senão aparecer na igreja da Atouguia da Baleia, onde foi realizada a cerimónia.
Rosa, que era da Bufarda, mudou-se para casa do marido, na Carqueja. Ainda não havia estátuas de anjos nem câmaras de filmar à porta, apenas o mesmo primeiro andar de terra batida dos tempos dos avós de Francisco. O casamento parecia de sonho, mas Rosa acabou por ficar apenas um ano. Ao Diário de Notícias, Rogério contou que a filha sofria de maus tratos e que Francisco Leitão fazia dela “empregada para todo o serviço”. Tudo terminou quando a mulher encontrou o marido na cama com um homem. Rosa saiu de casa e pediu o divórcio. Nunca mais voltou à Carqueja.
Quem perguntava por Rosa a Francisco Leitão, ouvia outra história: os problemas lá em casa teriam começado depois de a mãe Maria Idalina ter sido diagnosticada com cancro e de Chico ter pedido à mulher para tomar conta dela e da irmã, Dina, menor de idade. Só que, apesar de ter aceitado cuidar da sogra, Rosa não teria sido a melhor das enfermeiras, levando a desentendimentos entre o casal. Depois da morte de Maria Idalina, em 1991, os problemas entre os dois ter-se-iam multiplicado, acabando na rutura definitiva um ano depois. Revoltada por ter sido abandonada pelo marido, Rosa teria espalhado pela pequena aldeia que Chico andava envolvido com um homem. Envergonhado, ele ter-se-ia fechado em casa.
“Os meus trisavós eram príncipes em Vigo, Espanha, e quando rebentou a Guerra Civil tiveram de abandonar o país. Os meus avós contaram-me que eu tinha sangue azul a correr nas veias. O gosto por fazer o castelo vem em homenagem aos meus avós.”
Pouco tempo depois da morte da mulher, José, pai de Francisco, mudou-se para Setúbal, onde acabou por casar uma segunda vez. Dina, a filha mais nova, foi com ele, só voltando à Carqueja anos depois, com os dois filhos pequenos. Os bens foram divididos pelos filhos, o que levou a algumas discussões entre Francisco e os irmãos José e Luís. Mas tudo acabou por se resolver e a casa passou para as mãos do filho mais velho, que decidiu transformá-la num castelo com gnomos a guardar a porta de entrada. Uma decisão que, até hoje, ninguém consegue compreender.
Numa entrevista que deu ao Diário de Notícias em julho de 2011, quando estava detido nas instalações da PJ em Lisboa, explicou que a casa era “um sonho de infância”. “Os meus trisavós eram príncipes em Vigo, Espanha, e quando rebentou a Guerra Civil tiveram de abandonar o país. Os meus avós contaram-me que eu tinha sangue azul a correr nas veias”, disse. A história está longe de ser verdadeira — os avós eram simples agricultores –, mas Leitão parecia acreditar nela. Para ele era o suficiente.
O misterioso incêndio da Carqueja
Quando tinha 23 anos, Francisco Leitão decidiu montar o seu próprio negócio de venda de ferro-velho, que funcionava nas traseiras da casa na Carqueja. Foi a isso que se dedicou depois da separação de Rosa, que dizia ter-lhe custado muito. Não se sabe se foi por isso que, mas a verdade é que só passados mais de dez anos se voltou a envolver com outra mulher. Chamava-se Gina e tinha menos 15 anos do que ele.
Gina conhecia Chico desde pequena. Os pais, José e Elvira, moravam mesmo em frente da casa dele. Mas só mais tarde, já os pais estavam emigrados em França, é que os dois se aproximaram. Começaram a namorar e, no início de 2004, Gina mudou-se para casa de Francisco, por sugestão do próprio. Foi durante o período em que lá viveu que Ghob começou a transformá-la num castelo e a falar no “Velho”, o espírito que mais tarde usaria para aterrorizar os jovens que frequentavam a moradia.
Ao início, tudo correu bem e Gina ficou rapidamente grávida. Só que, por volta dos quatro meses de gravidez, as coisas começaram a mudar. Francisco Leitão, que já teria um relacionamento com Ivo — que teria conhecido por volta de 2001 e que viria a desaparecer sem deixar rasto em 2008 –, começou a andar com o jovem para todo o lado, e raramente estava em casa. Gina começou a desconfiar que os dois estariam envolvidos emocionalmente. A confirmação chegou pouco tempo depois, quando Leitão lhe mostrou um vídeo de ambos a terem relações sexuais.
À medida que o tempo foi passando, o seu comportamento foi-se tornando cada vez mais bizarro. Tornou-se violento e arranjava discussões por tudo e por nada. Mudou-se para outro quarto e deixou de partilhar a cama com Gina, grávida de cinco meses. A situação entre os dois foi piorando até que, depois do nascimento da filha, a postura de Leitão voltou novamente a mudar. Tornou-se num pai atento, um companheiro dedicado. Mas por pouco tempo. As situações de violência repetiram-se e Leitão chegou mesmo a agarrar a mulher pelo pescoço com as duas mãos e a ameaçá-la, conforme consta no processo.
Apesar dos maus tratos, Gina só decidiu abandonar o companheiro em abril de 2005, depois de Francisco ter alegadamente pegado fogo à própria casa com ela e a filha lá dentro. Tal como tinha acontecido com Rosa, a versão de Leitão foi outra: a moradia tinha sido assaltada por um tal Paulo, com quem tinha tido uns problemas. Ghob ter-lhe-ia vendido um carro que estaria avariado e este, descontente, tê-lo-ia ameaçado com fogo posto e o rapto e violação da filha. Os ladrões teriam entrado durante a noite, arrombando a porta com um grande vaso que estava à entrada. Dando conta dos intrusos, Francisco Leitão terá subido ao andar de cima e dado alguns tiros para o ar com uma caçadeira para os assustar. Quando a GNR apareceu, a única coisa que viu foi Ghob de arma na mão. Como não tinha licença de porte de arma, acabou na esquadra. Terá sido nessa altura que os assaltantes terão regressado e pegado fogo à casa. Gina e Eva Maria conseguiram fugir, mas por pouco. Foi Ghob que as levou para a casa dos pais, do outro lado da rua. O rés-do-chão, onde estavam a dormir, ardeu por completo. Nem os carros que Francisco Leitão tinha nas traseiras sobreviveu.
Dos assaltantes — e do tal Paulo — nunca se descobriu nada, mas Francisco Leitão acabou com um processo por porte ilegal de arma. Só foi julgado anos depois, em 2011, quando estava a aguardar julgamento pelo desaparecimento de Joana, Ivo e Tânia. Na última sessão, disse que estava arrependido de tudo e que naquele tempo “andava sob pressão”. “Andavam a ameaçar a minha família”, disse, citado pelo Correio da Manhã, repetindo a história de que tudo não passaria de uma vingança. De pouco lhe valeu — o Tribunal da Lourinhã condenou-o ao pagamento de uma multa no valor de 2.880 euros.
Quanto a Gina, um ano depois de ter ido viver para casa de Leitão decidiu finalmente deixá-lo. Fez as malas e mudou-se para França com a filha. Apesar do relato de Francisco Leitão, sempre terá sabido que tinha sido ele a atear o fogo que quase lhe tirou a vida. Francisco, esse, sempre contou que o motivo da separação foram os ciúmes que a mulher tinha da filha do padrinho de Dina, Susana, então menor de idade. Apesar de esta não ter sido a verdadeira razão que levou ao afastamento da companheira, Ghob estaria também de facto envolvido com a jovem — Gina chegou a ver os dois a trancarem-se num quarto, o que levou a uma grande discussão entre os três. Leitão, irritado com as perguntas da mulher, ameaçou que a atropelaria com a retroescavadora que tinha no quintal. Gina estava então grávida de sete meses.
Depois do assalto, o negócio da sucata terá começado a ir por água abaixo (por altura da sua detenção em 2011, Ghob dedicar-se-ia apenas à venda de carros). Desiludido, Francisco Leitão viu-se obrigado a dispensar quase todos os que trabalhavam para si e a ficar apenas com Ivo, que entretanto se tinha tornado em muito mais do que o seu braço direito.
Depois de se separar de Gina, as coisas entre os dois tornaram-se mais sérias. Todos sabiam que eles namoravam e Leitão nunca fez nenhum esforço para esconder isso. Mas aos pais, Ivo negava tudo. Terá sido também depois disso que o Rei Ghob começou a fazer-se acompanhar por outros adolescentes residentes nas localidades vizinhas, acabando por estender a sua malha de relacionamentos até às Caldas da Rainha.
As primeiras vítimas
Não se sabe ao certo quando é que a predisposição de Francisco Leitão para este tipo de crime começou. O relacionamento com Ivo, por exemplo, remonta a 2001. Desconhece-se quando terão começado os maus-tratos, mas sabe-se que o jovem foi vítima das maiores atrocidades, algumas delas relatadas por Mara – uma das mulheres com quem se relacionou — em tribunal. Agressões, físicas e psicológicas, tortura e violação — Ivo terá sido alvo de tudo isso. Mas existiam outras queixas relacionadas com abuso de menores na zona de Peniche, o que levou a polícia a desconfiar que Ghob praticava este tipo de crimes há pelo menos uma década. Mas, na realidade, tudo poderá ter tido início muito antes.
A par de Ivo, um dos casos mais antigos que se conhece é o de Miguel. Miguel era sobrinho de Mara, que conhecia Francisco Leitão por causa da irmã, que tinha sido namorada dele. Terminado o namoro, Mara e Leitão permaneceram amigos, chegando mesmo a ter um relacionamento esporádico de caráter sexual em 2006, depois do fim do seu casamento e numa altura em que vivia temporariamente na casa da Carqueja com a filha. Miguel também chegou a viver durante um tempo no castelo de Ghob. Foi nessa altura que os laços entre o adolescente e o homem de quase 40 anos se estreitaram. Começaram a sair juntos, a ir a bares na zona da Lourinhã, trocavam mensagens e telefonavam um ao outro. Até que, já perto do final de 2006, o discurso de Leitão começou a mudar.
Miguel andava com falta de dinheiro e a tia sugeriu que falasse com Francisco Leitão. O sucateiro era conhecido por ajudar todos aqueles que precisassem e Miguel começava a ficar desesperado. Apercebendo-se disso, Leitão aproveitou a oportunidade para o introduzir ao mundo dos espíritos. Disse-lhe que tudo se devia a um mal muito grande, que estava relacionado com o seu avô, que tinha morrido em 2002 e não tinha conseguido encontrar descanso no Além. Miguel, que tinha uma relação muito próxima com o avô e já tinha tido provas dos “poderes” do Rei Ghob, acreditou em tudo.
Durante uma viagem de carro, Leitão explicou a Miguel como é que podia livrar-se da energia negativa. Encarnando o espírito do “Paizinho” (que, mais tarde, viria a transformar-se no “Velho”), disse ao jovem de 18 anos que, para que o seu avô pudesse ter descanso, os dois teriam de ter relações sexuais. Durante uma semana, Francisco Leitão não falou de outra coisa, tentando convencer Miguel a passar a noite com ele. Até que, depois de uma ida a Fátima, Francisco Leitão conseguiu fazer com que o adolescente cedesse, dizendo-lhe que o “tratamento” seria mais eficaz naquele dia, porque tinham acabado de visitar o santuário.
Tudo aconteceu perto de um descampado, na zona da Lourinhã, junto a uma árvore, depois de Ghob se fazer passar pelo avô do jovem. Miguel não podia contar nada a ninguém, mas contou. Pouco tempo depois, perturbado com tudo o que lhe tinha acontecido, acabou por desabafar com a mãe, que confrontou Leitão. Os telefonemas cessaram e as mensagens também. O contacto entre os dois só foi retomado em finais de 2008, quando Miguel arranjou emprego no Arena Shopping, nas Caldas da Rainha, um dos lugares prediletos de Francisco Leitão. A amizade manteve-se até à prisão do Rei Ghob, em 2010. Até essa data, Miguel voltou a ser violado várias vezes.
Durante a investigação, chegou às mãos da polícia um outro caso, anterior ao de Miguel. Em 2002, Manuel, que vivia na Madeira com a família adotiva, decidiu viajar até Peniche para encontrar a mãe biológica, que vivia em Ribafria, uma pequena aldeia da freguesia da Atouguia da Baleia. Foi através dela que conheceu Francisco Leitão, que lhe ofereceu trabalho no ferro-velho. A primeira violação aconteceu pouco tempo depois. Culpa do “Velho”. Manuel tinha 14 anos.
Além das violações consecutivas, o jovem foi sujeito a todo o tipo de violência e até tortura. Um dos episódios mais arrepiantes aconteceu na presença de João Jacinto, um amigo de Leitão (e um dos poucos adultos que frequentavam a sua casa) conhecido na zona como “João da Roulotte”, porque tinha uma roulotte de venda de comida junto ao mercado da Lourinhã. Certo dia, enquanto estava no andar de cima da casa da Carqueja a ver televisão, Manuel foi chamado ao pátio traseiro onde lhe foi dito que tinha de comer um rato morto que Ghob tinha na mão. O objetivo era claro — provar que Francisco Leitão tinha total poder sobre ele.
O jovem negou-se a fazê-lo, mas Leitão insistiu. João agarrou-o por trás e com uma das mãos abriu-lhe a boca. Leitão tentou fazer com que engolisse o animal morto, mas Manuel conseguiu fugir. Escondeu-se atrás de uns carros velhos, mas os dois homens acabaram por o encontrar. Furiosos por Manuel não ter feito o que diziam, espancaram-no com um bastão de madeira. A violência foi tal que o jovem acabou por perder os sentidos. Quando acordou no dia seguinte, na casa da mãe, sem saber muito bem o que lhe tinha acontecido, tinha a cara toda ensanguentada e um olho inchado. O corpo estava cheio de nódoas negras e cortes. Tentou ir comprar tabaco a uma bomba de gasolina mas, ao vê-lo naquele estado, o funcionário decidiu chamar a polícia. Manuel não teve outro remédio senão inventar uma história: disse que tinha sido assaltado por um grupo de 12 pessoas. Tinha medo de Francisco Leitão. Tinha medo de morrer.
As violações continuaram até que, sabendo que o pai adotivo estava à beira da morte, Manuel regressou à Madeira. Tinha 18 anos e nunca mais voltou à Carqueja.
O círculo alarga-se
Foi, porém, a partir de 2008 que Ghob começou a alargar de forma decisiva o seu círculo de conhecimentos, multiplicando assim o número das suas vítimas. Em 2009, era já recorrente vê-lo acompanhado por um grupo de jovens da Bufarda, uma localidade próxima, que conheceu através de um outro adolescente, Jorge, um primo afastado. Jorge — que tinha uma deficiência intelectual avaliada em 25% e não sabia ler nem escrever — começou a frequentar a casa de Leitão, onde passava as tardes a ver televisão e a jogar consola, depois de ter feito alguns trabalhos para ele. Com o tempo, acabou por se tornar em mais uma das vítimas do rei dos gnomos. Era ele o outro jovem que aparecia no vídeo que Patrícia denunciou em outubro de 2009.
Apesar de tanto ele como Francisco terem dito inicialmente que tudo tinha acontecido de livre vontade, os dois acabaram por admitir que tinham sido obrigados por Francisco Leitão a terem relações sexuais, uma situação que ter-se-á repetido pelo menos uma outra vez. Leitão, que tinha instalado uma microcâmara no quarto sem que os jovens soubessem, gravou tudo em vídeo. Divulgou as imagens no dia seguinte pelos jovens da Bufarda, provavelmente por vingança. A mãe de um dos adolescentes teria insinuado que era gay. “As mães deles dizem que eu sou p… e os filhos dela é que estão ali”, ouviram-no dizer.
Gravar o que acontecia no interior do castelo da Carqueja era uma prática comum. Durante as buscas, a polícia encontrou várias cassetes com imagens de jovens a manterem relações sexuais entre si e do próprio Francisco Leitão. Num desses vídeos surge Joana — a rapariga de 16 anos que desapareceu de casa em Sobreiro Curvo, em março de 2010 — com o namorado, por quem Leitão tinha uma obsessão. Porém, o seu nome não consta na lista de ofendidos do novo processo. Houve um “lapso” da parte do tribunal. A advogada de Maria de Fátima, mãe da adolescente, pediu esclarecimentos há cerca de quatro meses mas, até ao momento, ainda não obteve uma resposta. Já sem qualquer esperança, Maria de Fátima diz agora que “é capaz de não dar em nada”. “O nome dela devia estar [na acusação]. Não faz sentido, mas é como sempre: uns ficam à frente, outros ficam atrás”, disse ao Observador.
“É capaz de não dar em nada, porque ela não está cá para dizer se foi violada ou não. O nome dela devia estar [na acusação]. Não faz sentido, mas é como sempre: uns ficam à frente, outros ficam atrás.”
Foi Jorge quem apresentou Leitão a Frederico, a Carlos e a Filipe, que depois o apresentaram a Rui e Alexandre. Foi também assim que Joana acabou por conhecer o rei dos gnomos. Todos eles se tornaram suas vítimas. Carlos foi violado quase 400 vezes no espaço de um ano, Filipe sofreu 70 violações, Alexandre 57 e Rui oito. Foram a primeira “corte de gnomos” do Rei Ghob.
O mundo sobrenatural de Francisco Leitão, rei dos gnomos
Ao longo dos anos, Francisco Leitão desenvolveu um sistema elaborado baseado na crença de que existiam forças sobrenaturais. O esquema foi-se tornando cada vez mais complexo — as entidades que era capaz de encarnar aumentaram em número (inicialmente apenas existia uma, o “Paizinho”, que veio depois a transformar-se no terrível “Velho”) e surgiu a história das “injeções de energia”, um “tratamento” a que sujeitava as suas vítimas para as libertar das más energias e livrá-las da morte certa. Por fim, Francisco Leitão transformou-se no Rei Ghob, rei dos gnomos, um ser poderoso capaz de aceder a um conhecimento superior e secreto. Os escolhidos, aos quais era dada a possibilidade de frequentar o seu castelo, tinham acesso a este mundo mágico e restrito.
De onde é que vem o nome "Rei Ghob"?
Francisco Leitão costumava dizer que quem estava contaminado com más energias tinha um gnomo dentro de si. Perturbada com a insinuação, uma das vítimas decidiu procurar na Internet uma forma de se livrar do tal gnomo. Foi assim que descobriu a existência de uma entidade chamada Rei Ghob. Ghob (ou Gob) é, segundo algumas mitologias, o rei dos gnomos, pequenas criaturas mágicas, ligadas à terra, que costumam ser apresentadas como tendo uma aparência semelhante à dos humanos.
Feita a descoberta, decidiu mandar uma mensagem a Leitão. Este disse-lhe que isso devia ser alguma coisa muito séria porque a “Fatinha”, uma das entidades que alegadamente encarnava, não se queria pronunciar sobre o assunto. Contudo, a partir daquele dia, Francisco Leitão começou a chamar a si próprio “Rei Ghob”, rei dos gnomos.
Com a ajuda de alguns cúmplices, Francisco Leitão começou a organizar sessões espíritas e idas a cemitérios, onde encenava o aparecimento de almas penadas para assustar os jovens e fazê-los crer nas suas histórias. Para isso, recorria a adereços de magia (muitos deles comprados na loja Papagaio Mágico das Caldas da Rainha), aparelhos eletrónicos e luzes especiais. A sua casa, entretanto transformada em castelo, também ajudava a criar o ambiente ideal: o interior estava recheado de estátuas de santos e outras personagens mitológicas, na sala de jantar havia um altar e na sala de estar um índio sinistro.
Tal como Miguel, Manuel e muitos outros, a maioria das vítimas vinha de famílias com dificuldades financeiras ou tinha um historial problemático. Todos viam em Francisco Leitão um amigo ou um irmão mais velho em quem podiam confiar e que os compreendia. Para alguns, era o pai que gostavam de ter. Para ganhar a sua confiança, Francisco começava por lhes pagar bebidas, jantares. Também lhes oferecia objetos de valor, como telemóveis e computadores. Alguns chegaram a receber dinheiro. Ia buscá-los a casa, no Audi A4 de cor preta que tinha pertencido a Ivo, e levava-os a passear, a bares, discotecas ou ao Arena Shopping, nas Caldas da Rainha, onde costumava ficar até à hora de fecho. A noite terminava em casa dele.
A par dos espíritos, Francisco Leitão defendia a existência de energias. De acordo com o sucateiro, todos os seres humanos tinham cópias “negativas”, cujo objetivo era destruir os seus originais. Isso seria alcançado através daquilo a que chamava “energia negativa”. Esta podia ser até usada contra amigos e familiares dos humanos originais, provocando a sua morte. Para que isso não acontecesse, era necessário atingir determinados níveis de “energia positiva” no corpo. Esta força “positiva” teria origem num plano superior e era transportada para o plano terrestre através de entidades com as quais apenas Francisco Leitão conseguia comunicar e também encarnar. Por essa razão, Leitão era o único capaz de a transmitir. E só havia uma maneira de o fazer: através de “injeções de energia”. Ou seja, através de sexo.
Era assim que, levadas a crer neste mundo de fantasmas e almas penadas, os adolescentes se deixavam “injetar” com medo do que lhes pudesse acontecer. A primeira “injeção” ocorria, geralmente, entre dois a três meses depois de se terem conhecido, quando Francisco Leitão tinha a certeza de que as suas futuras vítimas não lhe iam dizer que não. Nalguns casos, quando os jovens ainda não eram completamente controlados (fosse porque tinham dificuldade em acreditar nos espíritos, ou porque não eram capazes de confiar totalmente no rei dos gnomos), Leitão drogava-os. Para isso, recorria a um conjunto de medicamentos do grupo dos ansiolíticos, sedativos e hipnóticos utilizados no tratamento da depressão e ansiedade, e ainda à pseudo-efedrina, um estimulante usado no tratamento da asma. Estes eram misturados com bebidas que Leitão lhes oferecia. Começavam rapidamente a sentir-se zonzos, acabando por ficar inconscientes. Era durante este estado de inconsciência que as violações aconteciam. No dia seguinte, as vítimas de pouco ou nada se lembravam, sentiam o corpo dorido e tinham nódoas negras.
As entidades que Francisco Leitão encarnava também desempenhavam um papel importante. Além de serem capazes de prever o futuro e revelar segredos, seriam ainda portadoras de mensagens importantes, que eram transmitidas por Leitão enquanto este estava em “transe”. Nestas comunicações, os espíritos determinariam a realização de certas ações, geralmente “injeções de energia”. Estas tinham sempre de ser cumpridas ou, caso contrário, algo de mal iria acontecer. Ghob fazia questão de zelar pela sua execução. De modo a tornar a história mais credível, o sucateiro chegou mesmo ao ponto de criar uma narrativa em torno de cada um destes espíritos. Alguns deles só apareciam na presença de determinadas pessoas, como era o caso da “Maria” ou do “88”, enquanto outros eram bem conhecidos de todos aqueles que o rodeavam.
Foi isto que fez com Alexandre. Em abril de 2009, cerca de três meses depois de ter conhecido Francisco Leitão, este ligou-lhe para lhe dizer que o seu anjo da guarda, “Maria”, lhe tinha ordenado que tinha de o “injetar” com energia de quatro em quatro dias. Se não se sujeitasse à “descontaminação”, como Ghob lhe chamava, Alexandre iria gradualmente deixar de ver, sentir, falar e, por fim, morreria. Em pânico, Alexandre, que acreditava piamente na existência da tal “Maria”, deixou-se violar consecutivamente até finais de agosto, altura em que as “injeções” cessaram. Meses depois, Ghob sujeitou-o a novas violações, que duraram até à sua detenção, em junho de 2010. Obrigou outro jovem a assistir e, quando Alexandre tentou resistir, drogou-o. Tudo foi feito para “o bem do adolescente”.
Com Carlos não foi muito diferente: em março ou abril de 2009, recebeu um telefonema de Leitão, que lhe disse que algo de muito mau estava para acontecer. Para o evitar, tinha de se sujeitar a uma “quarentena” e ser “injetado com energia”. Caso contrário, o “88”, uma entidade maligna, iria matá-lo. As “quarentenas” correspondiam a períodos de 40 dias, durante os quais Leitão violava consecutivamente os jovens. Era essencial que o calendário fosse mantido ou o “tratamento” podia perder o efeito. Leitão ameaçava muitas vezes as vítimas com a morte. As sessões eram anotadas por Leitão num caderno de notas, que foi encontrado pela polícia durante as buscas no castelo da Carqueja.
Além destas duas entidades, havia pelo menos quatro que eram presença constante na vida de Leitão e daqueles que o rodeavam. A primeira, e mais importante, era o “Velho:
- “Velho” (também conhecido por “Paizinho”). Era a personagem mais cruel de Francisco Leitão e provavelmente uma das mais antigas. Apesar de as últimas vítimas falarem sempre no “Velho” — uma entidade com 200 anos cujo nome próprio seria Cipriano, numa clara referência a S. Cipriano, cujo livro costumava mostrar aos jovens que queria impressionar –, a personagem começou por se chamar “Paizinho”, avô e protetor de Ghob. Facilmente irritável, violento e controlador, punia quem desobedecia às suas ordens (Mara e Ivo chegaram a ser deixados amarrados a uma árvore durante a noite, porque não tinham feito o que o “Velho” lhes pediu). Quando estava de bom humor, era capaz de premiar quem cumpria os seus pedidos. Quando o “Velho” aparecia — a qualquer pessoa, independente da idade ou do género –, a expressão de Leitão ficava mais séria e a sua voz mais áspera.
- “Fatinha”. Entidade promíscua, falava de sexo de forma aberta, com uma voz doce e meiga. Aparecia apenas a jovens do sexo masculino e chegou mesmo a servir de pretexto para algumas das violações.
- “Damásio”. Extrovertido e brincalhão, era a personagem mais divertida de Francisco Leitão. Gostava de pregar partidas e aparecia a todas as pessoas. Tinha uma voz parecida com a do “Velho”, mas a expressão de Leitão não era tão séria quando “incorporava” esta entidade.
- “D. Mimi” ou “D. Mila”. Personagem religiosa, funcionava como uma espécie de “voz da consciência”, alertando as pessoas para o mal que tinham feito. Dava conselhos sobre como praticar o bem ou como esquecer as coisas más. Salientava sempre a importância de rezar muito a Deus e pedir perdão.
De modo a criar uma ligação com as vítimas, e para que estas se sujeitassem mais facilmente às violações, Francisco Leitão dizia-lhes que ele próprio tinha passado pelo mesmo. Costumava contar-lhes que, quando era mais novo, tinha tido um um mentor, Frei Rodrigo, que o tinha obrigado a fazer coisas terríveis para que conseguisse atingir o nível de energia que tinha. Também Ivo, o seu primeiro aprendiz (que, depois do seu desaparecimento, foi substituído por Carlos), tinha passado pelo mesmo. Foi esta a desculpa que usou para tentar convencer um dos jovens a fazer sexo com uma vaca — Ivo também o tinha feito. Não foi a primeira nem a última vez que usou o nome do jovem para levar as suas vítimas a fazerem o que queria. Mas nada há que confirme qualquer problema do género no seu passado.
“Na cabeça do agressor, eles consentiram”
O facto de Francisco Leitão preferir a companhia de adolescentes a adultos, mostra que “não teve um processo de crescimento normativo para a sua faixa etária” e que se identificava mais com pessoas mais jovens, sintomas de uma “distorção cognitiva”. Cristina Soeiro, responsável pelo Gabinete de Psicologia e Seleção na Escola de Polícia Judiciária e autora do exame psicológico preliminar de Leitão, realizado no verão de 2011, quando já se encontrava detido nas instalações da PJ em Lisboa, explicou ao Observador que, apesar de o sucateiro ter sempre procurado uma posição de poder e de influência sobre os jovens, na cabeça dele era tudo “consentido”, “os miúdos eram seus pares”. “Este indivíduo olha para os jovens como pessoas com quem se relaciona normalmente. Na cabeça do agressor, eles consentiram.”
No que diz respeito às violações, na cabeça de Francisco Leitão tudo não passaria de “uma experimentação”. “Tem a ver com o seu crescimento sexual”, afirmou a psicóloga. Em entrevista ao Observador em maio deste ano, Carlos Poiares, psicólogo criminal que seguiu o caso de perto, salientou que um violador é alguém que “não é capaz de manter uma relação normativa” e que, por isso, “passa à força”. “São pessoas que são incapazes de ter uma relação com alguém do ponto de vista direito, então optam por ter estas relações” forçadas. Além disso, o ato sexual seria para Leitão “uma forma de se preencher”.
“Este indivíduo olha para os jovens como pessoas com quem se relaciona normalmente. Na cabeça do agressor, eles consentiram."
Para Cristina Soeiro, este caso é claramente “o de um indivíduo que encaixa na nossa tipologia de questões relacionadas com perturbações mentais”. “Trata-se de um indivíduo que terá um quadro mais na esfera das psicoses, como mostra o material que ele tinha em vídeo e o próprio relacionamento com os jovens.” Além disso, existem “aspetos como perturbações de personalidade e ausência de culpa”. “É um quadro grave que requer uma intervenção, que deve somar a punição com um diagnóstico adequado. Se os problemas que ele tem ao nível da saúde mental não forem tratados pode agravar riscos de recurso à violência.” Isto não significa, porém, que Francisco Leitão possa vir a cometer outro homicídio.
Como explicou Cristina Soeiro, ”não há uma relação entre doença mental e crime”. “Contudo, determinados tipos de violência, principalmente a violência dirigida contra pessoas, pode estar relacionada com situações de desequilíbrio em termos de saúde mental. O homicídio é um desses tipos de crime. Temos pessoas que, estando medicadas e acompanhadas pelo médico, podem ter uma vida completamente integrada. Quando não estão medicadas e entram numa fase difícil, podem tornar-se violentas contra pessoas que, geralmente, pertencem à sua rede social, são familiares ou pessoas conhecidas.”
Os testes psiquiátricos e psicológicos realizados a Francisco Leitão revelaram uma personalidade do tipo borderline, com instabilidade comportamental e emocional, um sistema de defesas precário, um QI abaixo da média e características histeriformes, narcísicas e antissociais. Além disso, segundo as indicações de Robert D. Hare, um psicólogo criminal canadiano que desenvolveu uma ferramenta de diagnóstico utilizada para avaliar tendências comportamentais antissociais conhecida por PCL-R, Francisco Leitão reúne um conjunto de características compatíveis com psicopatia. Contudo, ao contrário do que muitas vezes se julga, os psicopatas não são necessariamente assassinos. “Os psicopatas não têm uma doença mental, têm uma malformação de personalidade. Podem ter várias patologias”, esclareceu Cristina Soeiro. “Um psicopata é geralmente um indivíduo que se rege por ganhos pessoais. O homicídio acontece se lhe trouxer grandes vantagens. Os psicopatas mais facilmente cometem um roubo ou um crime sexual [do que um homicídio].”
No que diz respeito às histórias de espíritos e fantasmas que criou, Cristina Soeiro afirma que estas já têm a ver com “a esfera dos problemas mentais” e com “quadros mais alucinatórios”. “É uma aldeia muito fechada e estes jovens acabavam por se identificar com estes comportamentos.” Além disso, poderá indicar “alguma dificuldade de competências sociais” da parte de Leitão. Em maio deste ano, Carlos Poiares referiu a este propósito os claros “contornos de bizarria” e de “ostentação” do Rei Ghob. De acordo com o psicólogo, foi exatamente este “comportamento preenchido por bizarria” que fez com que Leitão se convencesse de que “era possível cometer uma série de abusos passando pelos pingos da chuva”. Francisco Leitão nunca confessou nenhum dos crimes de que foi e é acusado.
“Chegou até muito tarde sem se conhecer este tipo de comportamentos e isso não é comum, normalmente começam mais cedo. A precocidade criminal é algo que caracteriza os agressores sexuais.”
Ao Observador, Cristina Soeiro salientou ainda o facto de Francisco Leitão ter chegado “até muito tarde sem se conhecer este tipo de comportamentos”, que resultam “claramente de ter fragilidades emocionais e mesmo questões de saúde mental” que poderão ter sido agravadas por “falta de um apoio social e familiar próximo que lhe dava alguma orientação que ele depois perdeu”. E isto não é comum, porque costumam surgir mais cedo. “A precocidade criminal é algo que caracteriza os agressores sexuais”, afirmou a psicóloga, explicando que alguns problemas de saúde mental podem ser desencadeados “pela perda de coisas que são fatores de proteção”. A verdade é que os comportamentos desviantes parecem ter surgido (ou pelo menos ter-se agravado) depois da morte da mãe, altura em que, segundo alguns relatos, terão surgido os problemas com a ex-mulher, Rosa. Francisco Leitão tinha 23 anos.
Apesar deste quadro clínico complicado, Francisco Leitão nunca foi dado como inimputável. O Observador soube que, antes de ser detido, Ghob começou a frequentar consultas de psiquiatria com esse objetivo, mas a estratégia acabou por não resultar. A perícia psiquiátrica e psicológica, como a que Cristina Soeiro fez em 2011, tem, aliás, como objetivo determinar a responsabilidade criminal de um suspeito — isto é, se na altura do crime, este tinha consciência do que estava a fazer. Se for considerado criminalmente irresponsável, significa que o crime aconteceu por causa de uma doença mental, numa altura em que o indivíduo não estava capaz de avaliar a ação como certa ou errada. Dito por outras palavras: se a doença não existisse, não teria existido crime.
A corte de gnomos das Caldas da Rainha
Cerca de um ano antes de ser detido, Francisco Leitão começou a alargar a sua rede de relações às Caldas da Rainha. Foi aí que conheceu Ana, numa festa de anos no verão de 2009. Naquela tarde, Ghob falou-lhe do mundo dos espíritos e apresentou-lhe o “Velho”. A adolescente ficou impressionada e os dois tornaram-se amigos. Mas Leitão queria mais do que amizade — costumava dizer à jovem de 16 anos e à mãe desta que um dia ainda se iam casar. A diferença de idades não era problema: Leitão dizia que já tinha tido relacionamentos com adolescentes da sua idade. O dois foram-se tornando cada vez mais próximos (Francisco Leitão chegou mesmo a dormir em casa de Ana duas vezes) e a jovem apresentou-lhe alguns dos seus amigos: as próximas vítimas do rei dos gnomos.
Nessa altura, morava em casa de Ana uma outra adolescente, Maria, que atravessava um momento complicado. Tinha-se separado há pouco tempo do namorado e chegara a dormir na rua. A antiga colega de escola foi a única que a ajudou naquele momento conturbado. Foi a conselho da mãe de Ana que Maria, de 18 anos, conheceu Francisco Leitão. Sempre simpático e sorridente, começaram a estar juntos quase diariamente. Maria só queria divertir-se e esquecer os problemas do dia-a-dia, e Leitão era a companhia ideal. Apresentou-lhe outros jovens, pagava-lhe idas ao cinema, tabaco, o telemóvel, e estava lá sempre que ela precisava. Mais do que um amigo, Leitão era uma espécie de pai, que lhe dava o carinho e atenção de que precisava. Até que, de um dia para o outro, tudo mudou.
Apercebendo-se do interesse da jovem num dos adolescentes da Bufarda que o costumava acompanhar, Francisco Leitão começou a dizer que Maria era “vampira”, uma “negativa”, que estava possuída por forças malignas e que era filha de Lúcifer. Fez de tudo para afastar a jovem do rapaz de quem gostava, dizendo-lhes que não podiam estar juntos por causa das “energias”. E isso era habitual — Francisco Leitão tentava sempre que os seus gnomos não se envolvessem com raparigas.
Maria, que estava convencida dos poderes de Leitão, acreditava em tudo o que ele lhe dizia. E estava disposta a acatar qualquer ordem que vinha dele. Foi assim que acabou envolvida nos rituais de magia negra que Ghob realizava nas traseiras da sua casa, onde existe um terreno com uma casa em ruínas e um poço que muitos acreditavam servir para prender as vítimas. Durante as buscas, a PJ não encontrou indícios que sustentassem estas suspeitas, mas provas das práticas ritualistas não faltaram: no cimento, junto ao portão de entrada, havia duas cruzes e dois pentagramas desenhados e, no interior das ruínas, um altar com velas derretidas e uma imagem de Nossa Senhora de Fátima.
Numa destas sessões, onde participaram dois outros jovens, Maria, que era “vampira”, foi obrigada a beber o sangue de dois gatos pretos, que Ghob abriu ao meio, e de uma galinha degolada. No final, Francisco Leitão fez um corte na mão de cada um deles e misturou o sangue numa tigela, que depois usou para desenhar um pentagrama no chão enquanto falava numa língua estranha. Uma língua “mágica”. Curiosamente, em entrevista ao Diário de Notícas, Dina Leitão disse que o irmão não era capaz nem de “matar uma galinha”. “Quando matávamos aqui porcos e as galinhas”, que criavam nas traseiras de casa, “ele afastava-se logo”, “não é uma pessoa agressiva”, dizia então.
Além dos rituais macabros em que foi obrigada a participar, Maria terá também sido violada. Certo dia, depois de ter ido tomar um copo com Leitão, acordou numa cama de casal na casa da Carqueja sem saber muito bem como é que tinha lá ido parar. À semelhança de muitos outros, terá também sido drogada, violada e possivelmente torturada (tinha vários cortes em diferentes zonas do corpo). Vendo-a acordada, Ghob preparou-lhe o pequeno-almoço — pão aquecido com creme de chocolate barrado e leite com chocolate, o seu favorito.
Foi também através de Ana que Francisco Leitão conheceu outra das suas vítimas, Henrique. O rapaz tinha nascido em França mas, quando tinha três anos, a mãe trouxe-o para Portugal e deixou-o ao cuidado dos avós. Quando tinha 11 anos, o avô de Henrique adoeceu gravemente e a assistência social decidiu levá-lo para a Casa do Gaiato, temendo que ficasse sem ter quem cuidasse dele. Ficou na instituição durante um ano, até que voltou para casa dos avós, em São Gregório, nas Caldas da Rainha. Rapaz tímido, preferia passar o tempo enfiado no quarto a jogar computador, mas acabou por conhecer Ana pouco tempo depois.
O primeiro encontro com Francisco Leitão aconteceu durante as férias de verão de 2009, quando estava a passar uns dias em casa da amiga, nas Caldas da Rainha. Leitão, que apareceu em casa de Ana com Carlos, passou a tarde a falar de espíritos e almas penadas, uma conversa que Henrique achou ridícula. Percebendo que todos acreditavam nas palavras daquele homem estranho, decidiu não dizer nada. Manteve-se calado, apenas a ouvir. Apesar de o jovem não ter ficado impressionado com a conversa do sucateiro da Carqueja, Leitão parece ter ficado impressionado com o rapaz de 17 anos. Pediu-lhe o número de telefone e começou a mandar-lhe mensagens todos os dias. Passou a aparecer quase diariamente na casa de Ana e, procurando impressionar Henrique e todos os outros que por lá passavam, encarnava frequentemente o “Velho” e também “Dionísio”.
Aos poucos, Ana, e principalmente Maria, deixaram-se convencer por Ghob. De tal forma que, no final de agosto, Maria mordeu Henrique no braço simplesmente porque Francisco Leitão lhe disse para o fazer. Irritado, Henrique confrontou-o, mas o homem limitou-se a desmentir tudo. Acusou Maria de andar a consumir drogas e de estar possuída por um demónio. Henrique, que começava a cair no feitiço do rei dos gnomos, acreditou quando Leitão lhe disse que precisava de ser “descontaminado” e que o ia buscar nesse mesmo dia para realizar o ritual.
"Ele não é sequer capaz de matar uma galinha. Quando matávamos aqui porcos e galinhas, ele afastava-se logo. Não é uma pessoa agressiva."
Leitão apareceu em casa de Ana durante a tarde desse dia 26 de agosto. Levou Henrique para a Carqueja, onde o jovem passou o dia a jogar computador, como tanto gostava. A certa altura, sentiu Ghob aproximar-se. Olhou para ele e viu-o de braço no ar e olhos fechados, enquanto falava numa língua estranha, como se estivesse em transe. De seguida, anunciou a Henrique que, para ser descontaminado, tinha de ser sujeito a uma “injeção de energia”. Como não percebeu o que Francisco Leitão quis dizer com aquilo, decidiu mandar uma mensagem a Ana a perguntar-lhe o que era a tal “injeção”. A resposta foi direta: sexo.
Henrique passou aquela noite em casa de Francisco Leitão. Dormiu no quarto do sucateiro, que dormiu num colchão no chão da sala. Quando acordou, Leitão não estava em casa. Desceu as escadas e foi ter com o companheiro de Dina, que vivia com ela no rés-do-chão. Os dois foram tomar o pequeno-almoço e, por volta das 11h da manhã, já depois de Ghob ter chegado a casa, Henrique começou a sentir-se estranho. Começou a ter tonturas, acabando por desfalecer. Quando acordou, provavelmente no dia seguinte, estava desorientado e não sabia onde estava. Doía-lhe o corpo e tinha a visão desfocada. Lembrava-se apenas de estar deitado na cama de Leitão, nu, com ele ao seu lado.
Carlos, que tinha passado pelo castelo da Carqueja naquela noite, chegou a ver Henrique deitado no quarto de Francisco Leitão. Parecia drogado e dizia coisas sem sentido: dizia que queria morrer e que sentia dores no peito, ao mesmo tempo que gritava que não queria ter a cor verde. De acordo com a teoria de Leitão, as pessoas tinham diferentes cores dentro de si, que apenas aqueles que tinham a “visão” podiam ver. Vermelho era a cor dos “negativos” e o azul ou o rosa a cor dos “positivos”. Quem mantinha relações homossexuais ganhava um tom esverdeado.
Sem notícias do neto, Luís Paulo decidiu apresentar queixa pelo seu desaparecimento no posto da GNR das Caldas da Rainha. A participação deu entrada a 28 de agosto, dois dias depois de Henrique ter sido levado para a Carqueja. Nesse mesmo dia, à noite, Luís Paulo recebeu uma visita inesperada: tocou-lhe à porta o presidente da junta de São Gregório, acompanhado por um outro indivíduo — Francisco Leitão. Leitão, que tinha consigo as chaves de Henrique, mostrou-as a Luís Paulo, que as reconheceu de imediato. Este perguntou-lhe onde é que estava o neto e Ghob explicou-lhe que tinha passado a noite com Maria, na Bufarda, e que não queria voltar para casa porque o avô não o queria lá. Segundo Francisco Leitão, Henrique, que parecia estar drogado, estava a caminho de um hospital em Lisboa com Maria, porque esta o tinha mordido. Luís Paulo não queria que o neto fosse para Lisboa e Leitão ligou de imediato a Maria. Só que Maria já estava na autoestrada e não podia voltar para trás.
Depois de Francisco Leitão e o presidente da junta de freguesia saírem, Luís Paulo preparou-se para se fazer à estrada e ir buscar o neto. Provavelmente adivinhando os pensamentos do homem, Leitão ligou-lhe pouco tempo depois para o informar de que Henrique tinha fugido do carro de Maria quando ela parou junto às portagens à saída de Torres Vedras. Mas não havia motivos para Luís Paulo se preocupar — ele próprio iria à procura de Henrique. O avô do jovem não pensou duas vezes: ligou à polícia e deu o número de Francisco Leitão às autoridades. O Rei Ghob nunca mais lhe ligou. Quanto a Maria, além de não ter estado com Henrique naquele dia, nem sequer tinha carta de condução.
Um ano depois, o inquérito é reaberto
Francisco Leitão foi detido à meia-noite de 19 de julho de 2010 na sua casa, na Carqueja. Em causa estava o desaparecimento de três jovensque frequentavam o castelo do rei dos gnomos — Joana, Ivo e Tânia. Joana — que namorava com um dos “gnomos” de Ghob — tinha sido vista pela última vez em março. Foi a denúncia do seu desaparecimento que levou à descoberta de que os outros dois jovens — que estariam num relacionamento que Ghob não aprovava — não eram vistos desde junho de 2008. No curso das investigações, a PJ descobriu ainda o caso de António, um homem mais velho conhecido como “Pisa-Lagartos” que vivia numa carrinha estacionada na Carqueja e que se dedicava à recolha de sucata. António era frequentemente visto na companhia de Ghob, mas o seu envolvimento no desaparecimento do homem de 73 anos acabaria por nunca ficar provado.
Leitão foi levado para as instalações da PJ numa sexta-feira e, por essa razão, só foi presente a um juiz na segunda-feira seguinte, a 21 de julho, perante o qual negou qualquer envolvimento no desaparecimento de Joana, Ivo, Tânia ou “Pisa-Lagartos”. Depois, calou-se (o Código Penal Português prevê que, quando confrontado com os factos que lhe são imputados, o arguido possa manter-se em silêncio). As poucas vezes que falou sobre o caso foi para negar todos os crimes de que era suspeito, tal como acabaria por fazer com os quase 550 crimes de violação de que viria a ser formalmente acusado em 2017.
O julgamento do triplo homicídio arrancou 9 de janeiro de 2012, em Torres Vedras, com um tribunal de júri composto por três juízes e quatro cidadãos previamente selecionados. Durou cerca de três meses. A 29 de março foi lida a sentença: Leitão foi condenado a 25 anos de prisão, por cúmulo jurídico, pelos crimes de homicídio e ocultação de cadáver e absolvido da morte de “Pisa-Lagartos”. Os corpos de Joana, Ivo e Tânia nunca foram encontrados. Foi ainda condenado a uma pena de 12 meses de prisão por falsificação de documentos e de três meses por detenção ilegal de uma arma, uma taser, que havia sido encontrada no castelo da Carqueja durante as buscas.
Francisco Leitão, que estava a aguardar julgamento no estabelecimento prisional da PJ, em Lisboa, foi transferido para Vale dos Judeus (uma prisão de alta segurança considerada uma das mais perigosas do país), onde se encontra a cumprir pena desde 19 de junho de 2012. Apesar de nunca ter tido problemas a nível disciplinar, a sua adaptação na prisão não tem sido das melhores. Preferindo o isolamento da sua cela ao convívio com os outros reclusos, nunca se esforçou por se integrar. Além disso — e apesar dos incentivos dos serviços intervenientes na execução de pena –, nunca procurou envolver-se em qualquer projeto no interior da cadeia. Só recentemente, após ter tomado conhecimento de um novo processo, é que decidiu começar a trabalhar na lavandaria da prisão, onde exerce funções desde outubro de 2016. O seu desempenho é considerado favorável pelos serviços prisionais.
Durante todo este tempo, Dina manteve-se do seu lado. A irmã é a única a visitá-lo em Vale dos Judeus. Apesar de não se deslocar com frequência a Alcoentre, onde fica a cadeia, Dina fala com alguma regularidade com o irmão por telefone. A restante família — os dois irmãos e o pai, José Leitão — parece ter-se afastado definitivamente. Porém, é com eles que Leitão pondera viver se algum dia sair da prisão (se cumprir a pena até ao fim, só poderá sair de Vale dos Judeus em julho de 2035, ou seja, quando tiver 63 anos). O irmão José mora há já alguns anos na Suíça, onde Ghob acredita haver boas perspetivas de trabalho, nomeadamente na área da construção civil. O pai vive na zona de Setúbal e, apesar de sempre se ter mantido afastado do caso, Francisco Leitão não põe de lado a hipótese de vir a mudar-se para sua casa.
Mas, antes de isso acontecer, Leitão terá de enfrentar mais uma vez a decisão do coletivo de juízes. O homem de 48 anos é acusado de 542 crimes de violação de 12 dos muitos menores que, durante anos, frequentaram a casa da Carqueja. Uma das vítimas, Carlos, terá sido violada 397 vezes no espaço de pouco mais de um ano. Uma outra, Filipe, terá sido abusada sexualmente 70 vezes. No despacho de acusação constam ainda seis crimes de pornografia de menores e um de ameaça agravada, ofensa à integridade física qualificada, devassa da vida da vida privada e dano. Entre estes crimes — alegadamente cometidos entre 2009 e a data da sua detenção, a 19 de julho de 2010 — não se inclui, porém, a realização do filme pornográfico que Patrícia Leitão denunciou à polícia em 2009. Apesar das diligências efetuadas pela Polícia Judiciária, não foi possível reunir provas suficientes para acusar Francisco Leitão de ter filmado os dois jovens da Bufarda. A queixa acabou por ser arquivada.
A primeira sessão foi marcada para 15 de maio, no Tribunal Judicial de Loures. A lista de vítimas e testemunhas era extensa e o julgamento arrastou-se até finais de junho. A 26 desse mesmo mês, após as alegações finais, o coletivo de juízes marcou a data para a leitura de sentença: esta segunda-feira, 18 de setembro, às 14h00. De acordo com a Agência Lusa, o Ministério Público não pediu nenhuma pena concreta, mas deixou claro que a nova condenação terá de fazer cúmulo jurídico com os 25 anos aplicados a Leitão em 2012.
Como o advogado Miguel Matias, especialista em Direito Penal, já tinha explicado ao Observador, este julgamento é independente do anterior, o que significa que Francisco Leitão pode apanhar a pena “que o tribunal ponderar ser a mais correta”. Fazendo as contas, Leitão pode ser condenado a outros 25 anos de prisão, pena máxima permitida por Lei em Portugal. Contudo, como prevê o Artigo 42.º do Código Penal, “o limite máximo da pena de prisão é de 25 anos nos casos previstos na lei” e “em caso algum pode ser excedido o limite máximo referido”. Ou seja: na prática, a segunda condenação não passa de uma formalidade, já que o Tribunal terá de fazer o cúmulo jurídico das duas penas. Ghob terá sempre de cumprir apenas uma pena de 25 anos de prisão. A segunda condenação é como se não existisse.
Apesar das provas reunidas pela PJ contra Francisco Leitão, a defesa do arguido não acredita que este venha a ser condenado pelos 542 crimes de violação, colocando a possibilidade de a pena final dizer apenas respeito a “quatro ou cinco”, segundo a Lusa. Contactado na altura pela agência de notícias, o advogado Hélder Cristóvão disse apenas que o importante em termos de defesa “são as questões jurídicas que se levantam, relacionadas com a prescrição do direito de queixa e do crime ser apenas um por vítima e na forma continuada”. É pouco provável que tal venha a acontecer, mas isso só se saberá com certeza na altura da leitura do acórdão. O Observador tentou por diversas vezes contactar Hélder Cristóvão, por telefone e email, mas sem sucesso.
Francisco Leitão continua a negar a autoria de todos os crimes de que é acusado. Quando questionado sobre o assunto, fala na grande injustiça de que foi vítima, chegando mesmo a sugerir a existência de uma conspiração contra si, levada a cabo pelas vítimas. Passados cinco anos da sua condenação pela morte de Joana, Ivo e Tânia, continua a afirmar não ter desempenhado qualquer papel no seu desaparecimento. Sobre o novo processo, diz que todas as relações sexuais que manteve com os jovens que violou foram consentidas. Este dia 18 saberemos o que decide o juiz sobre Francisco Leitão, rei dos gnomos.
Nota: os nomes das vítimas são fictícios.
Texto de Rita Cipriano, fotografia de André Marques, ilustração de Maria Gralheiro.
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