Tuesday, February 23, 2016

Eu vi um sapo



23.02.2016
INÊS CARDOSO
Até há poucos dias, falar de sapos no cinema remeteria de forma imediata para a surpreendente cena do filme de Paul Thomas Anderson em que um Tom Cruise em alta rotação tem uma das suas mais intensas interpretações. A surreal chuva de sapos de "Magnólia" fez correr rios de tinta, havendo quem escavasse a origem bíblica da cena e quem se limitasse a considerá-la uma irrupção do acaso e do absurdo, num enredo feito de coincidências entrelaçadas.
Desde a semana passada, outros sapos entraram na história do cinema português. Aos 24 anos, Leonor Teles tornou-se a mais jovem realizadora a vencer o Urso de Ouro para melhor curta-metragem no Festival de Cinema de Berlim. "A balada de um batráquio" chama a atenção para a discriminação em forma de sapo de loiça, colocado à porta de muitos estabelecimentos comerciais para afastar a comunidade cigana.
As novas gerações já não têm sequer a mesma superstição de que o sapo é um animal que dá azar. Mas a simbologia xenófoba, essa, está toda contida num simples objeto de loiça. Onde ele é exibido, um cigano não é bem-vindo. E ninguém gosta de entrar onde se sente indesejado. O sapo não afugenta. O ódio sim. Tanto que Leonor Teles confessa ter sentido a "urgência" de destruir sapos em frente às câmaras.
Uma ronda por lojas que vendem bugigangas em loiça demonstra que a procura de sapos aumentou após as notícias sobre o filme premiado. À primeira vista, seria um efeito inverso ao desejado pela realizadora: a prática parece ter sido publicitada, fazendo aumentar o número de sapos. Mas esqueça-se essa primeira impressão. Porque se aumenta o fenómeno, significa que a discriminação está mais exposta. E deve temer-se apenas o que se esconde.
De nada vale fingir que os preconceitos não existem. Se alguém ouviu falar que os sapos alegadamente afastam os ciganos e foi a correr comprar um para o seu estabelecimento, apenas passou a demonstrar sentimentos que já tinha. Expondo, ficamos a saber exatamente onde há fraturas sociais. O que nos separa e exige compreensão e prevenção.
Nem todas as clivagens raciais, étnicas ou sociais têm um símbolo ou uma forma. São muitas vezes silenciosas e sombrias. Subtis e difíceis de apreender. Melhor seria se para cada preconceito houvesse um sapo. Onde os víssemos, saberíamos que a igualdade e coesão social estão por conseguir. Diariamente chovem sapos à nossa volta. O pior é que tantas vezes nem os vemos.

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