13.01.2016
MIGUEL GUEDES
O esquecimento da mortalidade humana é um acontecimento raro e apanha-nos numa esquina, na amargura e pelo confronto que nos lembra que até os imortais morrem. Não foi necessário apanhar o rapaz dos jornais. A notícia, pela manhã, soltou-se como gotas de água, saturadas mas livres, num longo rio cada vez mais tranquilo; e, pela noite, a notícia já dera lugar a um dos mais bonitos dias que os dias da Internet conheceram. A incredulidade e a aceitação, a sucessão de homenagens e citações pessoais e transmissíveis nas redes sociais, o sentimento de pertença. Um dos últimos heróis colectivos morreu e o Mundo entregou-se, unânime, na rendição a um dos que consideramos acima da morte, numa tremura que depressa se faz contemplação por amarmos um estranho. Estes heróis podem partir em paz porque, partindo, sabem que os vamos ter para sempre. A estes heróis o Mundo não causou angústia. Até no fim. David Bowie partiu e morreu como uma obra de arte.
Esperar pelo lançamento de um disco é maravilhoso e clama pela memória analógica. À medida que a data se aproxima, espreitando pelos momentos de antecipação como vislumbres e miragens certas aos nossos olhos, cresce a ansiedade pelo dia. Há décadas esperava-se avidamente que o disco importado chegasse às lojas mas hoje a ansiedade da espera delimitou-se entre o anúncio e a concretização. Menos tempo, sensação semelhante. Desde que Bowie anunciou "Blackstar" para o dia dos seus 69 anos, segui pelo que nos dava, aguçado por duas canções excepcionais (com vídeos não menos brilhantes) e vários golpes de asa na transmissão da mensagem. No dia 8 de manhã encontrava-me à porta de uma loja de discos. A estranha rendição a um objecto novo. Apoiado no que conhecia, ouvi "Blackstar" a sentir que era o meu disco do ano, oito dias volvidos. E um dos melhores discos de Bowie, 69 anos depois. Já tinha sido preparado para isto.
O murro no estômago pelas manhãs é algo que começa a ser comum e previsível à medida que o tempo avança. Desaparecem os nossos, morrem os que nos fizeram a vida. Bowie era um artista subversivo, que testou limites pessoais, colectivos e de género. Foi humano e extraterrestre, vendeu a terra depois do Major Tom comunicar para o "ground control". Tinha tudo para não ser consensual. Mas só alguns génios conseguem a glorificação unânime e só a cultura cria essa possibilidade com aqueles que se colam na pele, simultaneamente, das supostas elites e do misterioso povo. Até na previsibilidade da morte Bowie nos seduziu com arte. Poucos dias depois de "Blackstar", tudo fazia ainda mais sentido. Essa sua força é um enigma para os mortais. Nunca ninguém morreu assim.
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