terça-feira, 5 de janeiro de 2016

Humor e liberdade de expressão



Muitas vezes torço o nariz quando vejo fotos de agentes policiais aparentemente bêbados a serem usadas no Facebook como objecto de troça. É vergonhoso que agentes policiais sejam flagrados nessas circunstâncias (ou que se encontrem nessas circunstâncias) e percebo que o opróbrio geral a que eles se sujeitam manifeste, em certa medida, a expectativa legítima de que as nossas forças policiais sejam representadas por gente que honra o uniforme. Torço o nariz perante isso porque algo me diz que uma das motivações por detrás desse tipo de “voyeurismo” é apenas a ridicularização dum todo à custa do comportamento problemático de alguns. Confesso que tenho muitas dificuldades com este tipo de humor.

Em parte por causa disso, mas também por uma aversão que nutro agora pelo semanário “Savana”, fiquei profundamente chocado com fotos apresentadas na página humorística da edição de Natal desse mesmo seminário. Trata-se de fotos de agentes policiais aparentemente bêbados com os seguintes dizeres: “PRONTIDÃO – A PRM garantiu que a sua força está em prontidão para garantir a ordem e tranquilidade durante as festas”. Isto é humor satírico (de muito mau gosto para mim) e pode de facto documentar a tal expectativa legítima que a sociedade tem em relação à integridade moral e profissional da polícia. Ao dizer que este tipo de “voyeurismo” me incomoda tenho o cuidado de não atravessar uma linha sagrada traçada na constituição em relação à liberdade que os órgãos de informação (assim como o público em geral) têm de se exprimir criticamente em relação às coisas com as quais não concordam. Essa expressão crítica pode, como no caso que aqui discuto, assumir o carácter de humor satírico patente nessa publicação.

Mas há razões para não ser o único a me sentir incomodado com isto. Primeiro, e duma forma geral, as imagens em si são um problema. Para além de constituírem uma grave invasão da privacidade desses indivíduos (estou ciente de que no caso de funcionários públicos este critério possa ser algo tremido), não está claro até que ponto elas de facto documentam o que a sátira sugere. Excluindo o caso das imagens que são acompanhadas de bebidas alcoólicas (e mesmo nesse caso não tenho a certeza) é difícil saber se o agente policial estatelado no chão está estatelado por estar embriagado ou por uma outra razão qualquer. Com uma dose apropriada de maldade é sempre possível “documentar” com fotos tudo quanto a gente quer dizer.

Segundo, o humor não é só humor. É humor quando chama a nossa atenção para o lado ridículo das coisas, mas há aí que prestar atenção a duas coisas. Primeiro, esse lado ridículo é ridículo por nos apresentar uma incongruência entre, digamos, uma norma (aprumo policial) e sua violação dramática pelos próprios agentes policiais. A incongruência é que nos faz rir, mas dentro disso há todo um conjunto de razões que me parece um comentário mais geral sobre nós próprios. Uma vez que a polícia é nossa (é curioso que o Savana não escreve “a nossa polícia…”), o que ela faz (mal ou bem) documenta o que nós somos. É muito característico de sociedades com falta de auto-estima achar muito divertida a confirmação de que o que é nosso é mesmo mau. A segunda coisa é que o humor tem consequências que vão para além da risada que ele suscita. Se a prontidão é garantida por uma força policial de bêbados, então devemos ficar preocupados.

Aqui levanta-se um problema até de cunho filosófico que torna a questão da liberdade de expressão extremamente bicuda. Na tradição liberal vem de John Stuart Mill a melhor defesa da liberdade de expressão, mas mesmo em Mill há questões pouco claras. No seu tratado sobre a liberdade (On Liberty de 1859) Mill defende o princípio segundo o qual a única justificação para o exercício de poder sobre uma pessoa seria com o fim de impedir danos a outrem acrescentando que isso implica liberdade absoluta de pensamento e expressão em relação a todos os assuntos. Este é o famoso “harm principle”. No mesmo fôlego, porém, Mill fala da instigação ao dano quando diz que a liberdade de expressão não seria extensiva a quem chama de ladrões ou responsáveis pela fome do povo aos vendedores de cereais no meio duma multidão enfurecida. Há ainda muita discussão em torno deste assunto nos meios filosóficos correspondentes, mas o que me parece claro é que Mill, por exemplo, usa o critério usado pelo juiz que julgou o caso Castel Branco e Fernando Banze, nomeadamente o do contexto político difícil, para chegar a uma conclusão diferente quanto aos limites da liberdade de expressão.

Pessoalmente, embora esteja a meter-me em águas profundas, acho que essa sentença foi mais forte na rejeição da acusação com base nos aspectos formais (a falta de cuidado da acusação em indicar de que maneira os crimes de injúria, difmação e calúnia aconteceram no artigo em questão) do que na substância, pois a promoção do insulto, enxolhavo e vilipêndio – para usar as próprias palavras do juiz – parece-me independente da avaliação que um juiz faz do momento certo para figuras públicas serem alvo de que tipo de críticas. Para Mill a questão da liberdade de expressão resolve-se ao nível do efeito que um pronunciamento procura ter sobre quem o recebe, uma distinção que reconheço ser ténue e juridicamente difícil de tratar.

De qualquer modo, eu pessoalmente sinto-me profundamente incomodado quando numa altura em que o país vive momentos de tensão política – que incluem confrontos entre forças de defesa e segurança e grupos armados ilegais – um órgão de informação faz uso da liberdade de expressão para ridicularizar aqueles que constitucionalmente têm o dever de garantir a nossa segurança. A questão não é apenas de que o opróbrio é merecido – todos nós sabemos que a actuação de agentes policiais deixa muito a desejar – mas também que se promove publicamente o julgamento do todo por uma parte – e na circunstância uma parte que se notabiliza negativamente – como se toda a polícia fosse assim e como se não fosse de interesse público promover maior confiança num órgão tão importante para a nossa segurança. Mas bem vistas as coisas quando se sabe que se trata da mesma publicação que em 2014 conferiu o prémio de figura do ano a quem colocou em questão o Estado servido por essa mesma polícia não surpreende que brinque com coisas sérias.


N.B. Vi as imagens num boletim informativo sobre Moçambique preparado e veiculado pelo investigador britânico Joseph Hanlon. Depois de destacar os aspectos negativos dos dados apresentados no Inquérito ao Orçamento Familiar do Instituto Nacional de Estatística ele reproduz essa página do Savana para “desanuviar” (on a lighter note…).

Sem comentários: