segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

Aliados da Arábia Saudita rompem com o Irão


EDITORIAL

De Riad a Teerão, sem passar por Damasco

O aumento da tensão no Médio Oriente vai minar os esforços diplomáticos na Síria e no Iémen.

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No fundo são dois países que lutam para ser a potência regional dominante ou, pelo menos, para evitar que o outro o consiga ser. Como se de dois jogadores de xadrez se tratasse, a Arábia Saudita e o Irão vão fazendo um jogo perigoso de luta pela supremacia regional, tendo como tabuleiro uma região fracturada por séculos de confronto entre sunitas e xiitas. E cada movimento, cada jogada, cada execução são feitos com uma frieza e um calculismo com o único intuito de perseguir esse fim e tentar, em nome da religião e da suposta luta contra o terrorismo, arregimentar aliados e conseguir benesses e cumplicidades em Washington e Moscovo. E pelo meio ainda se aproveita para desviar as atenções para os problemas domésticos.
Nesse jogo de poder, a Síria e o Iémen têm servido de palco bélico, onde a Arábia Saudita e o Irão apoiam lados opostos. E naturalmente que uma desavença com os contornos dramáticos actuais vem apenas hipotecar a possibilidade de se vir a encontrar uma solução pacífica e equilibrada na Síria e no Iémen com o beneplácito das duas maiores potenciais da região. E assim os radicais jihadistas do chamado Estado Islâmico vão continuar a aproveitar o vazio de poder para plantar e exportar o terror.
A relação entre Riad e Teerão nas últimas décadas tem sido fértil em altos e baixos. A Reuters recordava o facto de as relações terem também chegado a um ponto de quase não retorno em 1987 quando 402 peregrinos, 275 dos quais iranianos, morreram durante confrontos na cidade de Meca. Ou a aproximação em 1999, quando o então Presidente Muhammad Khatami foi recebido na Arábia Saudita, interrompendo um clima de tensão que vinha desde a revolução islâmica de 1979, culminando com a assinatura de um pacto de segurança em 2001.
Nesta montanha-russa diplomática, as relações voltaram a azedar com o acordo nuclear que os EUA firmaram com Teerão e com o levantamento das sanções económicas que Riad diz que servirá para libertar fundos que o Irão canalizará para expandir a sua influência na região. Curiosamente, os últimos sinais de diplomacia entre Riad e Teerão até foram positivos, com representantes dos dois países a reunirem-se pela primeira vez em Dezembro em Viena para tentar servir de intermediários para um encontro entre a oposição síria e representantes de Bashar al-Assad. Ficou acordado um calendário de transição.
O Irão, tal como a Rússia, tem sido o principal aliado do Presidente sírio (membro da minoria alauita, uma seita xiita), enquanto a Arábia Saudita tem apoiado grupos rebeldes que combatem Assad. Mas só o facto de Riad ter começado a escolher alguns representantes dos rebeldes e das milícias que poderiam participar num hipotético diálogo diplomático foi visto por Teerão como uma traição, já que, ao escolherem os interlocutores, os sauditas estariam já a acautelar e a transferir a sua influência para a Síria do pós-guerra. Enquanto isso, os sírios, há cinco anos em guerra, olham para o dito calendário e desesperam.

Depois de cortar laços diplomáticos com o Irão, sauditas anunciam o fim das relações comerciais e dos voos. Líder do Hezbollah descreve execução do xeque Nimr como “uma mensagem de sangue”.



Quando o rei Salman tomou posse, há um ano, o analista saudita Aimen Dean escreveu que a Arábia Saudita iria “assumir uma posição mais combativa em relação ao Irão e aos seus aliados”. A 26 de Março, enquanto o ministro dos Negócios Estrangeiros iraniano, Mohammad Zarif, estava na Suíça a discutir o acordo sobre o programa nuclear iraniano – assinado a 14 de Junho –, aviões sauditas começavam a largar bombas sobre os rebeldes houthis, tribo iemenita de confissão xiita, que Riad acusa Teerão de financiar e controlar.
Apesar das previsões de Dean e de outros analistas, a execução, no sábado, doxeque Nimr, um líder religioso da minoria xiita saudita, apanhou muitos desprevenidos. O mesmo aconteceu com a decisão saudita, domingo, de suspender os laços diplomáticos com o Irão, justificada pelo ataque à embaixada de Riad em Teerão num protesto pela execução de Nimr.
No mesmo dia em que executavam Nimr, os sauditas declararam o fim unilateral do cessar-fogo em vigor no Iémen desde 15 de Dezembro.
“Isto é uma escalada que vai lançar o caos na região”, comentou à Al-Jazira o analista libanês Joseph Kechichian.
Sudão e Bahrein juntaram-se entretanto aos sauditas e anunciaram o corte de relações com o Irão, enquanto os Emirados Árabes Unidos chamaram o seu embaixador em Teerão. Do outro lado, o Governo iraquiano enfrenta pressões para encerrar a embaixada de Riad em Bagdad, reaberta apenas em Dezembro, 25 anos depois de iraquianos e sauditas terem cortado relações, quando Saddam Hussein invadiu o Kuwait.
Manifestações diante de representações sauditas repetiram-se um pouco por todo o lado onde há grandes comunidades xiitas: de novo no Irão, onde se queimaram bandeiras dos Estados Unidos e de Israel; no Bahrein (onde a maioria xiita é governada por uma família sunita e os protestos foram fortemente reprimidos); no Iraque (único país árabe com um Governo xiita), onde a embaixada foi atingida por um rocket.
Duas mesquitas sunitas no Iraque foram alvo de atentados que fizeram uma vítima mortal e o responsável pelo chamamento para as orações de uma terceira mesquita foi também morto, com Bagdad a acusar “infiltrados” de quererem “reavivar a violência entre xiitas e sunitas” que devastou o país entre 2006 e 2010.
Houve ainda protestos no Líbano, Turquia, Paquistão e na Caxemira indiana, assim como em Qatif, a região do xeque Nimr, onde os seus familiares apelaram à calma.
Em Teerão, os manifestantes também gritaram contra o seu próprio Governo, por terem sido os sauditas, e não os iranianos, a romper os laços diplomáticos.
Os políticos iranianos têm-se mantido controlados nas suas declarações, ao contrário do verdadeiro líder do país, o ayatollah Ali Khamenei, que descreveu Nimr como “um mártir oprimido” e antecipou que “uma vingança divina vai abater-se sobre os políticos sauditas”. No Líbano, o líder do grupo xiita Hezbollah, apoiado por Teerão, afirmou que a morte do xeque saudita é “uma mensagem de sangue”. Os “Saud [nome da família real] querem um conflito sunita-xiita, foram eles que o iniciaram e estão a provocá-lo em todo o lado”, acusa Hassan Nasrallah.
Entretanto, a monarquia saudita fez saber que a suspensão das relações não se fica pela expulsão dos diplomatas: Riad vai cortar todas as relações comerciais e o tráfego aéreo entre os dois países e proibiu os seus cidadãos de viajarem para o Irão. De Teerão já saíram 80 sauditas, diplomatas e seus familiares.
Petróleo e sanções

A luta de poder pela hegemonia regional entre o reino dos santuários do islão, Meca e Medina, e o grande país persa e xiita, é antiga e ambos a travam como se disso dependesse a perpetuidade dos seus próprios regimes autoritários. Teerão, aliás, acusou o rei Salman de executar Nimr, um dos 47 condenados à morte executados no sábado, e cortar os laços com o seu país para distrair os sauditas da situação económica. Em 2014, o lucro obtido com o petróleo diminuiu 23% no país.

“O Irão compromete-se a providenciar segurança diplomática como indicam as convenções internacionais. Mas a Arábia Saudita, que se alimenta de tensões, usou este incidente [o ataque à embaixada] para as aumentar”, afirmou o porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Hossein Jaberi Ansari.
As divisões entre as duas principais seitas do islão, sunitas e xiitas, não têm parado de crescer no Médio Oriente desde a invasão do Iraque, em 2003. Acoligação de nações sunitas que Riad formou para combater os rebeldes iemenitas aumentou ainda mais as tensões – e fez crescer o sectarismo no Iémen, onde nunca tinha havido grandes distinções religiosas.
Alguns analistas acreditam que a atitude saudita tem por objectivo antecipar o levantamento das sanções internacionais, que acontecerá em breve e permitirá ao Irão voltar a exportar petróleo para vários países ocidentais, recuperando assim a sua economia e regressando ao estatuto de potência regional que sempre reclamou. O ideal, para Riad, seria provocar Teerão a fazer algo que pusesse em causa o acordo sobre o seu programa nuclear.
Mesmo descrevendo o ataque à embaixada saudita como “deplorável”, o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, considerou “o anúncio do corte de relações com Teerão extremamente preocupante”.
Para além do Iémen, o processo de paz na Síria será com grande probabilidade outra baixa desta escalada regional. Riad e Teerão tinham-se finalmente sentado à mesma mesa a debater a crise síria em Dezembro e deveriam participar nas negociações entre o regime e a oposição com início previsto para 25 de Janeiro. Washington, Berlim, Londres e Paris têm repetido os apelos à calma, mas não se antecipam passos nesse sentido em breve: a pedido de Riad, terça-feira vai realizar-se uma reunião da Liga Árabe sobre “as ingerências do Irão nos assuntos árabes”.

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