B1 - MOÇAMBIQUE POR DETRÁS DAS GRADES, ANTES E DEPOIS DA INDEPENDÊNCIA. Entrevista com o Capitão dos GEP Luis Fernandes.
"A verdade é inconvertível;
a malícia pode atacá-la,
a ignorância pode zombar dela,
mas no fim, lá está ela...".
Winston Churchill
No curso do processo de descolonização português o Movimento das Forças Armadas (MFA) ‑ constituído em sua grande maioria por capitães que planejaram e executaram o golpe que derrubaria o regime então liderado por Marcelo Caetano, em Abril de 1974 ‑, instrumentalizado posteriormente à feição de verdadeira nomenklatura, promoveu nas terras ultramarinas de então ao desbaratamento do que se opusesse à entrega dos referidos territórios a grupos de guerrilha que gravitavam na órbita da antiga União Soviética.
Em Moçambique o MFA, para alcançar este desiderato, perseguiu, prendeu e entregou outros militares portugueses às forças da Frelimo, o movimento de guerrilha a quem se outorgaria a condução dos destinos daquele país. Estes prisioneiros portugueses foram depois recambiados para campos de concentração sob o controle da Frelimo, e ali submetidos a todo o tipo de maus tratos, nomeadamente a trabalhos forçados.
A entrevista que aqui se publica foi por mim conduzida e rememora as agruras de um oficial português, capitão GEP Luis Fernandes, que foi entregue por camaradas de farda, pertencentes ao MFA, nas mãos de carcereiros da Frelimo, tendo passado dois anos como prisioneiro em campos de concentração moçambicanos.
Por Carlos Didier (Delegação Lisboa / Portugal, de "O Século de Joanesburgo", 19/04/1976).
Andava eu, algures, por terras do Algarve, cumprindo o meu roteiro profissional, quando por felicidade inesperada encontrei um velho Amigo e Camarada – o termo é militar – que supunha irremediavelmente perdido pelas latitudes tropicais de Moçambique, nos campos de concentração da Frelimo, malgrado as afirmações peremptórias do ministro Vitor Crespo , a 7 de Dezembro do ano de 1975, negando a existência de prisioneiros portugueses em Moçambique.
Recordo-me da última vez que nos abraçámos. Foi no Hospital Militar de Lourenço Marques, onde, em circunstâncias diferentes nos encontrávamos. Eu com baixa e ele de consulta, mas cercado por antigos companheiros de armas como se de um criminoso se tratasse.
Luís Fernandes, capitão miliciano dos GEP, era uma das muitas vítimas imoladas no holocausto da descolonização. Mas deixemos que seja o próprio Luís Fernandes a fazer-nos o relato.
DETIDO COM APARATO EM LOURENÇO MARQUES
Carlos Didier – Quando e onde se deu a detenção que se prolongou num cativeiro de 16 meses?
Cap. Luís Fernandes – Foi em Lourenço Marques e no Hotel Polana, em 18 de Outubro de 1974. A detenção foi efectuada por dois capitães do Exército Português, que se encontravam acompanhados por cerca de quinze miltares da Polícia Militar (P.M.).
Carlos Didier – Perante tamanho aparato militar a surpresa decerto não foi pequena, até porque, aparentemente, nada justificava a referida actuação por parte das Forças Armadas…
Cap. Luís Fernandes – Exactamente, eu estava hospedado no Hotel Polana, sem problemas de ordem jurídica, porquanto pagava as minhas contas e não provocava desacatos, pelo que não havia alguma razão que motivasse qualquer medida a tomar pelas autoridades civis ou militares da Província de Moçambique.
Carlos Didier – Quais foram os motivos alegados para a detenção que obrigou à mobilização espalhafatosa de mais de uma dezena de militares?
Cap. Luís Fernandes – Os motivos não foram de ordem jurídica mas do que se pode considerar de ordem revolucionária. Foram fundamentados em suspeitas que se afirmavam existir a meu respeito, quanto a supostos “crimes” contra a descolonização, o que constitui matéria não prevista no Código Penal Português em vigor, nem em qualquer diploma existente naquela altura. Carlos Didier – Portanto, não houve acusação de um delito concreto… Cap. Luís Fernandes – Não havia qualquer acusação concreta. Havia, sim e apenas, o termo genérico de “crimes contra a descolonização” que era uma matéria que justificava ou pretendia justificar todas as prisões arbitrárias que se sucederam a partir da minha detenção em Lourenço Marques, e foram em crescendo até ao período da entrega total da Província de Moçambique à Frelimo, por altura da independência. DESERTORES E GUERRILHEIROS – “AS NOSSAS TROPAS”Carlos Didier – Verificada a detenção foi-lhe facultada a assistência de um advogado, ou terão decorrido os interrogatórios sem a satisfação dessa norma elementar? Cap. Luís Fernandes – Fui preso, como anteriormente afirmei, por indivíduos trajando civilmente, mas identificados como elementos da Polícia Militar Portuguesa e oficiais do Exército, nomeadamente dois capitães. Estes transportaram-me para o Quartel-General do Comando Territorial do Sul, onde cheguei às 4 horas da madrugada do dia da minha detenção, tendo seguido escoltado pela P.M. para uma sala que era, se não erro, a 2.ª Repartição. Nessa sala aguardava-me um representante da Frelimo, recém-instalada em Lourenço Marques, que não era nada menos que um desertor da Força Aérea Portuguesa, concretamente, Jacinto Veloso, ex-tenente da F.A.P., que anos antes, em Março de 1963, se tinha passado para Dar-es-Salaam a bordo de um bombardeiro "T/6" que entregou ao inimigo, estando assim dentro do estabelecido pelo Código de Justiça Militar para os casos de pena de morte. Concluindo, não me foi permitido um advogado e como inquiridor nomearam um desertor das Forças Armadas Portuguesas.
Carlos Didier – Quer dizer então que foi interrogado por Jacinto Veloso?
Cap. Luís Fernandes – Não. Aquele desertor pretendeu de facto interrogar-me, mas como recusou identificar-se, quando por mim instado, também me neguei ao diálogo por ele proposto. Fiquei assim a aguardar interrogatório posterior entre dois guerrilheiros uniformizados da Frelimo, e de resto mal uniformizados, os quais me apontavam ameaçadoramente as suas espingardas "kalashs".
Ante atitude tão insólita, porque era um antigo combatente português, preso por oficiais portugueses e pela Polícia Militar do meu país, perguntei a um dos capitães que interveio na minha detenção – capitão Camilo – se não havia ninguém mais, para além dos guerrilheiros da Frelimo, para me guardar, ao que me respondeu, ironicamente, dizendo eu estar a leste do Acordo de Lusaka, porque naquele momento os guerrilheiros eram “as nossas tropas”. Não haja espanto, porque as “ironias” do capitão Camilo não ficaram por aqui, antes se salientaram quando, no primeiro interrogatório, não obtendo o que pretendia, como afirmações susceptíveis de comprometer determinadas individualidades civis e militares, me ameaçou com a entrega à Frelimo que poderia ocasionar uma atitude mais colaborante da minha parte.
Perante a minha indignação – que se expressou do seguinte modo: será você capaz de entregar à Frelimo antigos camaradas de guerra? – respondeu o capitão Camilo que, naquele momento, o inimigo era eu. ROTEIRO DO PRISIONEIRO Carlos Didier – Foi sujeito ao longo dos interrogatórios levados a cabo pelo capitão Camilo (clique no nome veja a foto do citado militar do MFA) a uma persuasão agressiva, com ameaças físicas? Cap. Luís Fernandes – Ele não me ameaçou propriamente com maus tratos físicos, mas deixou entender, para quem não fosse desprovido de imaginação que o tratamento dado pela Frelimo não seria o previsto na Declaração Universal dos Direitos do Homem. Carlos Didier – Relate-nos, cronologicamente, o seu primeiro roteiro como prisioneiro. Cap. Luís Fernandes – Fui detido às 3 horas da madrugada de 18 de Outubro de 1974 e no próprio dia transferido para a cadeia da Machava onde me mantiveram no mais absoluto segredo durante quatro dias. Ao cabo de dois ou três interrogatórios ao estilo daquele que já citei, fui conservado em regime de menor vigilância dentro dessa prisão, tendo em seguida sido transferido, com outros companheiros entretanto presos, para a Penitenciária de Lourenço Marques.
Mas, deixe-me referir, no que respeita às atitudes dos inquiridores durante o processo instrutório que o tal capitão Camilo reconheceu não haver contra mim qualquer prova de ordem jurídica mas, acrescentou, que no período revolucionário as provas jurídicas tinham importância relativa e se era verdade que a meu respeito não tinham provas, também não tinham dúvidas. Isto significava, nos termos do “revolucionário” Camilo que podiam fazer de mim o que desejassem e achassem mais útil. E fizeram!
Carlos Didier – Portanto, situa-se este relato que faz em período anterior à independência de Moçambique… Cap. Luís Fernandes – Precisamente. Todo o relato que acabo de fazer situa-se no período do chamado Governo de Transição, em que a autoridade era exercida em nome do Presidente da República por um Alto-Comissário que representava a Soberania de Portugal em Moçambique, na medida em que era a Bandeira Verde-Rubra que lá se içava legal e legitimamente. Carlos Didier – Quando foi entregue à Frelimo e como se verificou a transferência dos prisioneiros portugueses sob a alçada da responsabilidade do Alto-Comissário para os carcereiros de Machel? Cap. Luís Fernandes – Houve vagas sucessivas, seguidas de dois em dois dias, em que alguns elementos escolhidos, não sei com que critério, mas habitualmente antigos militares passados à disponibilidade em alturas muito recentes foram transferidos das autoridades portuguesas do Comando Territorial do Sul, em Lourenço Marques, para as pseudoautoridades da Frelimo. Muitos foram enviados para Porto Amélia e dali para as chamadas “zonas libertadas”, no interior do Distrito de Cabo Delgado. Carlos Didier – A vossa ida para os campos de concentração existentes nas “zonas libertadas” efectuou-se antes ou depois do 25 de Junho de 1975? Cap. Luís Fernandes – Fomos enviados para os campos de concentração como prisioneiros da Frelimo cerca de três meses antes da data da independência de Moçambique, ou seja, em plena vigência da autoridade do Alto-Comissário. Em plena vigência da autoridade do hoje general Melo Egídio, então Comandante do Comando Territorial do Sul, a quem os presos estavam confiados e, portanto, esta transferência nunca se poderia ter dado sem o consentimento do Alto-Comissário da República Portuguesa, Vítor Crespo. AVIÃO DA FORÇA AÉREA PORTUGUESA TRANSPORTOU PRISIONEIROS DE MUEDA PARA A TANZÂNIA Carlos Didier – Para que “campos de recuperação” foram posteriormente conduzidos? Cap. Luís Fernandes – Antes de sermos enviados para os chamados “campos de reeducação” da Frelimo, transferiram-nos para Mueda, onde em bloco fomos submetidos a julgamento popular, que teve por consequência a nossa condenação à morte sob as acusações mais diversas e caricatas, tendo a referida pena sido substituída, ulteriormente, por trabalhos forçados indefinidos.
O grupo de prisioneiros era então constituído por portugueses originários da Metrópole e alguns elementos oriundos da Província de Moçambique, dos quais citarei a dr.ª Joana Simião, Pedro Mondlane e outros dirigentes indígenas que haviam desertado das fileiras da Frelimo e recolhido às autoridades portuguesas para se reintegrarem na Comunidade Lusíada, e depois por estas entregues aos apaniguados de Samora Machel. Lembro-me de alguns nomes destes últimos: dr. Júlio Razão e o eng. Paulo Marquesa.
Após o julgamento popular foram os portugueses originários da Metrópole dispersos por diversas bases que serviam de campos de concentração, nomeadamente a Base Beira, próximo de Nangade e de Omar, a Base Moçambique. A também conhecida por Base Central, localizada relativamente perto de Nangololo, a Base Gungunhana e outras cujo indicativo não recordo.
Quanto ao grupo formado por elementos naturais da Província Portuguesa de Moçambique, foi-lhes dado como destino o Campo de Nashingwea, no território da Tanzânia, sendo para ali transportados em avião militar português, Nord Atlas da Força Aérea Portuguesa, que rumou da pista de Mueda para Dar-es-Salam. PRISIONEIROS ABANDONADOS PELAS AUTORIDADES PORTUGUESAS Carlos Didier – Qual o número de portugueses seus companheiros de cativeiro nos campos de concentração de Cabo Delgado? Cap. Luís Fernandes – Dos presos pelas autoridades militares de Lourenço Marques, éramos sete. Mas, para além de nós, havia nas prisões e campos de concentração da Frelimo muitos ex-militares portugueses, principalmente elementos de tropas especiais, directamente detidos por guerrilheiros ainda no período em que a única soberania que se exercia oficialmente em Moçambique era a de Portugal, sem que isso obstasse o total abandono a que nos votaram na altura da independência em circunstâncias deploráveis, que facilmente se imaginam. Acho que não serão necessários grandes raciocínios para classificar esta situação como escandalosa, pois que para além dos aspectos humano, político e patriótico que encerra, denuncia uma aberração jurídica que, por si só, define uma capitulação total de uma autoridade que se recusava a existir por abdicar dos seus direitos e deveres para com os cidadãos que representava. Carlos Didier – Punham-vos ao corrente das “démarches” que entretanto se promoviam com vista à vossa libertação? Cap. Luís Fernandes – De modo algum. Para que faça uma ideia da nossa existência, peço-lhe que recorde as imagens do filme “O Planeta dos Macacos” e dimensione a nossa vivência à dos extraterrestres desvinculados de qualquer rumor da civilização. Para além de tudo o mais, tínhamos os responsáveis da Frelimo pela nossa vigilância que gaguejavam, e muito mal, o português, sendo carcereiros cuja missão era a de nos dificultar a todo o momento a vida e não segredar-nos palavras de esperança. TRABALHOS FORÇADOS SEM OBJECTIVOS DE RENTABILIDADE – EVACUAÇÃO DE TÁXI AÉREO Carlos Didier – Pode concretizar o tipo de regime a que vos sujeitavam os homens da Frelimo? Cap. Luís Fernandes – Éramos sujeitos a um regime de trabalhos forçados da mais diversa ordem, principalmente no domínio agrícola. É evidente, mesmo para quem desconheça as realidades locais, que o estilo de produção é do mais primitivo possível, sendo o trabalho totalmente manual, de resto de pouca rentabilidade económica, até porque os trabalhos a que nos sujeitavam eram destinados mais a tornar-nos a vida insuportável do que a visar objectivos rentáveis. Carlos Didier – Quando se verificou o vosso regresso a Lisboa? Cap. Luís Fernandes – O nosso regresso realizou-se após a deslocação do Secretário de Estado do Ministério dos Negócios Estrangeiros a Lourenço Marques. Fomos então de Porto Amélia para a Beira, onde embarcámos com destino a Lisboa, escalando em Luanda. UM POLÍCIA ESQUECIDO EM PORTO AMÉLIA Carlos Didier – Havia ainda em Porto Amélia (Pemba) algum elemento da Polícia de Segurança Pública (P.S.P.) portuguesa? Cap. Luís Fernandes – Não. O único polícia português que lá se encontrava e encontra ainda, era um agente de origem europeia e natural de Portugal, detido pela Frelimo e por esta muito mal tratado. Convém salientar que o referido agente foi abandonado por camaradas seus da P.S.P., que regressaram a Portugal findo o contrato com o governo de Moçambique, em Dezembro do ano passado, sem exigirem o seu repatriamento. Carlos Didier – Já não era, portanto, aquando da vossa libertação, embaixador de Portugal em Moçambique, o dr. Albertino de Almeida? Cap. Luís Fernandes – Não. Albertino de Almeida que não é, aliás diplomata de carreira mas apenas um advogado, já não se encontrava à frente da Embaixada de Portugal em Moçambique. De resto, considero oportuno referir que o advogado Albertino de Almeida sempre foi um elemento da confiança do Partido Comunista Português, tendo sido em Angola colaborador directo de Lopo do Nascimento, do M.P.L.A. e talvez por isso se compreenda que quando embaixador de Portugal em Moçambique jamais tivesse tomado uma atitude a favor dos prisioneiros portugueses, como ainda impediu os funcionários consulares de promoverem qualquer diligência no sentido de melhorar a situação dos cidadãos portugueses encarcerados pelo SNASP, que são em número superior a três centenas, não obstante as declarações em contrário proferidas pelo ministro Vítor Crespo. O FURRIEL MOTA DOS COMANDOS AINDA PRESO EM MOÇAMBIQUE Carlos Didier – Quando do regresso a Lisboa foram alvo de interesse por parte da Imprensa portuguesa? Cap. Luís Fernandes – A nossa chegada quase passou despercebida, não tendo havido por parte da Imprensa portuguesa qualquer interesse em saber o que tínhamos passado e o que sucedia ainda aos muitos portugueses detidos em Moçambique, sujeitos a um regime de desgaste físico e psíquico que os visa aniquilar. Carlos Didier – Colocamos o nosso espaço ao seu dispor para o caso de pretender referir qualquer assunto que não tenha sido abordado ao longo deste diálogo. Cap. Luís Fernandes – Gostaria de frisar que há ainda em Moçambique muitos cidadãos portugueses detidos depois da independência daquele território. Há também um caso escandaloso que é o do furriel Mota, dos Comandos, preso pela Frelimo pouco depois da passagem à disponibilidade, antes da independência de Moçambique, portanto ainda sob a soberania portuguesa, o qual se encontra ainda num campo de concentração, ao que suponho algures em Cabo Delgado. Urge que as autoridades diplomáticas e governamentais do nosso País actuem rapidamente, com firmeza e energia, no sentido de serem libertados todos os nossos compatriotas. Entrevista publicada no semanário "O Século de Joanesburgo", na sua edição de 19/04/1976, na pág. 15 e chamada em primeira página. Por Carlos Didier, da Delegação de Lisboa / Portugal.
Notas de Carlos Didier:
(1) - Sobre a figura controvertida de Carlos Manuel Costa Lopes Camilo, capitão de infantaria quando dos fatos narrados na entrevista acima transcrita, nascido em 1944 e falecido em 29 de Dezembro de 2008, em Lisboa, há a consignar os seguintes dados para informação do leitor destas linhas:
Desde as primeiras reuniões em Évora, em 1973, Lopes Camilo engajou-se no movimento dos capitães que viria a ensejar o golpe de estado de Abril de 1974, que derrubaria o regime político português, então sob a liderança de Marcelo Caetano.
Logo depois de Abril de 1974 seguiu para Lourenço Marques. Em Moçambique Lopes Camilo integrou a chamada linha dura do MFA com os seguintes militares portugueses: majores Mário Tomé e Silva Barbosa e capitães Aniceto Afonso e Cuco Rosa.
A atuação em Moçambique do capitão Lopes Camilo foi alvo de acusações de perfídia e alta traição por parte de outros militares portugueses que, por ele presos ao colocarem-se em quadrante ideológico de oposição ao MFA, foram entregues às forças da Frelimo, movimento de guerrilha que até então lutara contra a presença e a soberania portuguesas naquele território africano. A Frelimo os transferiu para campos de concentração sob seu controle, onde os manteve em regime de trabalhos forçados. Estes militares - os que conseguiram ser libertados, pois houve quem sucumbisse nas mãos dos carcereiros -, viriam a ser repatriados para Portugal depois de quase dois anos de cativeiro em Moçambique.
O papel exercido por integrantes do MFA como Lopes Camilo, sobretudo no tocante ao processo de descolonização dos antigos territórios ultramarinos, é assim descrito por outro que também pertenceu àquelas fileiras político-militares, Manuel Monge, major quando da eclosão do movimento de capitães que chegaria ao posto de general: "A descolonização de facto foi feita na defesa dos interesses políticos e estratégicos da União Soviética, dos seus aliados e dos seus movimentos no terreno. Foi contra os interesses permanentes de Portugal, dos portugueses residentes em territórios sob a nossa administração e contra os interesses das suas populações (...)".
Lopes Camilo , anos mais tarde, em Lisboa, como major-general, viria a ocupar o cargo de vice-presidente da Liga dos Combatentes, e ali permaneceu imposto e mantido pela nomenclatura militar, não obstante os inúmeros, clamorosos e legítimos protestos de quem o considerava indigno de representar os antigos combatentes portugueses, diante dos antecedentes já ventilados.
E é no ostentoso exercício desse cargo que Lopes Camilo aparece na fotografia abaixo ao jeito Brejnev, de peitilho grotescamente numismático, recebendo, em 2008, os representantes da Associação dos Combatentes da Luta de Libertação Nacional de Moçambique, por ocasião das comemorações do 85º aniversário da Liga dos Combatentes de Portugal, poucos meses antes de falecer. Acresce referir que às medalhas exibidas por Lopes Camilo, com espalhafato nesta fotografia, se somaria mais uma concedida a título póstumo, em Dezembro de 2009: a Grã Cruz de Mérito Militar.
É de lembrar, por último, que a Lopes Camilo, na qualidade de vice-presidente da Liga dos Combatentes, competia tratar das questões relativas aos militares portugueses sepultados nos territórios das várias frentes da guerra no Ultramar. Morreu sem isso fazer, pois a situação de total e vergonhoso abandono dos cemitérios e campas daqueles militares arrasta-se sem solução até aos dias atuais. De resto, não seria de esperar que Camilo se desincumbisse do encargo face à sua conduta pregressa. E, a exemplo dele, parece não haver quem recupere Portugal das cafuas da indignidade em que mergulhou. A isso parece estar definitivamente fadado, passados que são quase 40 (quarenta) anos de contumaz descumprimento das suas obrigações de contrapartida de Estado, para com aqueles cidadãos que empunharam armas e sacrificaram suas vidas, por imposição do poder político então prevalecente na nação portuguesa, para defesa da integridade territorial do país, de 1960 a 1974. E esta constatação se, por um lado, desperta repulsa e indignação, por outro empareda o ânimo da cidadania portuguesa no aviltamento acabrunhante de um pertencimento pátrio sem lastro.
Fotografia in http://www.adfa-portugal.com/pdf/0109/16.pdf
Outras fontes sobre Lopes Camilo:
www.exercito.pt/sites/JE/Publicacoes/Documents/JE590DEZ09.pdf
(2) - O Movimento Cívico dos Antigos Combatentes vem denunciando, desde de 2008, que os cemitérios e as campas dos militares portugueses tombados na guerra do Ultramar e sepultados na Guiné, em Angola e Moçambique "são alvo de práticas de magia negra e outro tipo de abusos. (...) Em cima de um cemitério, na Guiné, foram construídas casas e num outro, em Angola, realizam-se sessões de magia negra. Há campas que estão a ser vandalizadas, retirando ossadas de militares portugueses para venderem como troféus na feira. É algo inacreditavel", afirmou José Nascimento Rodrigues ao Diário de Notícias - DN de Lisboa.
Sobre este tema informe-se mais em:
(3) - Assista a outros vídeos sobre o descaso do Estado Português para com os seus ex-combatentes da Guerra do Ultramar em Boca NoTrombone, lista de reprodução do canal YouTube CarlosAlbertoDidier, assim como à seguinte série de reportagens que retratam esta realidade de menoscabo para com os veteranos que serviram nas forças armadas portuguesas, de 1960 a 1975:(3.01) -"Ex-combatentes portugueses esquecidos pela Pátria" (chamada) (aqui).(3.02) -"Ex-combatentes portugueses esquecidos pela Pátria" (reportagem completa) (aqui).
(4) - Não deixe de ler o documento abaixo anexado - "Descolonização e 25 de Abril de 1974" -, onde, em entrevista concedida à Deutsch Welle, órgão de radiodifusão alemã, em Abril de 2014, Otelo Saraiva de Carvalho revela a sua atuação e a do MFA nos palcos e nos bastidores da descolonização, na sequência do 25 de Abril de 1974.
(5) - Passados 40 anos, os ex-combatentes continuam a manifestar-se e a reclamar, em vão, pelo reconhecimento da sua dignidade cidadã e de seus direitos como veteranos que, com sacrifício de suas próprias vidas, prestaram inúmeros serviços à pátria portuguesa - que os usou para depois, quando não mais necessários, lhes virar as costas-, conforme notícia do periódico "Público", de Março/2014 (aqui). Parafraseie-se Winston Churchill e conclua-se o que houver por pertinente: "O caráter de uma Nação avalia-se pela forma como ela trata os seus veteranos".
(6) - É possível que na Web se encontre a transcrição desta entrevista, por mim feita a Luis Fernandes, com diferenças de redação. O que aqui publico é o texto da minha lavra. E digo isto porque, não raro, o então responsável pelo enquadramento editorial de "O Século de Joanesburgo" arremetia-se às hipérboles de estilo duvidoso para a seu gosto sombrear os textos por mim enviados com adjetivos que não fazem parte do meu cardápio vernacular. Evidentemente que tal era feito à minha revelia e mais de uma vez resultou em protesto por mim dirigido ao diretor da referida publicação, Duarte Barbosa. E assim foi até eu decidir não mais escrever nem representar aquele jornal em Portugal, a partir de Janeiro de 1980, em Delegação de correspondência e distribuição por mim criada em finais de 1975 (05/04/2012). |
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