domingo, 18 de outubro de 2015

Em greve de fome, uma pessoa pode resistir 50 a 75 dias, no máximo


“Os primeiros dias são os piores”, recorda Isabel do Carmo. O activista angolano, Luaty Beirão, cumpre este sábado o 27.º dia sem ingerir alimentos.
Lauty Beirão está em greve de fome, "o último recurso" DIOGO BAPTISTA
Quanto tempo pode resistir uma pessoa em greve de fome?  A resistência depende de uma série de factores, como o estado nutricional, mas em geral, e “tendo em conta o que está descrito em vários estudos, no máximo será possível aguentar entre 50 a 75 dias”, explica Davide Carvalho, endocrinologista e professor da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. “Os indivíduos magros começam logo a perder tecido muscular”, observa.
Sobreviver sem alimentos depende da reserva nutricional da pessoa, mas também da presença ou ausência de doenças associadas (diabetes, insuficiência renal, neoplasias) e da ingestão de líquidos, mesmo que em pequenas quantidades (“a morte por desidratação é muito mais rápida”).
As alterações mais graves devem-se à falta de potássio, magnésio e fosfato, mas o sódio é também extremamente importante porque mantém “a pressão arterial que permite a circulação do sangue e a chegada às células dos nutrientes provenientes da destruição do tecido adiposo e muscular”, explica o director do Serviço de Endocrinologia do Centro Hospitalar S. João (Porto).“A água e o sal são vitais para a manutenção da circulação”, frisa.
“Há um elemento de que não temos reservas no organismo que é fulcral: o potássio”, sublinha Isabel do Carmo, a médica especialista em endocrinologia e nutriçã que passou pela experiência de várias greves de fome, uma das quais se prolongou por 30 dias, em 1978. “Conseguimos ir buscar outros elementos, como o cálcio ou o ferro, às reservas do organismo, tal como acontece com a glicose, que o fígado é capaz de produzir sozinho a partir das gorduras”, mas o potássio não, justifica. 
Fundadora das Brigadas Revolucionárias e do PRP (Partido Revolucionário do Proletariado), a médica, que estava presa preventivamente em Custóias quando fez a prolongada greve de fome, lutava então pela publicação da lei da amnistia.”A greve de fome é o último recurso. É um sacrifício brutal e um risco muito grande”, enfatiza.
O organismo, sintetiza, começa por consumir a gordura que é transformada em glicose. “Mas, quando chega à fase de digerir músculos, é mais grave, pode atingir o músculo cardíaco, o miocárdio”. A certa altura, a pessoa pode começar a sofrer de arritmias..
Há uma coisa de que Isabel do Carmo está certa: “Os primeiros dias são os piores”. “O açúcar do sangue baixa. Mas o fígado vai fabricando açúcar. O organismo vai queimando os músculos para sobreviver. Come os músculos. Sinto os músculos a atrofiarem. A produzir açúcar desta maneira diferente, o organismo fabrica acetona. Cheiramos a acetona”, descreve, num texto que fez há alguns anos.
Passados os primeiros dias, o organismo adapta-se e há uma “inversão do metabolismo”. Mas a própria suspensão da greve de fome e a realimentação também levanta sérios problemas. Há o risco de as pessoas terem alterações metabólicas graves, quando se reinicia a alimentação, acentua Davide Carvalho, que destaca também o problema “ético” com que os médicos se confrontam neste tipo de situações. 
Recordando a Declaração de Malta, documento que foi adoptado pela Associação Médica Mundial, em que se defende que a alimentação forçada é inaceitável perante uma recusa informada e voluntária, nota que “em princípio o médico deve respeitar a vontade da pessoa e a alimentação forçada é eticamente inaceitável”.
Mas o médico deve perguntar à pessoa que decide privar-se de alimentos o que pretende fazer “antes dela perder a consciência e explicar-lhe o risco e a irreversibilidade da situação”, sublinha Davide Carvalho, ou perceber se deixou informações escritas. Seja como for, poderá intervir se o objectivo que motivou a greve de forme já tiver sido conseguido.
Em 2013, o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, num parecer sobre a alimentação compulsiva de reclusos em greve de fome, concluía que também que estes “mantêm o direito de recusar o tratamento médico, desde que se verifique que têm capacidade de decidir e que têm total consciência das consequências da recusa”.
Durante a greve de fome, Isabel do Carmo lembra-se assim da carta que o pai lhe escreveu e em que aludiu ao drama de Bobby Sands, que morreu aos 27 anos, depois de 66 dias em greve de fome. Em 1981, este activista do IRA entrou em greve de fome reclamando ser considerado preso político, com os direitos inerentes a esse estatuto, mas a primeira-ministra Margaret Thatcher não cedeu. “Ela [Thatcher] tem coração de ferro”, escreveu o pai de Isabel.


Luaty e a vergonha Angola-Portugal


1. Não sei como José Eduardo dos Santos dorme à noite. Não sei como Isabel dos Santos dorme à noite. Não sei como milhares de homens e mulheres de negócios dormem à noite. Não sei como o Governo português dorme à noite. E o PCP podia arranjar melhor companhia do que o governo português nesta matéria, a greve de fome de Luaty Beirão. Milhares de comunistas portugueses presos, torturados e mortos em nome da liberdade merecem muito mais.



Não sei como José Eduardo dos Santos dorme à noite. Não sei como Isabel dos Santos dorme à noite. Não sei como milhares de homens e mulheres de negócios dormem à noite. Não sei como o Governo português dorme ?à noite

2. Não há número que diga tanto sobre um país como a taxa de mortalidade infantil. Angola tem a pior taxa de mortalidade infantil do mundo: 167 crianças em 1000, o que quer dizer que uma em cada seis crianças angolanas morre antes dos cinco anos (Unicef). Quando a taxa de mortalidade infantil de um país é alta, isso é uma urgência. Mas quando ela é a mais alta do mundo num país dominado por uma oligarquia milionária isso é uma espécie de crime por negligência na forma continuada. E não faltam dados contundentes sobre ostatu quo em que essa espécie de crime acontece, por exemplo, o Índice de Desenvolvimento Humano da ONU (calculado a partir da esperança de vida, taxas de escolaridade e rendimento nacional bruto). No último relatório, que abrange 187 países, Angola está em 149.º lugar. Ou seja: em Angola, segundo maior produtor de petróleo da África subsariana, oficialmente uma democracia presidencialista com a qual Portugal tem estreitíssimos laços económicos, vive-se pior do que em quase todo o planeta, incluindo países em guerra, ditaduras, catástrofes. E a estes três números (mortalidade infantil, desenvolvimento humano, produção de petróleo) podemos acrescentar mais dois para completar a mão: o Presidente e líder do MPLA, José Eduardo dos Santos, está há 36 anos no poder; e a sua filha Isabel dos Santos é a mulher mais rica de África, com 3,2 mil milhões de dólares.

3. Foi neste país que, a 20 de Junho passado, a polícia do regime deteve sem mandato 15 jovens que estavam numa casa de Luanda a discutir a situação política. Tinham dois livros com eles, Da Ditadura à Democracia, de Gene Shar, e Ferramentas para Destruir o Ditador e Evitar Nova Ditadura — Filosofia política da libertação para Angola, do jornalista angolano Domingos da Cruz. Os 15, incluindo Domingos, foram acusados de preparar um golpe de Estado. Ao fim de quase quatro meses, continuam presos, sem culpa formada e sem julgamento. Vários fizeram greves de fome, um deles, Luaty Beirão, não desistiu. No dia em que escrevo, quinta-feira, 15 de Outubro, Luaty está sem comer há 25 dias. Terá perdido cerca de 20 quilos, não consegue beber água, foi posto a soro no hospital-prisão, tudo isto enquanto a polícia do regime reprimia vigílias de solidariedade e protesto. Luaty é um activista com experiência, foi preso logo a 7 de Março de 2011, dia-símbolo para o levantamento dos jovens angolanos inspirados pela Primavera Árabe. Entre 2011 e 2015, viu o regime desdobrar-se em raptos, espancamentos, tentativas de suborno, ameaças a familiares, perseguições políticas, tudo para tentar combater activistas. A posição de Luaty é clara: manter-se em greve enquanto os 15 estiverem presos, contra a lei, mesmo a lei de Angola. Visto que Angola, descontando censura, prisões arbitrárias, raptos, espancamentos, suborno, ameaças, perseguições e repressão, é oficialmente uma democracia. Os observadores internacionais nem têm achado prioritário observar as eleições angolanas. Como Luaty diz, na entrevista que o PÚBLICO transcreveu e disponibilizou em vídeo, primaram pela ausência.
STEPHANE DE SAKUTIN/AFP

4. Foi bom ter visto, esta quarta-feira, em Lisboa, centenas de pessoas que fizeram o contrário, estiveram lá, na vigília convocada pela Amnistia Internacional, com a cara de Luaty, e dos outros 14 (Osvaldo Caholo, Afonso Matias, Albano Bingobingo, Nelson Dibango, Sedrick de Carvalho, Domingos da Cruz, Inocêncio António de Brito, Arante Kivuvu, José Gomes Hata, Manuel Baptista Chivonde Nito Alves, Fernando Tomás, Nuno Álvaro Dala, Benedito Jeremias e Chiconda ‘Samussuku’). Bom ter visto lá angolanos como Rafael Marques de Morais, José Eduardo Agualusa, ou Kalaf, a cabo-verdiana Mayra Andrade, e tantas dezenas tão jovens ou muito mais do que aqueles que estão presos. Era uma pequena multidão com música, palavras e imagens. Mas não sei onde estavam, nem o que pensam, angolanos que estiveram tanto tempo presos pelo que pensaram e escreveram, como Luandino Vieira. Gostava de saber.

5. Enquanto Luaty, cidadão angolano e português, pode morrer a qualquer momento nestas circunstâncias, o Governo português tem, naturalmente, questões a debater, equacionar e mesmo ponderar, na sua relação com o Estado democrático de Angola, e portanto, até à hora de fecho desta crónica, que se saiba, fez exactamente zero. “Considera o Governo de Portugal a possibilidade de apresentar uma queixa junto do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas e de todas as demais instâncias internacionais competentes devido à violação de direitos humanos essenciais por parte do Estado angolano neste caso concreto afectando um cidadão português?”, foi a pergunta de Pedro Filipe Soares, deputado do Bloco de Esquerda. Através do ministro dos Negócios Estrangeiros, Rui Machete, a resposta do Governo português, até à hora de fecho desta crónica, era: “Nós estamos a acompanhar a situação do ponto de vista humanitário, visto tratar-se de uma matéria interna de Angola no que diz respeito ao problema da averiguação se existe ou não existe uma infracção de carácter penal, e nisso não nos imiscuímos.”

6. A declaração de Machete foi feita segunda-feira. Terça, o Bloco de Esquerda apresentou na Assembleia Municipal de Lisboa este voto: “1. Exprimir solidariedade a Luaty Beirão, sua família e amigos; 2. Exprimir solidariedade para com todas pessoas detidas no dia 20 de junho; 3. Recomendar a imediata libertação das pessoas detidas no dia 20 de junho; 4. Remeter este voto aos órgãos de soberania e aos grupos parlamentares representados na Assembleia da República; 5. Remeter este voto à Embaixada de Angola em Portugal.” Pois, o PCP votou contra. E não só votou contra, como resolveu contrapor um voto que diz assim: “Apelar às autoridades angolanas, no quadro do respeito da sua soberania e ordem jurídico-constitucional, a consideração da situação humanitária de Luaty Beirão.” Ricardo Robles, do Bloco, argumentou: “Não é uma situação de cariz humanitário. É uma questão política. Ele é um preso político e está em risco de vida. Um preso político é um preso político. Em Angola, na China, em Cuba, nos Estados Unidos, na Turquia ou na Palestina. É um preso político e devemos respeitá-lo, porque houve tantos presos políticos no Partido Comunista Português e tanto respeito que eles merecem.” Mas o efeito, no PCP, foi exactamente zero, em consonância com a posição do Governo PSD-CDS. Para um partido que tanto preza a coerência, que desonra à sua própria história, a milhares e milhares de comunistas que deram tudo pela liberdade.

7. Uma das coisas que Luaty diz no vídeo que o PÚBLICO pôs online esta semana é que um filho não é responsável pelo pai. Ele, Luaty Beirão, é filho de João Beirão (entretanto falecido), um próximo de José Eduardo dos Santos a ponto de ter dirigido a poderosa Fundação Eduardo dos Santos. Luaty tomou outro caminho; depois de estudar em França e Inglaterra, onde se tornou politicamente activo em manifestações e ocupações, fez uma viagem a pé de Lisboa a Luanda, com dois quilos de frutos secos e cem euros no bolso; conheceu parte de África, lentamente e sem rede; e de volta a casa manteve uma intervenção constante como rapper e activista. O extremo oposto do que aconteceu com a verdadeira filha do regime que é Isabel dos Santos, dez anos mais velha. Não só Isabel parece dormir bem com todos aqueles números sobre Angola, como a sua fortuna tem crescido inversamente às estatísticas dos miseráveis. E, como a Forbes detalhou numa investigação conjunta de Kerry A. Dolan, uma veterana da revista americana, e o incansável jornalista e activista angolano Rafael Marques de Morais, a presidência do pai favoreceu o império da filha. Isabel tem fama de trabalhar sete dias por semana para não deixar em mãos alheias o património conquistado, é um talentoso caso de estudo, alguém disse mesmo que Harvard devia estudar o talento dela. Também está bem posicionada em Portugal: Galp, BPI, NOS, BIC. Cada um faz da sua vida o que faz. O melhor que posso esperar é que esta noite Isabel dos Santos não durma assim tão bem e José Eduardo dos Santos menos ainda, e quando esta crónica sair Luaty esteja em liberdade, com todos.


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