Wednesday, May 6, 2015

"Vi coisas que não posso descrever. Partes de crianças, sangue por todo o lado"


A violência na Síria continua a matar em dimensões inimagináveis. A Amnistia Internacional tentou perceber como se vive e morre em Alepo, a maior cidade do país, onde o regime comete "crimes contra a humanidade".
Uma mãe e o seu filho choram a morte de familiares depois de um ataque com barris em Alepo, a 29 de Abril MAHMOUD HEBBO/REUTERS
Saleh Soufan tem 11 anos, mas sabe que o que o deixou sem perna e metade de um dedo foi um barril de explosivos, uma espécie de bomba improvisada que o regime sírio escolheu como arma de preferência em Alepo e que Saleh reconheceu por causa "do som que faz ao ser largada". A mãe de Saleh contou à Amnistia Internacional que o filho estava a brincar com os seus primos à entrada da carpintaria do pai, no bairro de Bab al-Neirub. Foi a 13 de Junho do ano passado.
"Estava com os meus quatro primos. Ouvi o som do helicóptero e todos sabíamos o que lá vinha", contou Saleh, explicando que se escondeu atrás de uma árvore. "Os meus primos correram na outra direcção e esconderam-se numa casa. Omar e Hamzeh morreram. O meu primo mais novo, que estava por baixo dos dois irmãos, sobreviveu. Eu fui levado para o Hospital Omar Bin Abdul Aziz. Viram a minha perna e mandaram-me para Kilis [Turquia]. Acabaram por me amputar [a perna], que estava cheia de estilhaços e metade do meu dedo. Agora estou bem. É só muito aborrecido não poder mexer-me e estar sempre em casa."
Segundo a mãe de Saleh, 15 casas e um grande armazém foram destruídos e morreu uma família inteira, os Fayyad. Omar tinha 11 anos, Hamzeh nove. Também morreram Maryam Ali Fayyad, de quatro anos, Kamel Attar, 12, entre outros civis – todas as vítimas deste ataque foram civis.
A 30 Abril de 2014, a escola Ain Jalut, de Alepo, organizou uma exposição dos trabalhos dos miúdos. Ao contrário do bairro de Saleh, e da maioria dos ataques descritos no relatório Death everywhere: War crimes and human rights abuses in Aleppo (Morte por todo o lado: Crimes de guerra e abusos dos direitos humanos em Alepo), divulgado esta terça-feira pela Amnistia Internacional, o que caiu na escola de Ain Jalut, no bairro de Ansari al-Sharqi, foram dois mísseis, ainda não eram 9h.
Esta escola já tinha sido atacada, em Agosto do ano anterior. Desta vez, alunos e professores de escolas na vizinhança estavam a chegar para a exposição de desenhos dos estudantes sobre as suas experiências do conflito. O primeiro míssil atingiu o 1.º andar da escola, entre as salas dos miúdos de seis e sete anos e as das crianças com oito e nove. O segundo míssil caiu no pátio, a 200 metros do edifício principal.
"Passámos mais de duas semanas a preparar o festival para as crianças. Cheguei entre as 7h30 e as 8h. Havia uns 60 estudantes e professores, mais 200 estavam para chegar", recorda Osama al-Findi, professor de Geografia de 23 anos. Osama estava na sala dos professores com um amigo, Muhammed Ibrahim, quando ouviu "o som da explosão" e depois "o caça a afastar-se a alta velocidade".
Impossível pensar
"Tinha tanto pó em cima de mim que não sabia se estava vivo ou morto. Começámos a entrar nas salas à procura de sobreviventes. A primeira pessoa que vi foi Muhammed Daqqaa, um professor, morto", descreve. "Depois fui até à parte da escola onde as crianças estavam a preparar os seus desenhos. Vi coisas que não posso descrever. Partes de crianças, sangue por todo o lado. Os corpos estavam despedaçados..."
A Amnistia Internacional falou com vários professores e administradores que estavam presentes e ainda com estudantes que sobreviveram ao ataque. Marwa, uma professora, chegou às 7h com os seus "alunos mais talentosos". "Estávamos a preparar tudo e outra professora estava a pendurar os desenhos nas paredes", diz Marwa, que não se lembra de ouvir o som da explosão. "O tecto caiu em cima de nós. Quando tentei mexer numa das minhas alunas, ela estava morta. Tinha um buraco na cabeça…"
Marwa ficou gravemente ferida: "Pulmões, cabeça, costelas, pernas partidas." Durante algum tempo não conseguia ver, mas agora está a recuperar a visão. "Foi um choque, não só por causa dos meus ferimentos, mas por causa dos meus alunos. Treinei cada um deles. É impossível pensar que não estão vivos."
Ibrahim Mandou, estudante de 12 anos, sobreviveu. "Todas as escolas da zona foram convidadas e os meus desenhos iam ser expostos. Estava sentado com o meu irmão mais novo, Ayham. Depois o caça veio e o meu irmão foi atingido no queixo e na cara." Ibrahim ainda tem "alguns estilhaços" dentro do corpo. "Ayham morreu a caminho da Turquia. Tinha 11 anos." Bayan Masri, igualmente de 11 anos, também ficou ferido. E também perdeu duas irmãs: Aya, de 12 anos, e Heba, de cinco. Morreram entre 21 e 35 civis, incluindo 19 crianças. Pelo menos 25 ficaram feridos, muitos perderam membros.
Mercados, mesquitas, hospitais, escolas
Uma das armas mais usadas pelo regime em Alepo são os barris (barris de petróleo, tanques de combustível, garrafas de gás) cheios de explosivos, combustível e fragmentos de metal (partes de maquinaria, rolamentos, pregos) para "aumentar o seu efeito letal". Segundo a Rede Síria dos Direitos Humanos, 12.194 pessoas foram mortas entre 2012 e Fevereiro de 2015 com recurso a estas bombas largadas de helicóptero, cita o relatório: 96% das vítimas eram civis.
Entre Janeiro de 2014 e Março de 2015, forças leais ao Governo de Bashar al-Assad usaram estas bombas ou "outros explosivos improvisados e imprecisos" em áreas civis, "incluindo pelo menos 14 mercados públicos, 12 estações de transportes e 23 mesquitas, para além de pelo menos 17 hospitais e centros médicos e três escolas".
A Amnistia Internacional entrevistou 78 pessoas que vivem ou viviam em Alepo na altura dos ataques investigados e 29 pessoas que ali trabalham, analisou muitas fotografias e vídeos e verificou os dados que ali encontrou com as entrevistas que conduziu.
Punição deliberada e sistemática
Era uma cidade que nunca dormia, tornou-se numa cidade onde os ataques podem chegar a qualquer momento e em qualquer lugar. "Atrocidades generalizadas, em particular o bombardeamento selvagem e contínuo dos bairros civis pelas forças governamentais, tornaram a vida em Alepo cada vez menos suportável", afirma Philip Luther, director do Programa para o Médio Oriente e o Norte de África da Amnistia Internacional.
Estes são ataques que não deixam dúvidas – são “deliberados” e “sistemáticos”, parte da “política de punição colectiva da população civil” usada pelo regime noutras zonas do país; são “crimes de guerra e crimes contra a humanidade”.
Alepo era o maior centro urbano da Síria, a sua capital económica. A sua Cidade Velha, hoje em ruínas, é Património da Humanidade para a UNESCO. Alepo era a cidade onde os sinos das igrejas se ouviam por entre as chamadas para as orações, onde os cristãos tinham um bairro de ruas estreitas derrubadas a golpe de tanque pelo regime.
Os protestos contra Bashar al-Assad demoraram a tomar conta de Alepo, mas as manifestações ganharam fôlego e dimensão em Junho de 2012. Em Agosto, grupos da oposição já controlavam a metade leste da cidade e esta está desde então dividida em duas. Em Setembro de 2013, o regime lançou uma grande ofensiva terrestre para recapturar Alepo, mas os combates continuam.
Coelhos e gatos
Há meses que as forças leais a Damasco se concentram em ataques nos subúrbios rurais a norte da cidade, tentando assumir o controlo da estrada que une a cidade à Turquia e, assim, cortar as linhas de reabastecimento da oposição. Como no resto do país, esta é hoje constituída por grupos de natureza distinta, 18 grupos armados, alguns são subfacções de outros, há rivalidades e outras vezes há cooperação.
Estes grupos também são acusados de atrocidades e de ataques que não salvaguardam a população, disparos que os habitantes descrevem como "aleatórios". "Nunca nos sentimos seguros, protegidos. Nunca", diz um habitante do bairro de Jamaliya. A Amnistia Internacional acusa estes grupos de "crimes de guerra" ao recorrerem a armas muito imprecisas, incluindorockets improvisados colocados no interior de latas de gás, naquilo que se convencionou chamar "canhões do inferno" – pelo menos 600 civis morreram em ataques em que estes foram usados.
Em Alepo viviam mais de dois milhões de pessoas. Sobram umas 400 mil, que deixaram de ter água ou electricidade, e médicos (há uns 60 actualmente na cidade), e a quem muitas vezes falta comida ou medicamentos. Nas zonas controladas pela oposição, os habitantes plantam os seus próprios vegetais e criam coelhos e gatos, que um residente descreve como a nova "fast food de Alepo".

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