Soaram dois disparos no início do dia. Um corpo tombou, de bruços e inerte aos olhos da multidão que rapidamente se aproximou. Telefones topo de gama registaram a imagem que célere correu pelas redes sociais. Mensagens de repúdio também não tardaram. As possíveis causas foram arroladas, mas uma sobressaiu sobre as demais e apontava para o coração de uma formação política. Falou-se de crime contra a liberdade de pensamento e de expressão. Houve, dias depois, uma marcha que só não continuou até ao local que se pretendia, depois do que estava previsto, porque a polícia cumpriu escrupulosamente a lei e não permitiu que o improviso tivesse lugar. Para não variar foi condenada de forma estridente nas redes sociais por ter respeitado aquilo que consagrou o malogrado. Este país sempre foi assim: marcha-se por tudo, mas alcança-se quase nada. Os madgermanes marcham há 'séculos' e não conseguem nada. Marchou-se pelos raptos, mas voltou-se a raptar poucos dias depois. A ideia com que se fica, depois que as marchas ocorrem, é que elas voltarão quando o próximo corpo ilustre tombar. É que elas, mais do que um espaço de reivindicação de direitos e garantias, são um lugar de busca pelo protagonismo. Um lugar onde muitos vão para ser vistos e poucos para lutar pela liberdade de seja o que for. Há, diga-se, muita gente genuína, mas tantos vão para fazer figura, armados em defensores de causas sociais, exibindo fotografias da sua presença, mas desrespeitando os direitos e garantias dos que de si dependem. Isso retira toda a beleza da indignação, retira grande parte da justeza da causa, porque parte dos reivindicadores desconhece direitos à terceiros. Porque viola liberdades e garantias de tanta gente diante do silêncio de uma multidão de pessoas que clama por mudanças. Agora lembro-me de Rute Muianga, a mãe de Hélio, aquele miúdo que morreu de uma bala de 'borracha' nos tumultos de 1 de Novembro. Lembrei-me das vítimas de Xitima e das velas que acendemos por elas, dos que tombaram em Muxungue, dos que pereceram em Montepuez e de todas as vítimas de balas perdidas, das vítimas de falta de medicamento, das vítimas das previsíveis cheias, das vítimas da cíclica cólera, das vítimas da fome de merda que não foi vergada pela revolução verde, das vítimas do abate indiscriminado de madeira. Afinal somos vítimas de tudo: ou vítimas da intolerância ou vítimas da censura ou vítimas do fundamentalismo político, esse que não nos deixa discutir as questões toldados por aquilo que convencionamos como motivação por detrás da opinião alheia, essa que nos tolda a visão e faz com que, antes do país, seja colocado em maiúsculas o nome do partido ou o nome da nossa ONG ou o nome de algo tão em voga como activismo social. Mas na verdade não activismo social nem nada que seja parecido. Só lutamos para derrubar quem pensa diferente. E como tudo é luta pelo poder, como bem argumentou o Niosta , vamos cometendo pequenos crimes contra os que pensam diferente. Mas na verdade estamos todos mortos porque é proibido ter opinião e quando escreves dizem: "o que te fez mudar", "quanto é que te pagaram", "já não te reconheço", "as pessoas mudam", "se estivesses lá o teu argumento seria outro" ou algo parecido. Essa cultura de rebanho é que nos mata. Só podemos ser ovelhas para singrar nesta selva. Estou disposto a marchar pelo direito de ser diferente ou pela emergência do indivíduo.
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