quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Em defesa da blasfémia


05.02.2015
FRANCISCO TEIXEIRA 
A questão da blasfémia é mais central do que pode parecer. Poder blasfemar e isso ser legal é assumir que os limites do real, aquilo que é divino e não pode ser tocado, afinal podem ser empurrados para trás e desse modo permitir ampliar os limites do que é ser humano. Temos, então, se queremos que o humano seja mais que uma cristalização logo no início, que nos define e definiu para todo o sempre, de insultar os deuses, as religiões e a sua pretensão de definição totalitária e absoluta. E sim senhor, a coisa não vai lá com proposições bem-educadas e trocas argumentativas de tipo académico. Sem uma ampla iconoclastia as religiões definem-nos para todo o sempre e não passaremos, para todo o sempre, de anjos de cera, a amarelecer no altar.
Basta uma relativamente simples análise histórica para perceber que a liberdade sempre se fez no confronto com o religioso, o divino e as igrejas. Foi esse confronto, ganho, pelo menos desde 1789, pelos democratas e liberais, que permitiu que as igrejas deixassem de ser a medida das consciências individuais e da própria ideia de religioso. Bem entendido, não há pensamento sem mediação e algum tipo de relação comunitária sempre terá que existir para que se possa pensar. Mas o fim do comunitarismo religioso obrigatório foi, é, uma condição necessária da liberdade. Se eu não puder imaginar outro Mundo, sem constrangimentos dogmáticos, nada é possível a que ainda se possa chamar humano.
Se a blasfémia é dolorosa e tensa? Sim, claro que é. Porque a democracia é, por natureza, agónica e, portanto, tensional. Uma democracia de eterna primavera, sempre de céu azul e sem espirros ou constipações não é mais que uma democracia dietética, um fascismo suave, uma república do respeitinho e da higienização.
Precisamos, pois, de produtos com sal a mais, gordura a mais, sabores intensos e poderosos, paixões assolapadas e perdidas, que destranquem o humano e o real das naturalizações divinas e sacramentais.
Que, porém, seja o Papa Francisco a defender a proibição, e até a violência, contra a blasfémia, não nos deve surpreender. Francisco é um dos papas socialmente mais progressistas da ICAR, aprofundando vertiginosamente a doutrina social da Igreja. Mas nem Francisco é capaz de romper com dois mil anos de intolerância e medo da liberdade. Se todos são assim e pensam assim, na ICAR? Claro que não. Por isso mesmo é que a ICAR ainda é uma religião e não apenas uma máquina de obediência.
PROFESSOR DE FILOSOFIA

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