Em 1914 a Europa mergulhou no abismo empurrada por nacionalismos de várias cores e pela vertigem das utopias socialistas. Um século depois, importa ter a capacidade de aprender com os erros do passado
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Margaret MacMillan, Warden do St. Antony’s College da Universidade de Oxford e autora da imponente obra “A Guerra que Acabou com a Paz”, foi no passado dia 19 de Fevereiro a convidada da Palestra Alexis de Tocqueville, promovida anualmente pelo Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa. Além de ter constituído uma adição apropriada a um notável rol de palestrantes, a presença de MacMillan é especialmente oportuna pela sua densa investigação sobre a Primeira Guerra Mundial, um tema a que importa voltar.
Mais de 100 anos depois do seu início, é hoje cada vez mais fácil esquecer a extensão e profundidade do impacto que a Primeira Guerra Mundial provocou no mundo e em particular na Europa. O longo século XIX que terminou efectivamente em 1914 foi um período de paz e prosperidade sem precedentes na história da humanidade. É certo que continuou a haver – como sempre houve – conflitos militares e que o desenvolvimento económico não se processou – como nunca se processa – de forma homogénea e linear, mas nos territórios em que foram adoptadas, ainda que parcialmente, ideias liberais, os padrões de vida atingiram níveis nunca antes sonhados.
A extraordinária libertação de capacidades produtivas e criativas proporcionadas pelo liberalismo, juntamente com a habituação à paz, foram provavelmente duas das causas principais do sentimento de optimismo partilhado por muitos europeus relativamente ao futuro. Ao mesmo tempo, no entanto, ideias anti-liberais ganhavam terreno: nas Universidades, na comunicação social e nas principais formas de produção cultural poderosas contra-correntes intelectuais ganhavam progressivamente força até se tornarem dominantes.
O século XIX foi o século da progressiva afirmação dos vários socialismos: desde os “utópicos” ao socialismo dito “científico”. Paralelamente, os nacionalismos exacerbados ganhavam também terreno em algumas das principais potências – algumas das quais recém-formadas, como a Alemanha – e formavam, juntamente com correntes filosóficas que lamentavam a “decadência” associada à paz liberal, uma combinação explosiva.
Foi neste cenário que deflagrou a Primeira Guerra Mundial, colocando um ponto final ao período de prosperidade e paz anterior. Além dos mais de 15 milhões de mortos, muitos dos quais civis, e de um inimaginável sofrimento humano, a Guerra arrasou definitivamente a velha Europa. As economias demorariam décadas a restabelecerem-se completamente, as sociedades perderam vitalidade e optimismo e os impérios europeus ficaram inexoravelmente condenados ao declínio. Nos países onde a capitulação face às ilusões do socialismo “científico” não foi total, nem todos os extraordinários avanços institucionais do capitalismo foram anulados e o progresso continuou mas o caminho trilhado até 1914 estava definitivamente abandonado. Seguir-se-ia, meras duas décadas depois, a Segunda Guerra Mundial ampliando ainda mais a escala dos horrores e a Guerra Fria entre as democracias liberais e o totalitarismo comunista.
Analisar os factores que causaram a catástrofe é uma tarefa árdua e complexa mas há algumas lições fundamentais que faríamos bem em aprender. A primeira é que não houve líderes capazes de aliviar as pressões que se acumulavam e que viriam a conduzir à Guerra. Pelo contrário, alguns desses líderes esforçaram-se por exacerbar tensões e reacender ódios antigos. Tudo ao serviço de uma agenda política de curto prazo ou de visões deslocadas e extremadas sobre o seu próprio papel. A segunda é que o jogo de fazer bluff (e contra-bluff) num contexto que se julga facilmente dominável pode facilmente conduzir a uma subestimação dos riscos envolvidos. A terceira lição é que a combinação de nacionalismos com socialismos facilmente se torna explosiva. Mais ainda se aliada a sintomas de alheamento ou negação da realidade.
Os factores de risco assinalados tornam-se especialmente relevantes em contextos – como volta a ser o caso nos países da Europa que não experienciaram décadas de subjugação ao comunismo – em que se dá a paz por assegurada e se consideram garantidos os níveis de vida atingidos. Em 1914, a Europa mergulhou colectivamente no abismo empurrada por nacionalismos de várias cores e pela vertigem das utopias socialistas. Um século depois, importa ter a capacidade de aprender com os erros e as tragédias do passado.
Professor do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa
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10 COMENTÁRIOS
Mas que grande viragem da história. Tem de a regar melhor a ver se pega.
Há que explicar e difundir o extraordinário projecto que vai correndo,da União Europeia,em vez das mensagens de velhos do Restelo.As mentalidades e os meios de comunicação mudaram dramaticamente.As elites deviam cavalgar esta onda ,em vez de antever pragas.
O discurso de ódio nacionalista só pega quando as pessoas se sentem traídas por aqueles que elegeram para os representar.
O ponto não é haverem oportunistas políticos que se aproveitam desse discurso. O ponto é que os representantes das populações não as representam, optando por estar ao serviço de outros que não os eleitores.
Essa é a realidade actual duma eurolândia que já se poderia chamar de IV Reich.
Algumas notas:
– o século XIX não foi um”século de paz” e harmonia, já que não só houveram as guerras napoleónicas, como também guerras regionais envolvendo a rússia, alemanha, suécia, prússia, itália, espanha, etc…
– ainda sobre o sec XIX, houveram não só as Revoluções Francesas, como a Revolução dos Estados Alemães, da Áustria, dos checos, dos Húngaros, dos Estados Italianos, a contra-revolução, etc… Foi só o século com mais revoluções na Europa.
– a Grande Guerra foi precedida (e resulta de) pela Guerra das Balcãs, iniciada dois anos antes
– não foram os “socialismos” nascidos nas universidades que provocaram a guerra, sendo esta resultado de políticas nacionalistas e imperialistas (kaiser e czar)
Nota final: quando o autor refere que foi o liberalismo que libertou recursos sendo “esmagado” pelo socialismo, apresenta um ponto de vista (seu) que deixa de fora as principais conquistas dos europeus no século XIX.
Há aqui a óbvia omissão da Revolução Francesa (a de 1830 e a de 1848) que teve como consequência a “Primavera dos Povos” na Europa e o princípio do fim das monarquias, a liberdade de imprensa, a adopção dos sufrágio universal, a criação de constituições e a declaração de direitos do homem. Essas sim, foram as conquistas para os cidadãos europeus.
Compreendo que, num jornal com uma tónica ideológica anti-socialista, seja conveniente não as referir, mas em abono do rigor histórico aqui ficam.
Sim, parece-me bastante claro que uma revolução que matou mais que a Inquisição espanhola foi um dos grandes factores do crescimento que se deu na época.
Depois apresenta a típica balelas socialistas que confundem correlação com causalidade porque certamente não foi a constituições que puseram o pão na boca ás populações famintas. Ou então acredita nos unicórnios marxistas e com isso também acredita que existe crescimento económico criado por decreto.
É incrível o que alguma diz gente para vir defender as cores do clube…
Já se percebeu que para o Hugo a única coisa relevante é o crescimento (de quê?), não a melhoria das condições sociais (que ironicamente, é causa e consequência do crescimento económico).
E sim, pode-se melhorar a vida das pessoas “por decreto”, quanto mais não seja ao assegurar-lhes direitos: de liberdade de expressão, de voto, de igualdade perante a lei.
Se para si isso não representa conquistas, e a sua preocupação é “as constituições não puseram pão na boca das populações…”, fica ainda mais claro que não só está a leste de economia, como também de democracia.
E isto sim é uma correlação, não uma causalidade. Nem um unicórnio.
Chamar a Revolução Francesa de socialista parece-me um bocado abusivo. Os jacobinos eram uns tipos de extrema-esquerda, de facto (confirmado pelo facto de terem instaurado uma “República Democrática”: tudo o que se auto-intitula assim já sabemos ao que vem…), mas não os queremos ter modelo a seguir, queremos? Ou somos dos tais que achamos que as ditaduras de Esquerda têm uma benevolência que as de Direita não encontram, porque se justifica oprimir o povo para libertá-lo?!
Tal como convém ter em mente que “liberdade de imprensa” e “sufrágio universal” são uns conceitos um bocadinho relativos. Mas adiante.
Fala em fim das monarquias. Eu até sou republicana, mas não vejo a Monarquia como um entrave ao que considero progresso social. É mesmo questão de princípio. Porque, se fosse consequencialista e se me desse para confundir coincidência com causalidade, bem podia observar que aqueles que me parecem os países socialmente mais equilibrados – Dinamarca, Suécia, Noruega, Holanda – não são repúblicas.
Por outro lado, não posso deixar de observar o esquecimento a que é votado o caso inglês nestas discussões. Fala-se muito de Revolução Francesa, mas esquece-se a Inglesa. A guilhotina, de facto, foi um bom marketing. E invadir um continente também deve ter ajudado.
Seja como for, convém ter em mente que uma e outra revolução estão profundamente associadas a circunstâncias económicas, em que a burguesia tem um papel fundamental. A burguesia que é uma classe nascida do mercado, convém não esquecer.
Cara Vera
Não me vê em lado nenhum a afirmar que a revolução é socialista, ou comunista ou nacionalista ou burguesa ou liberal conservadora (na prática, foram várias revoluções e foram de tudo isto). Nem a afirmar da benevolência de qualquer ditadura.
Achar que sou comuna apenas por apontar as evidentes lacunas do artigo ou a orientação ideológica do autor parece-me um salto grande.
Liberdade de imprensa, sim, começaram a haver vozes dissonantes que não eram prontamente caladas. Aliás, é referido no artigo, ao falar da expansão do pensamento “divergente”.
Sufrágio universal também, ou pelo menos para metade da população (homens), o que foi um passo de gigante face ao método de governo por hereditariedade (leia-se: monarquias) e que abriu as portas para o verdadeiro sufrágio universal das modernas democracias europeias.
Não menosprezo de modo algum a burguesia, que, desde o renascimento, é a base da nossa economia. A burguesia que, hoje em dia é chamada de “classe média”. que tem sido de onde têm surgido os “pensamentos divergentes”, cujos filhos têm apadrinhado a evolução e mudança.
E não só concordo consigo quanto à raiz da revolução, quanto acho que é a base de todas: condições económicas. Só quando as pessoas são levadas ao limite é que optam agir e mudar.
Exactamente como aconteceu na altura e, aparentemente, para onde estamos novamente a caminhar com as políticas aplicadas na zona euro.
Putin é um claro e inequívoco anacronismo histórico.
O futuro, quando quer que ele chegue, passa por uma ampla zona de comércio livre – com diferentes geometrias – em todo, ou gradualmente em cada vez maiores áreas, do vasto Continente Euro-asiático.
No imediato esperemos que o referido déspota não ponha a Europa a ferro e fogo.
A evolução política e cultural dos Povos é, infelizmente, um processo moroso e fácil de ser subvertido, como o demonstram a Rússia, Países e Enclaves ( por si artificialmente criados ), sob o seu domínio.
Convém não desprezar a factualidade histórica. Só em Portugal o século XIX começou com as invasões francesas e a fuga da família real para o Brasil (guerra no País);
Em 1820 -revolução liberal seguida de guerra entre absolutistas e liberais e posteriormente entre as fileiras liberais, depois guerra civil- levantamentos populares, como a Maria da Fonte e a Patuleia, ou seja, guerra praticamente até meados do século. Paz temos na 2ªmetade até 1890? Depois temos ainda as guerras nas colónias- as chamadas campanhas de pacificação!
Ou seja em Portugal a guerra foi sobretudo contra o absolutismo e pelo liberalismo, creio eu e não pelo ideário socialista, que surge mais tarde, juntamente com o republicanismo! (1870?)
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