Continuo a minha incursão pelos meandros da nossa responsabilidade cívica. Devo vincar um propósito especial desta reflexão. Estou preocupado com a qualidade da nossa indignação e como ela pode ser articulada com a promoção ou defesa de certos valores. Logo no início desta reflexão destaquei a importância da justiça social em Moçambique ao mesmo tempo que chamei atenção para o facto de ela ser demasiado abstrata para ser de utilidade operacional. Foi assim que procurei operacionalizá-la com recurso à ideia de “igualdade de oportunidade” e de dignidade. A minha ideia é de que não é possível uma discussão útil dos problemas que nos são colocados pela vida em comunidade sem o recurso a certos valores. Com isto não quero dizer que precisamos de entrar em acordo em relação ao significado desses valores. O que digo é que esse recurso cria uma plataforma de discussão que não só estrutura a nossa reflexão como também estrutura a própria discussão. Vezes sem conta tenho reparado que usamos certos conceitos – direitos humanos, boa governação, transparência e, claro, justiça – sem a devida atenção ao trabalho normativo que eles devem fazer e que é função do debate político. E esse debate não consiste simplesmente em descrever isto ou aquilo como correspondendo à noção de “transparência”, por exemplo, mas sim articular as decisões políticas com a sua capacidade de promoverem ou defenderem aspetos dessas noções.
Inevitavelmente, este tipo de exercício vai passar por referências a autores e pensadores que dedicaram atenção a estes assuntos. Na sua maioria são não-africanos, o que à partida é suspeito sobretudo para quem acha que já é tempo de termos as nossas próprias referências ou acha que os problemas que temos resultam justamente do facto de tentarmos aplicar soluções não-africanas a problemas africanos. Embora simpatize com esta preocupação não concordo com ela. Tenho em mim que para ultrapassarmos as limitações do pensamento europeu temos que o dominar primeiro. Só depois disso é que podemos procurar transcendê-lo, pois os nossos problemas, os problemas que consideramos africanos, são problemas que foram criados no contexto desse pensamento do qual nos queremos emancipar.
Uma boa parte do que tenho vindo a escrever nesta reflexão sobre as manifestações do “fenómeno da bicha” tem a ver com a célebre frase de Aristóteles segundo a qual o homem seria um animal político. Algumas pessoas entendem-na como querendo dizer que todo o indivíduo é um hipócrita apenas comprometido com o seu próprio interesse imediato. Mas não é assim. O “político” refere-se ao que é da cidade (polis), logo, a preocupação de Aristóteles é com as condições de coexistência, portanto, de cidadania. Sendo assim, o pano de fundo de toda a minha reflexão é a ideia de justiça num sentido muito profundo e que consiste no compromisso com a preocupação de dar às pessoas o que lhes é devido em virtude de serem membros da comunidade e de acordo com aquilo que consideramos como sendo a boa vida. A nossa competência cívica vem do reconhecimento desta obrigação, logo, somos responsáveis por qualquer acto de injustiça que ocorre na nossa comunidade, seja por omissão ou comissão. Esta é a mensagem profunda.
Mas Aristóteles não é a minha única referência. Kant também é, sobretudo na ênfase que ele dá à dignidade e que está consubstanciada no imperativo categórico de não tratar as pessoas como meios, mas sim como fins. Uma voz africana que também destaca o que Kant escreveu, mas numa outra perspetiva, é a do filósofo do Gana, Kwame Anthony Appiah, que uma vez tentou conceber uma democracia liberal africana baseada na garantia da dignidade humana. Já fiz uso desta ideia para tentar perceber o nosso percurso histórico e encontrar lá um princípio que pudesse orientar a ação política. Volto a essa ideia porque é sobretudo ao nível das relações do dia-a-dia que essa questão se coloca. Quando avalio a nossa independência, volvidos quarenta anos, não é para as obras materiais que olho. Elas são importantes, claro, mas o que me interessa mais é saber se somos um país onde a dignidade de cada um de nós está garantida. De cada vez que vejo pessoas a serem mal tratadas nas repartições, de cada vez que me lembro de quem não tem abrigo, alimentação, emprego ou tem de se humilhar para obter seja o que for vejo o ideal da independência comprometido. Não culpo necessariamente o estado por isso. Culpo-me a mim próprio por estar a falhar nas minhas obrigações como animal político, isto é como cidadão que deve justiça a todos os outros membros da comunidade.
As condições em que muitos moçambicanos têm que se locomover nos centros urbanos e fora é horrível. Na primeira metade da década de oitenta houve um debate na então Assembleia Popular durante o qual o ex-Presidente Chissano propôs que se autorizasse o transporte de pessoas em viaturas de caixa aberta. Uma das reações fortes contra essa sugestão foi do falecido Sebastião Marcos Mabote, na altura Chefe do Estado-Maior General, que disse algo como as pessoas não são gado. Na altura, e por causa da crise de transporte que era grande, muitos dos que acompanharam esse debate alinharam em silêncio com Chissano. Fizeram-no também porque entenderam o apelo de Chissano como um apelo à liberalização dos transportes públicos. O argumento contra esta ideia foi com recurso à ideia de dignidade que, apesar de tudo, era muito forte.
Os “my love” são um atentado à dignidade. E não só eles. O facto de muitos moçambicanos terem que se locomover naquelas condições enquanto poucos se movimentam no maior dos confortos constitui uma vergonha nacional, e não só para o governo. Todos nós participamos na humilhação de compatriotas sempre que optamos pelo transporte privado, sempre que passamos por uma paragem apinhada de gente e não parámos para levar algumas pessoas (uma vez houve uma interessante discussão aqui no “Facebook” em que fui alvo de insultos por parte de jovens esclarecidos que afirmavam, sem apresentarem provas, que eu tinha proposto como solução para o problema dos transportes públicos que cada proprietário de viatura pessoal desse boleia ao povo…). Somos cúmplices na humilhação dos nossos compatriotas porque a opção pela viatura individual – mais um exemplo do salve-se quem puder e, portanto, do fenómeno da bicha – contribui para adiar a solução colectiva. Os machimbombos da empresa TPM em Maputo, por exemplo, apesar de serem reconhecidamente insuficientes mesmo que fossem em número razoável dificilmente seriam a solução para o problema do transporte público em Maputo pelo simples facto de o congestionamento do trânsito não permitir a sua rentabilidade. Tanto quanto sei, nenhum deles faz o número de viagens que são necessárias para que amortize todos os custos. Mais uma vez, nós somos parte do problema, não da solução. Mas digo também que cada uma das nossas soluções individuais é perfeitamente legítima.
E é aí onde está o problema, o que me permite voltar a colocar as coisas de forma dramática. Considero hipócrita e incoerente todo o indivíduo que fala de injustiça social, mas não questiona a sua própria prerrogativa de ter carro individual num contexto como o nosso. Se justiça, como diz Aristóteles, é dar às pessoas o que lhes é devido, diria, então, que não é de compaixão que precisam os utentes do “my love”, mas sim dum compromisso cívico maior com as minhas obrigações como membro da “polis”. Só que é mais fácil dito do que feito…
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